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4 ADVOCACIA PÚBLICA NA SOLUÇÃO CONSENSUAL DE

4.1 Atuação da Advocacia Pública na mediação e conciliação

4.1.2 Crise de legalidade estrita

Tradicionalmente, sempre se viu com maus olhos a participação do Poder Público em procedimentos transacionais, seja por suposta violação ao princípio da legalidade, consectário sagrado do Direito Administrativo que norteia o atuar gerencial das estruturas do Estado de forma vinculada, seja por ir de encontro à indisponibilidade do interesse público.

Nesse sentido, posicionou-se Caio Mário da Silva Pereira, em trabalho publicado no ano de 1977, portanto há mais de quarenta anos, segundo o qual o Poder Público não poderia fazer acordos, pois, mesmo que o Advogado Público reconhecesse o caráter ilegal do ato, não poderia se negar a defender sua legalidade, sob o argumento de que o Advogado Público não pode ser o juiz da Administração Pública141.

Em reforço, não se pode ignorar o argumento de que o princípio da legalidade é norte indissociável da atividade administrativa, de modo que sua conduta, a incluir a disponibilidade de seus direitos, ainda que patrimoniais, não dispensa a edição de lei142.

140 “Sendo assim, é recomendável, por razões de economia processual, que, nos processos envolvendo a Fazenda

Pública, o juiz, no ato de citação, inste seus advogados a se manifestarem sobre a viabilidade da celebração do acordo, determinando-lhes, na oportunidade, que, se considerarem inviável a autocomposição, apresentem a sua contestação no prazo legal. Nesse contexto, a Fazenda Pública poderá, por um lado, manifestar-se pela inadmissibilidade da conciliação, hipótese em que apresentará a sua defesa, possibilitando com isso a regular e célere tramitação do feito. Poderá, ainda, anuir com a possibilidade de conciliação, hipótese em que poderá desde logo apresentar a sua proposta de acordo, o que poderá inclusive induzir a composição entre as partes independentemente da realização do ato solene”. MADUREIRA, 2016, p. 197.

141 PEREIRA, Caio Mário da Silva. A advocacia do Estado. Revista da Procuradoria Geral de São Paulo, n

.10, p. n-89, jun. 1977, p. 77.

142

“Parece razoável o entendimento de que os direitos patrimoniais da Fazenda Pública são disponíveis nos limites traçados pelo ordenamento jurídico, baseado na mais simples ideia de princípio da legalidade. Ou seja, é necessária norma jurídica expressa para definir de quais direitos da Fazenda os agentes públicos que a representam podem dispor, e os limites e condições para que assim o façam, sem que com isso se considere ferida a indisponibilidade do interesse público. Não é por outra razão que as alienações de bens públicos são possíveis, mas desde que autorizadas por lei. Da mesma forma, os créditos tributários podem ser excluídos por

Nada obstante, não se pode associar eventual ausência de previsão legal específica para participação de soluções autocompositivas com vício de legalidade, pois a busca do interesse público tem como força motriz não só o princípio da legalidade, mas também os demais princípios da Administração Pública, previstos no art. 37, caput, da CF, reforçando o espectro normativo que guiará a atuação estatal.

Em outras palavras, a previsão de uma legislação que esmiuçasse as condicionantes para celebração de acordos a envolver a Fazenda Pública seria o cenário ideal143, mas sua ausência não é causa suficiente para inviabilizar a autocomposição.

Em reforço, a escolha do conteúdo do interesse público, não raro, pode culminar na discricionariedade do administrador, o que não significa estar o mesmo desvinculado da legalidade, já que os princípios que informarão sua atuação estão devidamente positivados desde a Carta Magna. Logo, o que se deve sempre rechaçar não é a simples discricionariedade do administrador, mas sua indeterminação deliberada que propicie o arbítrio estatal144.

anistia, exigindo-se apenas que ela seja instituída necessariamente por lei. Finalmente, diversas normas permitem que advogados públicos celebrem transação em juízo. Nesse passo, pode-se afirmar que a arbitragem sempre foi cabível para solucionar conflitos envolvendo a Fazenda Pública sempre que a lei assim o autorizar”. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Arbitragem e fazenda pública. In: Processo societário, II[S.l: s.n.], v. 2. , 2015, p. 2-3.

143 “Devem constar da legislação acerca do assunto, no mínimo: a) previsão do dever de avaliação de riscos de

sucumbência toda vez que o Poder Público estiver no polo passivo de uma ação, bem assim do dever de análise das chances de êxito (não apenas no sentido de ganho processual, mas também no sentido de ganho econômico) em todas as hipóteses de possível ajuizamento de uma ação por ente público; b) previsão de que a avaliação de riscos deverá contemplar análise fática e jurídica, devendo ser realizada logo no início do processo, bem como sempre que houver qualquer novo elemento relevante (como, em matéria de direito, a edição de nova Súmula Vinculante do STF, Súmula ou parecer vinculante da AGU ou Súmulas de tribunais em geral, bem assim toda vez que houver decisão definitiva em cada instância judicial e, em matéria de fato, após o encerramento da instrução processual ou a produção de qualquer prova suficiente para esclarecer a controvérsia fática); c) previsão de que a análise dos riscos em matéria fática deve ser realizada em conjunto com a(s) área(s) técnica(s) competente(s) no assunto, e de que a análise de riscos jurídicos deve ser realizada por comitê constituído para tal fim em cada órgão da Advocacia de Estado, do qual devem participar necessariamente advogados que atuam junto a tribunais superiores e advogados que atuam na esfera consultiva relativa ao direito material aplicável ao caso; d) previsão do dever de reconhecimento do pedido, de não interposição ou desistência de recurso em caso de matéria que se verifique incontroversa já no início da ação ou durante o seu curso, conforme o caso, conforme parecer do comitê de avaliação de risco e do advogado atuante no caso; e) previsão do dever de tentativa de celebração de transação em matéria controversa, sempre que se verificar risco significativo de perda (aí entendido o risco superior a 60%, conforme critérios de avaliação de risco a serem regulamentados); f) previsão do dever de fundamentar a celebração (ou não) de transação, em determinados momentos processuais específicos (durante a audiência de conciliação, após a sentença ou decisão de segunda ou terceira instância desfavorável ao Poder Público); g) previsão de responsabilização do advogado atuante no caso e da chefia imediata pelos acréscimos decorrentes da ausência de tentativa de celebração de transação quando esta teria sido altamente recomendável, conforme percentuais de risco identificados pelo comitê de avaliação de risco; h) previsão de publicação dos extratos de acordos celebrados no sítio eletrônico do(s) órgão(s) envolvido(s) e no jornal oficial correspondente.” SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes

públicos e a mediação de conflitos coletivos. Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94327/292011.pdf?sequence=1&isAllowed=y, pp. 227- 228. Acesso em: 19 out. 2018.

144 CASTELO BRANCO, Janaína Soares Noleto. A adoção de práticas cooperativas pela Advocacia Pública:

fundamentos e pressupostos. Disponível em: <

http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/29712/1/2018_tese_jsncbranco.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2018, p. 37.

Com efeito, o vício de legalidade não deixa de ser vício pelo simples fato de ser sustentado pela Administração Pública. Em verdade, a ilegalidade deve ser reconhecida por toda a máquina administrativa, pois o Estado, “como fonte praticamente exclusiva da emanação de normas jurídicas de cunho geral, (...) deveria ser o primeiro a dar o exemplo no seu cumprimento145146”.

Infelizmente, há ainda o argumento pragmático, levado a cabo por muitos advogados públicos, que parte da premissa de que a ação judicial deve ser inexoravelmente intentada, haja vista o particular, mesmo que provido de acerto em sua pretensão, poder perder-se em tecnicalidades ou filigranas processuais147.

De fato, a zona de incerteza sob a qual jaz a atuação da Advocacia Pública mais se mostra pela ausência de critérios válidos e pré-determinados de atuação funcional, contribuindo, inclusive, para o receio de responsabilidade do agente envolvido148.

145

SOUZA, Luciane Moessa de. Consultoria jurídica no exercício da advocacia pública: a prevenção como melhor instrumento para a concretização dos objetivos do Estado brasileiro. ln: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 167.

146

“Assim, quando a Advocacia Pública depreender que o administrado tem razão, ou seja, que os agentes estatais incorreram em equívoco quando da aplicação originária do Direito, cumpre-lhe assegurar a fruição do direito sustentado pela parte adversária tal como ela o teria fruído se a Administração não tivesse se equivocado por ocasião da realização do ato impugnado. Nesse caso, o acordo aventado não poderá ser implementado sob a forma de transação (que exige concessões mútuas entre as partes), consistindo, portanto, em simples composição do litígio”. MADUREIRA, Cláudio Penedo. O Código de Processo Civil de 2015 e a conciliação nos processos envolvendo a Fazenda Pública. In: Fredie Didier Jr (Org.). Coleção Grandes Temas do Novo CPC — Justiça Multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada para conflitos. Salvador: Juspodivm, v. 9, p. 164-213, 2016, p. 190.

147 “Os argumentos daqueles que contam com a possibilidade de que, ao litigar em juízo, a parte privada possa

perder um prazo ou não ter capacidade de manejar argumentos e provas de forma consistente o suficiente para fazer valer sua pretensão, o que pode vir a resultar numa vitória processual do Poder Público mesmo que sua conduta esteja em desacordo com o direito material, são de um cinismo e uma falta de ética tão deploráveis que dispensam comentários – sendo de se lamentar que tal postura (embora não expressa em público) ainda exista em meio a órgãos da Advocacia de Estado, sustentados pelos contribuintes brasileiros.

O reconhecimento total ou parcial do pedido do autor, em sede administrativa ou judicial, em situações onde ficar evidenciada a legitimidade jurídica de sua pretensão, é, assim, ato vinculado, não cabendo, no caso, quaisquer considerações de oportunidade e conveniência, que implicariam em puro e simples descumprimento da ordem jurídica emanada do próprio Estado”. SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de

conflitos envolvendo entes públicos e a mediação de conflitos coletivos. Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94327/292011.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 226.

Acesso em: 18 out. 2018.

148 “Ora, é com base na subordinação administrativa que estaria o advogado público vinculado às orientações do

órgão que integra. A regulamentação interna da forma de atuação dos membros, no âmbito das procuradorias, inclusive com a estipulação de critérios objetivos para a prática de atos dispositivos, não só não ofende a autonomia funcional dos membros, como é imprescindível para garantir-lhes segurança na sua atuação. [...] É do agir administrativo o respeito às normas. E é das normas a impessoalidade. Portanto, não só podem como devem as procuradorias, a que estão subordinados administrativamente os advogados públicos, normatizar a atuação judicial e extrajudicial dos seus membros. Como argumento final a favor da regulamentação interna, aponte-se ainda a eficiência na atuação dos profissionais, vez que a existência de diretrizes prévias à atuação acelera a tomada de decisões.” CASTELO BRANCO, Janaína Soares Noleto. A adoção de práticas cooperativas pela

Advocacia Pública: fundamentos e pressupostos. Disponível em: <

http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/29712/1/2018_tese_jsncbranco.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2018, pp. 82-83.

E não poderia ser diferente, pois diante de dúvidas sobre os parâmetros a serem utilizados para celebração de acordos pelos advogados públicos, bem como a incerteza sobre a extensão de suas responsabilidades, fez com que houvesse uma inexpressividade de acordos celebrados envolvendo o Poder Público149. Igualmente, o receio de sanção por parte dos agentes públicos em sua atuação advém de uma cultura administrativa que somente enfoca a responsabilidade por ações, esquecendo-se, infelizmente, de se perseguir, com o mesmo rigor, pela omissão em seus deveres, a não celebração de acordos em situações cuja omissão deflagre prejuízo ao erário150.

A Administração Pública pode e deve celebrar acordos e transacionar no escopo de prevenir litígios descabidos que somente malfeririam o regular funcionamento de suas atividades. Com efeito, o acordo pressupõe a existência de um espaço de conformidade que a lei imprime ao administrador (discricionariedade) para valorar, casuisticamente, as medidas necessárias para a salvaguarda do interesse público. Transacionar, portanto, não implica abrir mão do interesse público, mas permitir sua própria concretização com a inclusão dos particulares interessados na solução da contenda151.

Em verdade, como se analisará adiante, uma das constatações a respeito da indisponibilidade do interesse público é a de que a Administração, uma vez ciente de que não lhe assiste razão em dado conflito, tem o dever de submeter-se aos parâmetros da legalidade, até mesmo de ofício, independentemente de provocação, principalmente judicial. Constatando um direito do particular face ao Estado, como decorrência direta do princípio constitucional da legalidade, cabe-lhe dar cumprimento a tal direito. Ora, se a todo e qualquer sujeito a mesma consequência haveria de incidir, com mais razão ainda deve o Poder Público assim

149

SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos e a

mediação de conflitos coletivos. Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94327/292011.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 293.

Acesso em: 18 out. 2018.

150

“A insuficiência das previsões normativas existentes se insere, assim, num quadro de inércia institucional, em que existe grande receio de assunção de responsabilidade em nível pessoal pela celebração de acordos – e nenhuma cobrança pela omissão em realizá-los quando era o caso de realizar o acordo e evitar assim a realização de trabalhos e despesas adicionais desnecessárias para o erário.” SOUZA, Luciane Moessa de. Meios

consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos e a mediação de conflitos coletivos.

Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94327/292011.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 208.

Acesso em 18 out. 2018.

151

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Administrativo e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 193.

proceder, pois a legalidade para esse, ao contrário do que ocorre para os particulares, é um vetor fundamental de atuação152.

Desta forma, o aperfeiçoamento dos meios consensuais em processos judiciais dependerá de regulamentação (federal, estadual, ou municipal, a depender do ente público, sempre com observância da legislação nacional) suficientemente clara acerca dos critérios para avaliação de riscos e celebração dos acordos. Obviamente, o ato normativo deve trazer em seu bojo as devidas diretrizes, pois, se estiver permeado de conceitos jurídicos indeterminados ou vagos, não terá a serventia esperada153.

No intuito de melhor aperfeiçoar a Administração Pública em consonância com o direito constitucional de petição do particular ao Poder Público, deve-se atribuir competências específicas a determinados órgãos da Administração, passando a receber parcela de poder indispensável “para analisar os casos concretos envolvendo Administração e cidadão, para afinal decidir acerca da controvérsia e adotar a melhor solução de acordo com a Constituição, com os princípios e com as leis154”.

Em outras palavras, não há justificativa alguma para tolher a possibilidade de as pessoas de direito público celebrarem acordos processuais em soluções autocompositivas, cabendo, porém, maiores esclarecimentos a respeito do teor de tais acordos, bem como de seus respectivos limites legais155.

152 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequências processuais (composições

em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) – versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 42, n. 264, p. 83-107, fev. 2017, p. 85.

153

“Sempre bom lembrar, ainda, que referir-se à legalidade como parâmetro, mesmo no quadro do sistema tradicional de resolução de conflitos pela via litigiosa, ao mesmo tempo que aponta para uma referência da maior relevância, não tem o condão de proporcionar uma solução tão clara para o conflito quanto os fetichistas da legalidade parecem crer”. SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo

entes públicos e a mediação de conflitos coletivos. Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94327/292011.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p 221.

Acesso em: 21 out. 2018.

154 DAVI, Kaline Ferreira. Composição de litígios pela Administração Pública sem intervenção do Judiciário.

Revista da Advocacia-Geral da União. Ano VII. N. 16. Brasília: 2008. p. 183-196., p. 194.

155 “Deixo claro, porém, meu entendimento de que todos estes pontos poderiam perfeitamente ser objeto de

normas administrativas internas dos órgãos da Advocacia de Estado, muito embora sua previsão em lei federal servisse tanto para dar maior estabilidade ao assunto como para concretizar de forma mais abrangente os princípios da legalidade, da isonomia, da eficiência e da razoabilidade da duração do processo judicial. De todo modo, fica sempre a possibilidade de que a lei traga diretrizes gerais e que cada órgão da Advocacia de Estado venha a detalhar procedimentos em seu âmbito interno”. SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de

solução de conflitos envolvendo entes públicos e a mediação de conflitos coletivos. Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94327/292011.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 227.