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2. A ADOLESCÊNCIA E O CAMPO JURÍDICO: DESAFIOS E TENSÕES NAS

2.2 CRIMINALIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO NA

Antes de adentrarmos na discussão sobre os discursos da criminalização e da medicalização da adolescência que chegam à escola e ao conselho tutelar, apresentaremos algumas noções sobre a adolescência a partir da psicanálise, com o intuito de nos dedicarmos a pensar o modo como os adolescentes se situam em seus diversos contextos de relação: familiar, escolar, grupos de convivência e outros, incluindo a questão da violência muitas vezes presente. Buscamos a Freud incialmente para recordarmos as fases de desenvolvimento da libido que este sujeito atravessa. Freud (1905), em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, não fala

diretamente sobre a adolescência, mas sim sobre a puberdade. Pontua que se trata de uma fase em que a vida pulsional (re)surge com toda sua força devido ao término da infância e início da sexualidade adulta, interrompendo, então, o sono de um “Édipo adormecido”. lém disso, sobre a puberdade, é interessante o que Freud desenvolveu em As transformações da puberdade quando afirma que

[na puberdade] as inclinações infantis voltam a emergir em todos os seres humanos, agora reforçadas pela premência somática, e entre elas, com frequência uniforme e em primeiro lugar, o impulso sexual da criança em direção aos pais, quase sempre já diferenciado através da atração pelo sexo oposto: a do filho pela mãe e a da filha pelo pai. Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas consuma-se uma das realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações. (FREUD, 1905, p. 212- 213)

Percebemos assim que a puberdade “seria um conjunto de mudanças corporais disparadas a partir da maturação biológica que caminha no sentido de aptidão f sica”. ssim como corroboram Jucá e Vorcaro (2018), a adolescência “vem a reboque da puberdade, tratando-se de um evento sociocultural circunscrito” (p. 247). Com isso, a adolescência é um momento valioso, no qual pontos elementares do processo de estruturação psíquica são recuperados.

No que tange ao trabalho psíquico dos adolescentes, Coutinho (2019) pontua que este diz respeito à construção de bordas “que dão contornos à pulsão e são retificadas na adolescência, o que não se dá fora da cultura e do laço social” (p. 4). Esse contexto nos convoca a pensar sobre um diálogo com outros campos do conhecimento que vislumbram as relações humanas, em que todos os sujeitos estão inscritos como o social, familiar, educacional, econômico e outros.

Em relação à esfera familiar, através das vicissitudes da adolescência, alguns estudiosos se debruçam sobre este sujeito e a importância dos pais no desenvolvimento deste. Alberti (2010) ressalta que é fundamental a presença dos pais junto ao adolescente, para que ele consiga “desempenhar sua função de separação”.

Assim, é porque os pais estão lá que o adolescente pode escolher lançar mão deles ou não; quer dizer, se os pais não estão presentes ele não poderá sequer fazer essa escolha. E a adolescência é, antes de mais nada: 1) um longo trabalho de elaboração de escolhas e 2) um longo trabalho de elaboração da falta no Outro. (p. 10)

Dessa maneira, ocorre em alguns momentos que, diante de tantas reações adversas por parte dos jovens/adolescentes, os pais desistem de desempenhar sua função. Entendem que não são mais ouvidos ou respeitados e desistem. Emerge então o afastamento dos pais em relação aos filhos, antes destes poderem se separar deles, causando uma inversão dos papéis, em que os adolescentes se veem abandonados e/ou obrigados a lutar pela atenção, e com isso começa uma série infinita de conflitos, dificuldades e problemas na adolescência (ALBERTI, 2010).

No que se refere ao desligamento da autoridade parental, esta é consequência do sujeito adolescente quando o mesmo não pode mais atribuir uma posição idealizada a seus pais, ou seja, não é mais possível fechar os olhos à “insuficiência deles” ( LBERTI, 1996; 2004). Sendo assim, o trabalho da adolescência implica observar que mesmo que haja o desamparo fundamental, é possível vir a fazer alguma coisa, na tentativa de modificar algo na realidade para seus próprios fins levando em conta os limites. Nesse momento em que os ideais se quebram/modificam, o sujeito é levado a construir suas próprias referências, o que fará, sobretudo, a partir da introjeção dos pais da infância: “os pais também são castrados e é por isso que o filho pode deixá-los, levando consigo a melhor bagagem que puder recolher” ( LBERTI, 2010, p. 16). adolescência envolve então o encontro do sujeito com novas referências, novos discursos, situados fora da família e impregnados pelos valores de seu tempo e de sua cultura. A escola é o palco onde esse encontro se materializa e depende dela, em grande parte, os destinos que o adolescente dará ao seu desamparo.

Entretanto, Vorcaro e Ferreira (2014) pontuam que, na atualidade, tanto as funções parentais quanto a escola estão perdendo espaço e ganhando novos terrenos “virtuais e anônimos”, de modo que estão entrando em cena outros moduladores na vida do adolescente.

A administração eficiente passou a modular também a função parental que requer cada vez mais uma teorização, e com ela, a perda da estabilidade de referências. A escola, ao mesmo tempo imprescindível e rechaçada, foi ultrapassada como lugar de transmissão de valores e da cultura comuns a todos, capazes de ultrapassar os caprichos parentais. (p. 18)

Diante dessas pontuações sobre o que se dá no contexto social surgem então alguns questionamentos: quando não há um respaldo familiar e social no desenvolvimento de adolescentes/jovens, como estes lidam com as questões que os atravessam? Como esses sujeitos vão para o campo escolar/social quando o desamparo estrutural da adolescência assume formas extremas e transbordantes? Em alguns casos, quando estes jovens não respondem de forma esperada o que é produzido pelas instituições sociais como resposta? Ou os mesmos meramente são vistos como causadores de mal-estar ou são caracterizados como deliquentes no meio em que circulam? Além disso, se a grande questão de todo sujeito humano, e mais ainda do sujeito adolescente, é encontrar modos de se representar no discurso, quais os desafios que o jovem de hoje enfrenta nesse percurso? Tais questionamentos são palco para reflexão sobre as diversas formas do agir adolescente na escola hoje.

Na atualidade, a adolescência tem ocupado foco de atenção e preocupações por parte da sociedade. Tais preocupações se fortalecem particularmente em relação aos adolescentes em conflito com a lei (ROSA; VICENTIN, 2010). Discute-se sobre os supostos privilégios que os jovens/adolescentes apresentam perante a justiça como algo que reforçaria a impunidade e a falta de responsabilidade frente ao ato infracional e com isso se ressalta o clamor das campanhas pela “redução da maioridade penal e/ou por modificações na legislação no sentido do endurecimento das medidas socioeducativas” (2010, p. 109).

Em meio a essas engrenagens de dominação, a categoria “menor” passou a ter importância estratégica nos discursos oficiais dos órgãos de assistência, educação e justiça. Retrospectivamente, segundo Brandão (2017) em Laudos e pareceres psicológicos e práticas de poder, as primeiras menções à expressão “menor” aparecem no Código Criminal do Império, e foi assim que esse termo passou a marcar as crianças e os adolescentes oriundos das “camadas mais baixas da pirâmide social”, assumindo, assim, sentido de controle dos sujeitos considerados “suspeitos e potencialmente perigosos”, em uma clara associação entre perigo e pobreza. (ARANTES, 2007; BRANDÃO, 2016).

Mesmo sendo portadores de uma forte herança da tendência medicalizante, os laudos e pareceres são ainda exigidos a despeito do jurídico e nacionalista que pesa parcialmente sobre o ECA (BRANDÃO, 2016; ARANTES, 2007). A razão para isso se deve ao fato do Direito servir como norte e uma possível camuflagem para

as estratégias de normalização e disciplina. Sendo assim, a demanda extravagante e exigente de laudos e pareceres serve a diversas linhas de força, entre as quais, o resgate do poder simbólico do juiz que até então poderia ser afrontado pela corrente medicalizante (BRANDÃO, 2016). Dessa forma, é importante destacar que, como todo e qualquer texto legal, o ECA reduz uma diversidade de demandas, das quais uma delas é a de “desjudicialização”, por meio da qual, por exemplo, foram criados conselhos e fóruns com a participação da sociedade. Seguindo esse pensamento, Brandão (2016) evoca

Parafraseando Foucault (2001), quais são as condições de possibilidade das perguntas insensatas que juízes, promotores, defensores e advogados sentem tanta necessidade de formular ao psicólogo? Esse indivíduo está apto a assumir a guarda de seu filho? Ele pode visita-lo? Pode adotar uma criança? É perverso, abusador, manipulador, em suma ele é virtualmente perigoso? (p. 37)

Esta ressalva aponta uma questão sensível e frequente, que é o caso das crianças e adolescentes com perspectiva da criminalização e/ou judicialização pelo olhar do Direito na tentativa da “extração da verdade” (BR NDÃO, 2016), em que a crença de que o suporte científico seria o mais claro e seguro para se chegarem a uma decisão justa. Contudo, esta concepção sucateia a real razão pela qual a perícia foi inserida no contexto judicial. Nessa perspectiva, este autor evoca que a ação profissional de caráter técnico-científico, burocrático e ideológico não se limitou ao campo da assistência, mas passou a fazer parte igualmente em outros campos de intervenção social: “saúde, educação e justiça”.

No que tange à justiça, a legislação passou a ser um importante dispositivo regulador e justificador da intervenção do Estado nas relações sociais. Este alargou o aparato “legal-assistencial e normativo” com objetivo de enfrentar, de acordo com uma racionalidade científica, técnica e ideológica, as expressões de teor social, dominando, em especial, as funções educativas exercidas pela família. A família passou a ser vista como “célula mater” necessária à reprodução material e espiritual das novas relações de produção e de sociabilidade (CFESS, 2003; BRANDÃO, 2016).

Por esse caminho Arantes (2016), dentro do campo jurídico, evoca algumas situações que vão na contramão do trabalho do psicólogo perante as avaliações solicitadas e até mesmo intimadas, em que este profissional tem se deparado com

conflitos dentro das práticas e discursos que podem quebrar os direitos dos adolescente e seus familiares que deveriam ser fortalecidos.

Em vista disso, são diversos os estudos que se engajam em informar que nos “corpos dos jovens pobres se inscrevem um imaginário vinculado à delinquência” e à violência, entrando em cena as demandas sociais pelo controle da criminalidade. Nesse sentido, Rosa e Vicentin (2010) esboçam que

Passados vinte anos da vigência do paradigma da Doutrina da Proteção Integral na relação com a infância e a juventude (traduzido na legislação brasileira pelo Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, de 1990), as demandas sociais pelo “controle” da criminalidade juvenil ainda têm se desdobrado em processos crescentes de criminalização, como nos indica o persistente clamor pela redução da idade penal, e de patologização do adolescente em conflito com a lei, os quais configuram diferentes modos de realizar a gestão dos riscos (Castel, 1987) que a juventude pobre coloca ao campo social. Esses processos produzem práticas de regulamentação e fixação dos adolescentes e jovens a espaços de exclusão e controle na mesma medida da redução das políticas sociais a eles dirigidas (p. 110- 111).

Esmiuçando um pouco mais sobre o assunto abordado pelas autoras nota-se que se instalou nos últimos anos uma ênfase nos discursos do âmbito judicial em conjunto com os discursos médico-psiquiátricos, que “podem criminalizar e/ou patologizar os adolescentes autores de ato infracional” (p. 112), preocupados estão em responder a uma demanda de ordem e segurança da população. Dessa forma, quando o adolescente apresenta um comportamento não esperado, o mesmo é visto como problema ou infrator. Esse debate é de extrema importância, tendo em vista que se esquece, com frequência, que o adolescente está em processo de formação e desenvolvimento constante. Dessa forma, quando o mesmo não apresenta o que é esperado, ele se torna estigmatizado, seja marcado pelo discurso jurídico como delinquente ou pela via da medicalização quando a conduta adotada é a de medicar o mal-estar.

Neste cenário, como descreve Guarido (2007 apud COUTINHO; MOREIRA 2018), propaga-se o processo de medicalização, remetendo à transformação de questões sociais e psíquicas em biológicas, próprias ao âmbito médico. Dessa maneira, quando se negligencia a dimensão enigmática da subjetividade, “o discurso médico-cient fico tem ganhado força” ( OUTINHO; MOREIR , 2018, p. 54) nos campos jurídico e pedagógico, o que autentica e promove os avanços da medicalização como forma predominante de intervenção terapêutica em nossa

sociedade.

Vorcaro e Ferreira (2014) contribuem para essa reflexão, em que os filhos tornam-se filhos de pais anônimos e são classificados através de nomeações de “s ndromes”, sendo estigmatizados e rotulados com laudos e, em consequência, a medicalização.

A demanda gritante do diagnóstico e de remédio para as crianças, seja dos pais, da escola ou dos médicos, evidencia assim a tentativa de dominar o que resiste de singular no modo da apropriação da origem dos ideais. (p. 19)

Conforme postulam Carneiro e Coutinho (2015), neste mesmo caminho, a “categorização diagnóstica e a administração de psicofármacos” tornaram-se as principais respostas para o sofrimento psíquico e o sujeito tem sido cada vez menos levado a pensar sobre suas “manifestações sintomáticas”, fragmentando, então, a possibilidade de implicar-se na investigação e no tratamento de seus próprios impasses.

Nessa perspectiva, Rosa e Vicentin (2010) nos ajudam na reflexão a respeito daqueles que as autoras chamam de os “intratáveis”, que são empurrados para outra esfera para além da escola, onde tem se instalado uma ênfase nos discursos do âmbito judicial aliados a discursos médico-psiquiátricos, resultando em adolescentes que podem ser criminalizados e/ou patologizados quando fogem das regras estabelecidas e ficam às margens. Este cenário evidencia, assim, algo dos efeitos da cultura contemporânea sobre o processo de subjetivação da adolescência. Em relação a isso, muitos autores indicam que esta cultura, marcada e presente no discurso da ciência, vem promovendo a fixação de questões e impasses presentes na adolescência a diagnósticos e a outras nomeações “patologizantes/marginalizantes”, que esvaziam o lugar de fala do sujeito atrapalhando-o a construir um discurso mais subjetivado sobre seu próprio mal-estar (COSTA-MOURA, 2005; ROSA; VICENTIN, 2010).

Assim, como pontua Gurski (2012), a marginalização juvenil tem se apresentado em diversos âmbitos, mais em particular na escola, pois é ali em que esses jovens/adolescentes passam a maior parte do seu tempo e se sentem pertencentes ao espaço. Gurski (2012) contribui para a reflexão sobre a violência

presente na vida destes jovens, sublinhando que esta pode ser efeito de convocações das práticas culturais. firmando que “condições de crueldade são construídas na medida em que o outro passa a ser um simples objeto, alguém que não é um sujeito como o outro” (p. 237). Com isso, colocam-se em cena as condições do laço social e o modo como ele facilitaria esses atos e comportamentos violentos dos jovens/adolescentes. Neste cenário, de acordo com a autora, seria poss vel, então, “tomar algumas violências contemporâneas mais como efeitos de articulações do tempo atual e não como um sinal de fim do mundo ou do fim dos laços” (p. 111).

Nesse contexto, destaca-se o caráter “desconstrucionista” presente na adolescência tomada como operação psíquica (GURSKI, 2012). Denomina-se “desconstrucionista”, pois o adolescente/jovem, com base no que recebeu, tentará desenvolver novos passos que o representem frente ao Outro.

O grande trabalho psíquico da adolescência é operar com a transicionalidade entre o campo familiar e o campo da cultura. Assim, na medida em que a passagem do Outro parental para o Outro social acontece, o jovem debate-se, destruindo e reconstruindo referências e conceitos de si e do mundo. (GURSKI, 2012, p. 115)

Assim, falar de sujeito é falar em uma concepção ético-política, e não apenas em uma de suas facetas recortada em bio/psico/social. O sujeito é produto e produtor da rede simbólica que caracteriza o que é chamado de social (ROSA; VICENTIN, 2010). A violência e a exclusão não se resolvem com a submissão de uma das partes, mas sim com a transformação que leve em conta o conflito propiciador dessa manifestação.

Na tentativa de escapar da criminalização de adolescentes no âmbito escolar, segundo Carrano (2017), a escola deve demonstrar interesse na trajetória “extraescolar” de seus alunos e ouvi-los de forma atenciosa, enxergando-os como indivíduos culturais completos, pois este cenário escolar continua sendo o palco para a criação, mobilização social e socialização. Coutinho (2019) corrobora essa reflexão, afirmando que, frequentemente, parece dif cil para o educador “valorizar saberes não escolares” que os alunos possam apresentar na cena escolar, assim como assumir que a escola é importante na vida de algumas crianças para além do aspecto “conteudista” presente nas disciplinas tradicionais. Dessa forma, o mal-estar se instala quando o adolescente/jovem não se encaixa nos parâmetros educativos

universais.

Retomando a discussão sobre a criminalização e/ou patologização dos atos adolescentes, o âmbito judicial em conjunto com os discursos médico-psiquiátricos intimam laudos e pareceres psicológicos, quando o adolescente apresenta um comportamento não esperado e é o mesmo visto como problema ou infrator. Dessa forma, o psicólogo que faz parte da equipe técnica do conselho tutelar é muitas vezes demandado a realizar perícias e confeccionar laudos e pareceres (BRANDÃO, 2016).

3. DA DISCIPLINA À PALAVRA: O TRABALHO DO PSICÓLOGO COM

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