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O sofrimento estudantil dos sujeitos “individualizados”

1. SAÚDE MENTAL DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS: DA CRISE INDIVIDUAL AO

1.1. Primeira Parte - Mal-estar na universidade: notas sobre o desamparo

1.1.4. O sofrimento estudantil dos sujeitos “individualizados”

Leão, Ianni e Goto (2019b) localizam o sofrimento universitário no raio das transformações sociais que temos vivido nas últimas décadas. A sociedade individualizada, de consumo e desempenho/performance está no cerne dessa problemática. A partir do conceito de individualização proposto por U. Beck, os autores apontam que

[...] as crises produzidas social e institucionalmente são percebidas como crises individuais, à medida que se fragilizam as instituições e redes de proteção social, cada vez menos preparadas para lidar com o sofrimento e adoecimento psíquicos(LEÃO; IANNI; GOTO, 2019b, p. 51).

O conceito de individualização está referido a um processo sócio-histórico, relativo à perda de garantias experimentada pelos sujeitos diante da dissolução dos referenciais sociossimbólicos e institucionais que (n)os sustentavam. Se na

modernidade os riscos sociais – porque mediados por instituições de referência – eram coletivizados, na atualidade já não se apresentam mais possibilidades de mediação, de forma que o sujeito assume os riscos para si, responsabilizando-se individualmente pelas consequências de suas escolhas. Encontram-se os sujeitos, portanto, remetidos à “solidão da autorresponsabilidade, da autodeterminação e da autoameaça do viver e do amar, para as quais não estão preparados, tampouco equipados pelas condições externas (BECK; BECK-GERNSHEIM, 2017, p. 18 apud LEÃO; IANNI; GOTO, 2019b, p. 54).

Tal sobrecarga diante da autorresponsabilização individual, juntamente com a perda de referências, adoece os sujeitos, que passam a se sentir incapazes de decidir e agir. Assim, nesse

[...] quadro duplo e contraditório do processo sócio-histórico de individualização: os indivíduos se desoneram dos vínculos tradicionais da sociedade industrial moderna, mas são pressionados pelas demandas e regulações do mercado de trabalho e das necessidades de consumo e subsistência (LEÃO; IANNI; GOTO, 2019b, p. 54).

A insegurança atinge também as condições materiais de existência, incluindo a possibilidade de entrar na universidade e no mercado de trabalho. Houve um tempo em que uma formação universitária se configurava como uma garantia de acesso aos postos de trabalho, mas já não podemos dizer que isso se mantém: não há mais segurança no futuro.

A própria universidade foi perdendo seu caráter de mediação entre os estudantes e a realidade social, conforme tem se tornado uma espécie de universidade-empresa, nos termos de Dardot & Laval (2016), prezando pela eficiência e racionalidade administrativa, bem como pelo desempenho e performance dos alunos, com metas e cobranças que buscam transmutar os estudantes em sujeitos empresariais. Pinel (2019b) denomina como “modelo gestionário” essa forma de gestão organizacional na qual se observa o abandono gradual dos “ideais de dignidade” (valores instituintes presentes na fundação de um projeto institucional) em nome dos “ideais de utilidade” (busca de eficácia, performance, resultados, muitas vezes desconsiderando os valores fundantes da instituição).

Podemos entender que a missão fundante da universidade pública, a partir do tripé ensino, pesquisa e extensão, é de incentivar a criação e disseminação de

conhecimento nas diversas áreas do saber, contribuindo para melhorias na vida das pessoas e, dessa forma, dando retorno à sociedade pelo investimento que dela recebeu. É a sociedade o princípio e a referência de normas e valores que a universidade deve adotar. Porém, dentro da lógica gestionária, o que parece ter mais importância é a produtividade, a eficácia, o reconhecimento internacional, a busca de excelência, o sucesso e os benefícios para grupos particulares. Dessa forma, a universidade tem tomado a si própria como referência (e não a sociedade), em consonância com a lógica gestionária neoliberal, na qual os ideais institucionais de utilidade substituem os ideais de dignidade.

Tal modo de funcionamento tem impacto no cotidiano das práticas docentes e discentes. Professores e alunos estão sob o jugo das instituições de fomento à pesquisa, e isso implica submeter-se a regras de um jogo das quais não participaram da construção. É preciso produzir, é preciso produzir rápido e muito. A preocupação com a média ponderada dos alunos ou com a nota dos programas de pós-graduação ganha proporções volumosas. Isso impõe inquietações relativas à performance acadêmica e um ritmo de competição, principalmente entre os alunos. Nesse contexto, os colegas tornam-se adversários na corrida pelas bolsas-auxílio, por exemplo, o que dificulta ou até mesmo impede o estabelecimento de laços de afeto, de confiança, o compartilhamento de ideias e vivências, e tudo isso tende a tornar a vida universitária muito penosa.

Em relação à questão do sofrimento psíquico na universidade, quando os estudantes procuram algum tipo de amparo em saúde mental, não é incomum que busquem inicialmente por soluções químicas ou medicamentosas. Mais do que buscar algo capaz de proporcionar alívio ao seu mal-estar, procuram também por algo que possa turbinar seu desempenho. Da mesma forma, nem sempre o primeiro pedido de ajuda pelos estudantes é por escuta ou aconselhamento; muitas vezes eles vêm em busca de um diagnóstico, um código de um manual psiquiátrico, pois não se dá de forma automática o entendimento de que o adoecimento possa ter relação com sua interioridade, sua história, seu contexto. Ao contrário, busca-se uma causa externa, algum tipo de alteração na bioquímica do cérebro – e nesse sentido não é de se espantar, nos últimos anos, a explosão de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), bem como o aumento da prescrição do medicamento correspondente (LANDMAN, 2015). Tais constatações vão ao encontro

da dificuldade dos sujeitos pós-modernos em construir uma narrativa acerca de seu sofrimento, ocupados que estão em busca de aumentar sua eficácia e desempenho.

Diante de tudo que foi exposto, observamos que o desamparo dos sujeitos já não tem somente relação com a impossibilidade de satisfação de seus desejos, como na época de Freud. O desamparo se dá a partir da falta de referências, de modo que os sujeitos se sentem abandonados à própria sorte e sem perspectivas. Nesse sentido, poderíamos qualificar as mudanças sociais contemporâneas como eventos da ordem do traumático, que atingem os sujeitos justamente naquilo que lhes é originariamente constitutivo: a rede de referências simbólicas e sociais.

Quando procuramos o verbete “desamparo” no Vocabulário da Psicanálise (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001), temos que, de acordo com um entendimento dos primórdios da teoria freudiana, o estado de desamparo diz respeito à impotência do bebê humano diante da incapacidade de “empreender uma ação coordenada e eficaz” (p. 112), o que leva a um aumento de tensão da necessidade que o aparelho psíquico não pode ainda dominar. Por exemplo, quanto à necessidade do bebê de se nutrir do alimento da mãe: quando a mãe está ausente, há um aumento da tensão no psiquismo incipiente do bebê, que entra então em desamparo. O psiquismo humano se constitui sempre em relação a um outro; sendo assim, o estado de desamparo está em correlação direta com a dependência do bebê humano em relação à mãe (ou a um adulto cuidador).

Desta forma, o desamparo não se dá somente pela ausência da satisfação de uma necessidade. O desamparo se dá pela angústia de abandono à própria sorte, pela falta da referência de um outro (ou Outro) amparador. É disso que estamos falando quando falamos do “neossujeito” que se sente ineficaz ou do sujeito individualizado, sobrecarregado de responsabilidades: o sujeito pós-moderno é um sujeito em desamparo, sem referências, abandonado à própria sorte (ninguém virá acudi-lo mesmo, afinal). Conforme dito no início do capítulo, esse é o panorama no qual está localizado o sofrimento estudantil universitário.

1.2. Segunda Parte - Crise e Ruptura: reflexões sobre o pertencimento ao