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1.5 Máscaras, pinturas e confissões: arquivos do mal? The Man in My Basement

1.5.2 CRIMES CONFESSADOS: EXPIAÇÃO DO HOMEM BRANCO OU ARQUIVOS DO MAL?

Quando decide alugar o porão de sua casa para aquele misterioso homem branco de intensos olhos azuis, Charles nem de longe desconfia que sua vida estava a um passo de sofrer uma absurda reviravolta. A começar pelo fato de que as intenções de Anniston Bennet não são reveladas logo de imediato pois, a princípio, ele diz ao protagonista que queria apenas se confinar para ler, pensar e escrever. Entretanto, ao receber o material de Bennet, enviado previamente para sua casa, o protagonista percebe algo estranho: em meio a livros e roupas, as caixas também continham uma celae instruções para montá-la. Mais adiante, o rapaz começa a perceber que uma atmosfera absolutamente enigmática ronda aquele homem rico e poderoso de Connecticut.

Quando Bennet chega à estação de trem onde Charles o aguarda, ele é incisivo sobre seu “recolhimento”: ninguém sabia onde ele estava – e nem poderia – pois ele desejava ficar “completamente afastado de seu mundo”(MOSLEY, 2004, p. 117). A figura imponente de Bennet – “um homem que faria você fazer o que ele quisesse” (MOSLEY, 2004, p. 119) e a possibilidade de haver algo ilegal naquela situação deixa o protagonista bastante assustado. Quando estão na estrada, indo para a casa do rapaz, o homem dá uma risada, e quando Charles lhe pergunta o motivo, ele simplesmente diz que aquela poderia ser uma “risada de prazer ou o último suspiro de um homem à beira da morte” (MOSLEY, 2004, p. 117) Ao chegar à casa, o homem engatinha para dentro da cela, “com um pouco de esforço”e finalmente expõe suas intenções: “Você já entendeu? [...] Esta é minha prisão e você é meu carcereiro e meu guarda”(MOSLEY, 2004, p. 118-119). O impacto daquela revelação é tamanho, que o jovem tem vontadede correr. A partir daquele momento, ele conviverá com

uma perplexidade crescente, à medida que os arquivos misteriosos e atormentadores de Bennet forem sendo abertos.

Mais do que simplesmente se instalar no porão de uma casa, o homem branco queria se encarcerar, literalmente, para expurgar sua alma da culpa que carregara ao longo de anos, e que será revelada progressivamente, ao longo dos dias em que ele permanecerá em seu cativeiroautoimputado, na casa do protagonista. Ele se confessa “um criminoso que desejava pagar por seus crimes”, mas que não reconhecia “nenhuma forma de aplicação da lei ou governo para aquele caso”. Quando Charles lhe pergunta sobre o tipo de crimes a que ele se referia, o homem responde que eram os piores: “Pense no pior crime que puder imaginar e torne-o ainda pior. Então, você terá um vislumbre do que eu fiz.” (MOSLEY, 2004, p. 120- 121).Embora alegasse não quererfazer parte daquele plano, e que não alugara seu porão para ser um cárcere, o protagonista fica impotente ao perceber que Bennet sabe tudo sobre sua vida. Sem perceber, ele também seria, figuradamente, aprisionado em seu porão.

O acordo inicial previa que Charles apenas levasse o alimento para Bennet, mas, com o passar do tempo, o rapaz se torna, ainda que contra sua vontade, o arconte dos arquivos confidenciais e aterradores daquele homem. Em uma de suas primeiras conversas, Charles fica aturdido com um objeto antigo, “com mais de mais de cento e cinquenta anos”, que Bennet usaria paratrancar sua cela: “um cadeado utilizado para prender escravos nos velhos navios negreiros” (MOSLEY, 2004, p. 125). Aquele instrumento imediatamente leva o protagonista a cogitar que sua família, até onde ele sabia, não descendia de escravos: “Nós viemos para cá para trabalhar em servidão por contrato70e como marinheiros em navios espanhóis e portugueses. [...] Muitos de meus parentes não gostavam de imaginar que nós

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Indentured servants: trabalhadores contratados por um determinado período que recebiam acomodação,

alimentação e passagens para viagens marítimasem troca de seus serviços. Na América colonial, estes trabalhadores não eram apenas de origem africana, mas irlandeses, escoceses, ingleses e alemães. (“History of Slavery in America”). Linebaugh e Rediker (2008, p. 69) apontam este sistema como o fundamento sobre o qual a escravidão americana se apoiou.

éramos parte daquele monte de negros neste país.” Embora ele não sentisse sequer “uma pontada de identidade quando a escravidão era mencionada”, Charles acha aquele cadeado “hediondo” (MOSLEY, 2004, p. 124), essas palavras a princípio soam contraditórias: se aquele objeto não remetia a um passado reconhecidamente seu, por que a angústia? Adiante entenderemos que o protagonista iria transcender os laços familiares e abraçar a história de seu povo; aquela inquietação era apenas uma semente do que estava sendo gerado em seu íntimo.

Com o passar do tempo, o rapaz decide que Bennet só teria acesso aos privilégios (“comida, água, luz e livros”) caso respondesse a determinadas perguntas e comprovasse sua veracidade (MOSLEY, 2004, p. 180). Involuntariamente, Charles se torna um pesquisador, “que monta o arquivo em termos das perguntas que devem ou não ser feitas, de temas que devem ser retirados das entrevistas e que palavras devem ser registradas” (BRADLEY, 1999, p. 115, trad. livre). E será por meio destas entrevistas que segredos do homem branco serão descortinados, assim como o entendimento de Charles sobre questões pessoais e sociais até então ignoradas.

Anniston Bennet, o americano calvo, de profundos olhos azuis, não existe; sua identidade é completamente forjada. Ele é, na verdade, TamalKnossos,filho de Maria Knossos, uma grega, com um turcode nome Tamal, viciado em heroína, que vivera ilegalmente nos Estados Unidos, e que ele nunca conhecera. Com a morte da mãe, ele é enviado para um orfanato e, ao crescer, inventa uma história de vida, a partir de seu nome. Com um passado ignorado e uma identidade esvaziada de laços familiares ou culturais, o homem decide que iria vencer naquele lugar. Para isso, até suas características físicas são

forjadas, a fim de que se passe71por branco: seus olhos negros são disfarçados por lentes azuis e, para esconder os cabelos escuros, ele recorre à eletrólise para tornar-se calvo. Sharma (2014, p.669) aponta que,em narrativas que exploram o tema do passing (passar-se por branco), “a raça se configura como algo que tem autoridade de definir um indivíduo e outorgar a ele ou ela uma posição particular na ordem social racializada dos eventos [...].”(trad. livre) Este é o fenômeno – na verdade, uma tática (CERTEAU, 2014)– por meio da qualnegros mais claros e/ou mestiços se passam por brancos, com o intuito de conseguir acesso a prerrogativas legais exclusivamente direcionadas a estes, como cidadania (e o consequente direito ao voto), direito à propriedade e casamento (cf. KOSYRAKIS, 2014). Este “ultrapassar de fronteiras da cor” (SOLLORS, 1997 apudAGUIAR, 2012, p.13) começa a ser problematizado por autores afro-americanos a partir da segunda metade do século XIX, a fim de investigar “as complexidades e contradições da categoria de raça nos Estados Unidos.’’. Assim, ‘’ [...] o passing questiona e problematiza a ontologia das categorias de identidade e sua construção.” (ROTTEMBERG, 2003, p.435, trad. livre).

Anteriormente interpretado de forma negativa como trapaça, uma maneira de negar e afastar-se de suas origens, o passing foi libertado, pela visão pós-moderna de identidades flutuantes/em permanente construção, “do estigma de traição e engano” (AGUIAR, 2012, p.14, trad. livre). Como observado por Cary (1996), “o passing é [agora] reconhecido como um meio de fortalecimento por meio da resistência e apropriação do status de poder; [...] [e] possibilita atos potencialmente subversivos [...].” (CARY, 1996, p.190-191, trad. livre)Por meio deste homem “sem cor”, Mosley apresenta o tema de forma bastante “inusitada”

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Não é a primeira vez que Walter Mosley apresenta este tema em uma obra. Em Devil in a Blue Dress (1990), a personagem Daphne Monet, na verdade Ruby Hanks, se passa por branca, mas sua mãe é negra, o que, naquele contexto, também a classificava como tal.

(SHARMA, 2014, p. 669, trad. livre), enfatizando o poder que ser branco confere a um sujeito naquela sociedade. Neste sentido, a abordagem literária do passing72

prova que raça é muito mais do que uma questão de fenótipo. Ao atuar como uma determinada identidade étnica ou racial, o passer[aquele que se passa por] ficcional subverte as categorias de raça e etnia, expõe suas ambiguidades e reitera o conceito de identidade como um processo contínuo, em vez de um estado. (KOSYRAKIS, 2014, p.5, trad. livre).

Aqui, quem tenta passar por algo que não é – inclusive reconfigurando seu biotipo – é o homem branco, apontando assim para o uso que Mosley faz do Signifyin(g)ao criar um personagem branco que se vale do passing. Neste sentido, o autor sugere que brancos, tanto quanto negros, podemapelar para esta tática a fim de alcançar um determinado objetivo de vida.

Durante as entrevistas, Charles descobre que seu inquilino – “o diabo morando em meu porão” (MOSLEY, 2004, p. 156) – cometera terríveis crimes contra a humanidade, em sua maioria em países africanos, que iam desde roubos, homicídios, exploração de trabalho escravo, tráfico de órgãos, até o inominável ato de entregar um bebê “como um presente” ao cachorro de um homem, que queria saber “se o mito dos lobos que criavam homens era verdade” (MOSLEY, 2004, p. 215). A criança foi devorada e ele testemunhou a cena hedionda. Tamal também confessa que não impedira o massacre em Ruanda73, embora pudesse tê-lo feito, para não perder seu poder, pois teria se tornado “uma formiga sob os pés de um homem como ele” (MOSLEY, 2004, p. 219).

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Duas obras de relevo que abordam este tema são The Autobiography of an Ex-Colored Man, de James Weldon Johnson (Vintage Books, 1989) e The human stain, de Phillip Roth (Vintage Books, 2000).

Embora este não seja um dos temas basilares da presente tese, sua relevância é inquestionável, uma vez que se apresenta tanto em The Man in My Basement quanto em Linden Hills, no qual há um passing social, que será discutido no Capítulo 3.

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Um dos piores genocídios da humanidade, ocorrido em Ruanda, em 1994, levando à morte cerca de 800.000 pessoas, em sua maioria da etnia tutsi, massacradas por milícias hutus. (“Entenda o genocídio em Ruanda” / BBC

A relação de Tamal com sua culpa tem duas faces: embora se veja com um “bom cidadão e o pior dos demônios” (MOSLEY, 2004, p. 217), esteja encarcerado por reconhecer- se culpado, “não por ter sido pego”, e sua entrega sacrificial à punição torne o mundo “um lugar melhor” (MOSLEY, 2004, p. 134), o homem conhece profundamente o sistema selvagem que regula a humanidade e é consciente de sua função nele, a sua memória é conflitiva, “dividida entre um lado sombrio e outro ensolarado: é feita de adesões e rejeições, consentimentos e negações, aberturas e fechamentos, aceitações e renúncias, luz e sombra [...].” (CANDAU, 2011, p.72).Como diz a Charles, “a fim de que haja sobrevivência da espécie, tem que haver pessoas como eu. Pessoas têm que morrer para que outras produzam. As mortes são erradas, mas a preservação do mundo é mais importante”. Neste sentido, o homem se vê como um mero instrumento, “[...] uma ferramenta de precisão. Uma arma de destruição. Uma arma do dólar, do euro e do yen. [...] Não é uma questão de bem ou mal. É uma questão de humanidade, e o que você faz em nome dela” (MOSLEY, 2004, p. 217, p. 229).Segundo Sharma (2014, p.665, trad. livre), por meio da figura de Bennet/Tamal, Walter Mosley fustiga o capitalismo74, “baseado em trabalho escravo e corrupção. [...] um quadro sombrio da ordem mundial, na qual o capitalismo [...]e a exploração não estão sujeitos a nenhuma lei.”Mais ainda, ao situar os crimes de Tamal na África, em sua maioria, Mosley aponta para o subdesenvolvimento resultante do colonialismo voraz que imperou no continente e do qual ainda não se recuperou. O sofrimento do africano representaria, então, a figura universal do pobre, “como uma forma de contrastar [...] os abastados com aqueles cujas vidas não são reconhecidas como dignas de existir.” (ibid.).

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Ampliando este entendimento, sugiro que Mosley fustiga o modus operandi dos diferentes sistemas sócio- políticos, pois, segundo o próprio Bennet/Tamal, ele trabalhara para o Comunismo e fora, inclusive, preso e torturado por regimes ditatoriais africanos.

A severidade das macabras revelações nega a qualquer ser humano a possibilidade de passar incólume diante delas. O que Charles entendeu como “segredos antigos revelados coincidentemente em sua frente” (MOSLEY, 2004, p.152), era, na verdade, o desarquivamento de arquivos do mal, “desastres que marcaram a humanidade [...] promovidos constantemente pelas intensas guerras em vários lugares do mundo, em geral incentivados pelos interesses escusos das potências [...]” (SOLLIS, 2014, p. 375). Após o longo contato com seu ‘tutor’, o protagonista descobre o lado oculto da humanidade, e o seu próprio. Para Bennet, ele e o protagonista são opostos de muitas formas, principalmente no que tange à inocência/culpa: “Toda a sua vida poderia ser considerada um fracasso. Cada segundo até este momento foi desperdiçado. Mas ainda assim, você é realmente inocente enquanto eu, que mudei o curso das nações, não sou digno de ser chamado de seu amigo.”. Estas palavras levam Charles a um olhar introspectivo: “[...] Se ele era o mal, eu era um fracasso; talvez seja esta a diferença entre as pessoas boas e ruins do mundo.” (MOSLEY, 2004, p. 220).

No final do romance, alguns dos arquivos familiares dos Blakeys, como as pinturas da tia-avó de Charles,são vendidos para um museu de história afro-americana na Carolina do Sul; outros, como as máscaras e os diários das tias (contendo preciosas informações sobre seus ancestrais, que remontavam a mais de duzentos anos), passam a compor o material do museu de história afro-americana, que Charles inaugura, a conselho e sob a administração de Narciss.

Os outros arquivos, as confissões de Bennet – “fantásticas e doentias” – foram gravadas em quarenta fitas e enterradas “em um lugar secreto” no porão (MOSLEY, 2004, p. 240), assim como as cartas pessoais que o homem deixara para alguns familiares e amigos, aos cuidados de Charles, antes de morrer. O protagonista também queima as roupas e demais pertences do homem “que estava no centro do sofrimento que ele nunca soubera existir”. Recai então sobre o rapaz, “confidente e cronista” (MOSLEY, 2004, p. 240-241) dos pecados

de Bennet, arconte auto instituído daqueles arquivos do mal, o poder de consigná-los até quando quisesse.