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Revisitando o passado para redirecionar o presente: o neo-arquivo e as neonarrativas de

Comprehension precedes forgiveness. (HAWKINS, 2012,p. 16).

Um dos mais dolorosos arquivos da humanidade é, inegavelmente, o da escravidão, registrado em vários povos, em diferentes épocas. Nas obras escolhidas para minha pesquisa, que lidam com a escravidão e suas consequências na vida do afrodescendente na sociedade

27 Embora veja as classificações propostas por alguns deles como importantes, não me aterei a elas para evitar uma ampliação não pretendida do foco desta tese.

estadunidense, a presença do arquivo28 é marcante, multifacetada e serve, exatamente como dito por Bradley, para (re)apresentar o passado, discuti-lo e ressignificá-lo. A memóriadeste episódio, que ainda assombra, tem sido registrada ao longo do tempo nas diferentes artes, como a pintura, escultura, fotografia e filmografia. Na Literatura, os registros também têm sido variados: poemas,ensaios, peças teatrais, romances, contranarrativas de viagem. Seus autores, em sua maioria pós-colonialistas, contribuíram para a construção do neo-arquivo (neo-archive), termo proposto por Johnson (2014) no artigo intitulado “BuildingtheNeo- Archive: Dionne Brand’sA Map totheDoorof No Return”. Inspirada pela presença marcante do arquivo no livro de Brand, Johnson faz um interessante contraponto entre o arquivo colonial (britânico e francês) e o neo-arquivo, apontando que a voz do escravo não é ouvida no arquivo colonial; não há informações ou reflexões sobre sua experiência.Segundo a autora, o site dos Arquivos Nacionais Britânicos reconhece que

a maioria de seu material ecoa a experiência e pensamentos daqueles que perpetuam a instituição. [...] A maioria dos registros sobre o comércio de escravos é escrita do ponto de vista daqueles que controlam a atividade, e muito pouca informação sobre os escravos africanos está disponível. (JOHNSON, 2014, p.155, trad. livre).

Por outro lado, em resposta a esta “violência epistêmica do arquivo colonial”, a literatura caribenha tem confrontado a história veiculada pelos registros britânicos, franceses e europeus em geral, por meio das obras de renomados autores(DANTICAT, 1999; D’AGUIAR, 1997; JOHNSON, 1998; ALEXANDER, 2005; PHILIP, 2011)29 que exploram fatos históricos (como a travessia da passagem do meio – MiddlePassage – e o genocídio no

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Agradeço à minha orientadora pela sugestão oportuna da inclusão deste tópico, que, ao longo de minhas leituras, revelou-se de suma importância para minha pesquisa.

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DANTICAT, Edwidge. The Farming of Bones. (New York: Penguin Books, 1999); D’AGUIAR, Fred. Feeding

the Ghosts. (London: Chatto and Windus, 1997); JOHNSON, Charles. Middle Passage. New York: Scribner,

1998); ALEXANDER, Elizabeth. American Sublime. (New York: Graywolf Press, 2005); PHILIP, M. NourbeSe. Zong! (Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2011).

Haiti, por exemplo), mesclando-os com ficção. Para Johnson, este tipo de produção literária opera em conjunto com pesquisas de historiadores, formando o que ela chama de neo- arquivo30:

a ficção que cria a história em face de sua ausência. Ao contrário de historiadores, escritores de ficção podem mergulhar no tempo condicional [...] e fundi-lo com o presente por meio de explorações poéticas das lacunas nos arquivos. (JOHNSON, 2014, p.157, trad. livre).

Tomo por empréstimo o conceito de Johnson e estendo-oaos escritores afro- americanos Ralph Ellison, Gloria Naylor e Walter Mosley em cujas obraspercebo a mesma proposta de questionamentodos arquivos coloniais, com suas produções que dão voz ao Outro subjugado. Minha leitura de Homem invisível, Linden Hillse The Man in MyBasementiluminou a relação do neo-arquivo com a chamada neonarrativa de escravidão pelos motivos que discuto a seguir.

As neonarrativas de escravidão tiveram sua origem nas narrativas de escravidão, quesurgiram com a ascensão dos movimentos abolicionistas no final do século XVIII. Através destes arquivoseminentemente políticos, autores afrodescendentes começaram a questionar o sistema escravocrata por meio de narrativas que apresentavam uma imagem diferente daquela caricatural do escravo fujão e mau (EATON, 2012). Hawkins (2012) faz uma detalhada abordagem sobre os tipos de narrativas de escravidão: as primeiras, escritas por escravos africanos traficados pelo Atlântico (entre 1770 até a abolição da escravatura na Inglaterra e o tráfico de escravos em 1807), proporcionavam ao leitor um acesso à história não contada: a experiência do cativeiro, a diáspora forçada da África para as colônias nos hediondos navios negreiros, a brutalidade dos serviços nas lavouras e as eventuais fugas. Nos EUA, estes textos

30 Nesta mesma linha, Buonaiuto (2004, p. 11-12) sugere que uma panorâmica complexa do arquivo da África diaspóricaestá presente em TheAtlantic Sound, de Caryl Phillips (2001), obra que ela chama de crônica histórica.

seguiam um padrão típico, e um dos temas recorrentes era a ênfase na saga rumo à libertação, que envolvia, frequentemente, a migração do escravo do Sul para o Norte, de um cenário rural para um urbano, “de uma total ausência de poder a um status de cidadão, e da falta de autoconhecimento à descoberta de uma identidade” (NAMRADJA, 2015, p. 10, trad. livre).

A primeira narrativa de escravidão estadunidense a ganhar proeminência foi aobra autobiográfica de OludahEquiano, The InterestingNarrativeofthe Life ofOludahEquiano31(1789), vista como a narrativa de escravidão modelo. Incidents in the Life of a Slave Girl, deHarriet Jacobs (1861), foi a primeira escrita por uma mulher; e provavelmente a mais famosa seja a autobiografia de Frederick Douglass32,Narrativeofthelifeof Frederick Douglass, publicada em 1845.

Apesar de grandes produções terem surgido no cenário literário, elas foramnegligenciado e reputado como de pouca importância por vários anos, uma vez que sua credibilidade e autenticidade eram bastante questionadas(o que não causa espanto, já que seus autores eram ex-escravos). Contudo, em meados do século XX, na efervescência do Movimento pelos Direitos Civis, deu-se a retomada formal da tradição das narrativas de escravidão (LYSIK, 2004), desta vez com uma nova roupagem – a neonarrativa de escravidão – que, segundo Beaulieu (1999),

[tornou-se] uma das mais importantes contribuições para a literatura americana do século XX. Autores afro-americanos contemporâneos reconhecem a vitalidade do gênero, e em seus romances de ficção ou de ficção parcial, fazem explícitas referências à escravidão e ao destino dos escravos. (BEAULIEU, 1999 apud LYSIK, 2004, p.17, trad.livre).

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Olaudah Equiano, africano escravizado aos onze anos de idade, na região que compreende a atual Nigéria e que, ao longo de sua vida, trabalhando como marinheiro, comprou sua liberdade. Equiano ou Gustavus (seu nome europeu) “[...] participou ativamente do movimento abolicionista na Inglaterra, deixou um texto escrito em inglês relatando sua vida desde o sequestro na África até a carta que enviou à Rainha pedindo a abolição da escravatura”. (CANTO, 2014, p.2).

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Esta é sua obra mais famosa, mas não a única. O escritor publicou outros livros sobre a escravidão: The

Heroic Slave(1852); My bondage and my freedom (1855); The Life and Times of Frederickk Douglass(1881),

Enquanto as narrativas de escravidão clamavam pela abolição, as neonarrativaspõem em relevo o legado do sistema sobre os afrodescendentes, já que a abolição da escravatura não significa, absolutamente, o cancelamento de seus efeitos. Como observado por Hawkins (2012, p.1, trad. livre) busca-se “direcionar o futuro, já que o passado não pode ser desfeito.” Para esta crítica, a escravidão foi um tema bastante presente em diversos momentos, desde o início do comércio no Atlântico, passando pela Guerra Civil, a Harlem Renaissance33, e os anos 1930-1940. Contudo, o auge das discussões começa justamente com o surgimento das neonarrativas nos anos 1960. Seus autores, grandemente influenciados pela atmosfera de mudança deste período, revisitavam o passado com suas obras, “não com uma nostalgia romântica”, mas para apresentar “uma análise crítica da história cujo objetivo era incendiar a resistência política.” (HAWKINS, 2012, p. 10-11, trad. livre).

Diversos são os trabalhos que discutem a relevância das neonarrativas de escravidão para a literatura estadunidense (e, por que não dizer, mundial) assim como suas definições e até classificações (BELL, 1987; EATON, 2012; LIMA, 2012; LYSIK, 2004; NAMRADJA, 2015; RUSHDY, 1997;VALDIVIESO, 2012). Contudo, como já salientado, há que se optar por enfoques e conceituações que reflitam com clareza o(s) objetivo(s) da pesquisa. Assim, retomo agora o ponto de partida desta discussão com uma pergunta: qual a relação do neo- arquivo com a neonarrativa de escravidão? E por que optar por este enfoque nesta tese?

AshrafRushdy, um dos maiores críticos das neonarrativas de escravidão, as conceitua como

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Movimento cultural que ocorreu entre 1910 e (metade dos anos) 1930, centrado no Harlem (Nova York), que se tornou uma “meca cultural negra”. Considerado “a era de ouro da cultura afro-americana, com manifestações na literatura, música, teatro e artes”, e berço de nomes como Langston Hughes, Zora Neely Hourston, Louis Armstrong, Paul Robeson, por exemplo, que surgiram neste contexto efervescente. O movimento teve abrangência internacional, influenciando inclusive escritores negros de colônias africanas e do Caribe que viviam em Paris. (“Harlem Renaissance”. History online, 2019).

obras de ficção modernas ou contemporâneas, eminentemente voltadas para a a experiência ou os efeitos da escravidão [...], que apresentam escravos como narradores, protagonistas ou ancestrais[...]. (RUSHDY, 1997 apud LYSIK, 2004, p.19, trad. livre, meus grifos).

Para ele, inegavelmente, a característica mais importante deste tipo de produção é o fato de ela apontar para as consequências socioculturais permanentes da escravidão. Logo, ao pensarmos em um sistema mercantil/colonial passado, cujos tentáculos se estendem até o presente, é fácil depreender que a memória é tão determinante, pois “define a maneira pela qual valorizamos o passado, o que lembramos, o que escolhemos enfatizar e o que optamos por esquecer” (CHRISTIAN, 1980 apud LYSIK, 2004, p. 20, trad. livre); Stepto (1985) aponta a lembrança como um “dos mais expressivos traços das neonarrativas de escravidão” (STEPTO, 1985 apud LYSIK, 2004, p. 20, trad. livre). Já Lysik (2004) amplia este entendimento ao defender que conceitos centrais para as neonarrativas de escravidão são trauma34 e pós-memória (LYSIK, 2004, p. 20), este último definido por Marianne Hirsch (2001), sua criadora, como sendo

a relação de filhos de sobreviventes de traumas coletivos ou individuais com as experiências de seus pais, experiências que eles lembram apenas como as narrativas e imagens com as quais cresceram, mas que são tão intensas, tão monumentais, a ponto de se tornarem suas próprias memórias. [...] A pós- memória é uma potente forma de memória, precisamente porque sua ligação com seu objeto ou fonte é mediada não por reminiscências, mas por meio da representação, projeção e criação [...]. (HIRSCH, 2001, p. 9, trad. livre, grifo do autor).

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Do grego “ferida”, o termo tornou-se um conceito amplamente estudado na Psicanálise, inicialmente por Freud (1920), que o entendia no sentido de injúria, “algo vindo de fora e que produz um dano. No sentido psicanalítico, o trauma é decorrente de um afluxo excessivo de excitações que rompem o escudo protetor contra estímulos e que produzem uma marca indelével no aparelho psíquico.” (SEGANFREDO, 2008). Para Lacan (1964), trauma se configura na “entrada do sujeito no mundo simbólico; [...] não é um acidente na vida do falante, mas constitutivo da subjetividade’’; Ferenczi (1934) o conceitua como “o resultado de uma ação de um outro sobre aquele que é traumatizado.” (FAVERO, 2009, p.6).Entendo esta última definição como a mais adequada, ao considerarmoso trauma imputado pelo branco ao negro escravizado e sua descendência.

Embora não se refira diretamente à expressão pós-memória, Pollak (1992) avaliza a teoria de Hirsch ao admitir a possibilidade de uma memória herdada, uma “identificação ou projeção muito forte” com algum evento passado, por meio da socialização política ou histórica. Segundo ele, nem é necessário que um sujeito tenha um envolvimento real e pessoal com a situação, desde que a mesma tenha “tamanho relevo”, que seja praticamente impossível “saber se [ele] participou ou não [dela]”. (POLLAK, 1992, p. 201). Como pretendo apontar em minha discussão, a pós-memória(ou a identificação muito forte com circunstâncias passadas)exerce uma influência determinante na vida de alguns personagens, marcados direta ou indiretamente pela escravidão.

Julgo o vínculo da neonarrativa de escravidão com o arquivo como bastante concreto; entendo ser igualmente possível encadeá-la tanto à pós-memória quanto ao neo-arquivo, uma vez que, em minha leitura, determinados fatos descritos nos romances “preenchem os vazios da história” – coletiva, como apontado em Homem invisívele The Man in MyBasement, ou individual, como em Linden Hills35. Os eventos associados à escravidão e seu legadoexpostos nos romances fazem conhecidas algumas vozes outrora silenciadas, que (re)contam histórias um dia mal contadas. As obras escolhidas para esta tese propõem esta visita ao passado, a escavação da memória, com vistas à ressignificação do presente.