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Crise na universidade ou universidade em crise?

1. SAÚDE MENTAL DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS: DA CRISE INDIVIDUAL AO

1.2. Segunda Parte - Crise e Ruptura: reflexões sobre o pertencimento ao mundo

1.2.4 Crise na universidade ou universidade em crise?

Para Kaës (1982), faz parte da especificidade de nossa existência no mundo humano a elaboração constante de rupturas, desde o nascimento. De acordo com o autor, podemos discriminar dois modos de crise e conflito diante das rupturas inerentes à nossa existência. O primeiro deles, de ordem intrapsíquica (bastante ligado às transições do ciclo vital: adolescência, meia-idade, velhice), diz respeito ao questionamento da imagem de si, conforme o narcisismo infantil sofre abalos ao longo da vida, o que tensiona a uma busca por uma reformulação de si-mesmo e uma conformação ao próprio ideal de eu, constituído pela introjeção da idealização das figuras parentais. Conforme tal ideal vai se tornando impossível de ser alcançado, o sujeito se vê diante da necessidade de renunciá-lo. Nas palavras de Kaës,

[...] o dilema que enfrenta o sujeito em formação é o seguinte: ou por bem renuncia ao ideal para que ele não seja deformado – mas então o si-mesmo sofre deformações – ou deve manter o ideal para conformar nele a imagem de si debilitado – encontrando então inevitavelmente decepção e ataque (1982, p. 53, tradução nossa). Já o segundo modo de crise e conflito é de ordem sociocultural: “formar-se é perder um código social e, às vezes, o pertencimento a um grupo, em busca de outro que melhor se adeque às necessidades do momento” (KAËS, 1982, p. 53).

Tomando a experiência do jovem estudante ao entrar na universidade, podemos dizer que se entrelaçam conflitos de ordens diversas – intrapsíquicas e socioculturais – ligados à experiência de perda ou mudança do código. Há (ou deve haver) uma transição entre o eu que se quer ser e aquilo esperado pela família ou pela sociedade4.

É muito comum ouvir de estudantes – especialmente aqueles provenientes de classes populares – que, após a entrada na universidade, ambiente muitas vezes elitista, sentem-se sem lugar, estrangeiros. Já não são mais “de lá”, e ainda não são “daqui”, o que coloca em risco não somente sua possibilidade de pertencimento, mas toda a construção do “projeto de si”, de sua identidade.

Muitos jovens entram na universidade ainda no final da adolescência, de forma que ocorre uma sobreposição de processos de luto e ruptura: aquele ligado à passagem da vida infantil à vida adulta e, ao mesmo tempo, outro que envolve o percurso acadêmico e escolhas/possibilidades profissionais. O acesso ao mundo universitário se encontra, portanto, num intervalo entre rupturas. Entrar na universidade significa, assim, abandonar a dependência da família de origem, buscar autonomia, falar por si e se assumir como adulto, tomando para si paulatinamente a responsabilidade não somente pelo próprio sustento material, mas principalmente da própria sustentação psíquica. Já a saída da universidade implica a grande entrada na vida adulta.

Muito se tem falado sobre o prolongamento da adolescência nos nossos dias. Diante do temor que a assunção do papel de adulto num mundo cada vez mais cheio de dificuldades e adversidades comporta, para muitos estudantes, o prolongamento da vida universitária (seja via parcelamento da graduação, seja via pós-graduação) se

torna, algumas vezes, um caminho. Assim, no contexto contemporâneo, não somente a entrada na universidade tem se tornado tarefa complexa, mas também a possibilidade de saída, de abandono da identidade de estudante em busca de um posicionamento mais adulto.

Vivemos em uma época na qual são muitas as inseguranças e mudanças em curso (sociais, políticas, econômicas, culturais), o que coloca a continuidade de si em cheque. Num mundo no qual já não há mais garantias e as bases de sustentação se tornaram móveis, a possibilidade de apoio firme nos momentos de crise e ruptura também vacila. Sujeitos em transição, nesse mundo em câmbio permanente, eis o quadro que encontramos ao investigar o sofrimento universitário.

Retomando Bleger (1982), podemos falar da crise contemporânea como produto de enquadres permanentemente em dissolução, desde o enquadre primário ou fundante até as instituições pelas quais os sujeitos circulam, incluindo a universidade. Se o enquadre fundante é inconsistente, com apoios vacilantes, o sujeito se constitui de maneira frágil. Em outras fases da vida, participando de outros enquadres, se o sujeito não encontra sustentação nos enquadres institucionais, não há possibilidade de experiências reparatórias, de possibilidades de incremento de seu psiquismo.

Quando consideramos o sofrimento estudantil, coloca-se em questão o quanto tem sido falho o papel de suporte e mediação entre o estudante e a sociedade oferecido pela universidade, entre o adolescente que nela entra e o profissional adulto que dela sai, gerando sofrimento e adoecimento. Coloca-se em questão se o papel da universidade (pública, especialmente) tem sido formar bons profissionais que servirão à sociedade e à ciência ou tem sido responder com excelência às políticas de fomento de pesquisas e rankings internacionais de desempenho e produtividade, conforme já falado na primeira parte deste capítulo.

Recuperando o conceito de desamparo freudiano, diante da falência da função de mediação das instituições, novamente concluímos que estamos vivendo tempos de abandono à própria sorte. Kaës já fazia uso do conceito de desamparo para falar das experiências de ruptura. Nas palavras do autor:

[...] em maior ou menor medida, toda ruptura remete a outra fundamental que já ocorreu e cuja experiência fez marcas no sujeito através do drama do “Hilflosigkeit” (desamparo), a situação de sentir-se sentir-sem socorro nem recursos; drama ligado ao estado de

prematuridade específico da espécie humana, ao estado de profunda e vital dependência da mãe (ambiente materno) (1982, p. 62, tradução nossa).

Se o enquadre institucional já não faz mais a função de suporte das partes indiferenciadas da personalidade, a angústia dos sujeitos circula livremente, sem ter onde se depositar. Kaës, no entanto, ao longo de suas ponderações, acredita que há sempre possibilidades de o sujeito encontrar formas criativas de manejar sua angústia e desamparo, e reforça a importância da busca da reconstrução de apoios psíquicos no âmbito grupal, coletivo, psicossocial.