• Nenhum resultado encontrado

Saúde mental no CRUSP: reflexões sobre rupturas e travessias

4. CARTOGRAFANDO AS DIMENSÕES DO SOFRIMENTO ESTUDANTIL NO CRUSP 100

4.3. Saúde mental no CRUSP: reflexões sobre rupturas e travessias

Ao longo dos diversos temas ilustrados pelas entrevistas aqui apresentadas, ensejei trazer ao leitor um panorama da experiência estudantil no CRUSP, como um convite a uma aproximação das vivências trazidas de maneira muito intensa pelos estudantes-moradores, acompanhando-me na tarefa de testemunhar.

Este trabalho de pesquisa de campo, embora em parte realizado dentro dos parâmetros do distanciamento social imposto pela pandemia SARS-COV-2, permitiu uma aproximação muito viva das vivências estudantis na moradia universitária. Toda escuta foi muito mobilizadora, vivida em meu corpo e em meu psiquismo: dor, fome,

tensão, insônia e tristeza foram algumas das sensações e sentimentos que me acompanharam, conforme detalhei no início deste capítulo, como efeitos da escuta em transferência.

Em busca de teorizar a respeito dos efeitos transferenciais da escuta do CRUSP em mim enquanto pesquisadora, recupero uma reflexão proposta por Pinel (2019a), segundo a qual a defrontação com a problemática dos limites e da precariedade dos vínculos pode trazer àqueles que lidam com tais questões sentimentos de impotência e desamparo, como uma contaminação psíquica em decorrência da invasão pela massividade das problemáticas apresentadas. Vacheret (2015) nomeia esse tipo de transferência como transferência por depósito, um fenômeno que acontece de forma que aquele que escuta se torna

depositário, sem ter consciência, de uma parte indizível e irrepresentável da história ou da experiência precoce do sujeito, que só pode representá-la na mente do outro, em sua psique, a fim de que o outro transforme esses depósitos em representações e em estados afetivos, finalmente ligados entre si pelas palavras e pela fala, oriunda da simbolização (p. 83).

Dentro do campo transfero-contratransferencial instalado nas entrevistas, me percebi contaminada por sensações e afetos pouco elaborados, da ordem do processo primário, clamando por sentido (e pelo sentir). O processo de escuta em transferência (mesmo fora da situação analítica clássica, conforme vimos no Capítulo 3) possibilitou realizar um diagnóstico transferencial da problemática estudantil no âmbito do CRUSP: há algo de irrepresentável ali, que pede por testemunho, interlocução e tradução.

De acordo com Blum (2014), quando trabalhamos com o irrepresentável, estamos também trabalhando com vivências da ordem do trauma. O irrepresentável pode levar o sujeito a um estado de exílio ou de desapropriação psíquica e afetiva, capaz de lançá-lo para um tempo fora do tempo, um tempo estrangeiro, fora do campo simbólico. Trata-se de um estado de ruptura, nos termos de Kaës (1982), que acontece quando sofrem abalos os alicerces que sustentam o psiquismo e o sentimento de permanência e continuidade de si.

Embora neste capítulo a questão da ruptura tenha sido apresentada como parte do processo de entrada na vida universitária, foi possível observar em alguns casos que tal ruptura pode se dar de maneira bastante radical, configurando uma desfiliação

(FURTOS, 2007). Nesses casos, já instalada a autoexclusão (quando o sujeito se torna estrangeiro de si, assim como do mundo dos humanos), torna-se mais difícil o reestabelecimento de um caminho de volta ao mundo compartilhado, ficando o sujeito perdido no meio da travessia. Tal condição se dá também como efeito da ausência do respondedor, o que reforça o quão traumático pode ser tal mecanismo.

Blum (2014) entende o trauma como um aprisionamento do sujeito em um estado bidimensional, no qual se encontra prejudicada a possibilidade de intermediação eu-mundo. A transicionalidade, o espaço do simbólico e da criação ficam impedidos, incluindo a palavra ou possibilidade de narrativa de si e do mundo. Na bidimensionalidade, fica comprometida a possibilidade de se pensar o tempo como continuidade, como se somente existisse o agora. Para Blum, mais do que a ameaça da perda de objetos, existe a ameaça da perda da representação dos objetos. De acordo com o autor, para superar a linearidade e repetição advinda do traumático, é preciso criar ou recuperar a condição de tridimensionalidade do mundo humano compartilhado, restabelecendo o trânsito psíquico que possibilita a simbolização. Assim, quando lidamos com problemáticas relativas ao irrepresentável ou ao traumático, é preciso criar dispositivos que possam estabelecer um ponto de apoio a mais, um ponto de fuga: “Um ponto a partir do qual a perspectiva aconteça e a profundidade se estabeleça” (BLUM, 2014, p.115).

Um ponto de fuga constitui-se como um outro ponto de vista, que instaura uma nova dimensão, possibilitando imersão em novas profundidades e abertura de perspectivas que inexistiam até então. Para Blum, é no plano da clínica, no plano do testemunho que se efetiva a possibilidade deste resgate dos sujeitos ao espaço da tridimensionalidade e da sustentação simbólica. Para Waintrater (2003, p. 3 apud BLUM, 2014, p. 115-116):

O testemunho é um relato que conjuga uma reflexão do sujeito sobre sua vida e a descrição de acontecimentos aos quais ele foi submetido e que fazem do narrador uma testemunha. Todo testemunho contém um endereçamento ao outro, o destinatário potencial, aquele que está lá para acolher o testemunho e se tornar testemunha da testemunha.

Para Blum (2014), um testemunho é algo singular e ao mesmo tempo plural: singular, pois é único, pessoal; e plural em seu caráter universal, como parte da experiência humana. Testemunhar diz respeito à passagem de uma singularidade

estéril a uma ficcionalidade fértil que rompe com o duplo vínculo (bidimensional) que aprisiona o sujeito entre o trauma e o irrepresentável, entre a exclusão e o silenciamento, entre a precariedade e a morte subjetiva. A quebra desta bidimensionalidade só pode ser feita pela palavra e pela criação, que se dão no plano da clínica e do laço social, do vínculo. Aquele que testemunha busca transmitir suas experiências traumáticas a um outro (ou mais de um outro) que se põe a imaginá-las (imaginar o inimaginável, muitas vezes), tornando-se aquele que escuta uma testemunha do testemunho, rompendo a bidimensionalidade. Abre-se a possibilidade da tridimensionalidade, da intermediação e, assim, o restabelecimento do sujeito ao tecido social ou ao mundo dos humanos. Dessa forma, cria-se a possibilidade do retorno do exílio e reposicionamento do sujeito em sua travessia, em busca de novas formas de existir.

Refletindo sobre a questão do traumático no âmbito do CRUSP, entendemos que toda a experiência de vida do estudante é ressignificada na ocasião de seu ingresso na universidade. O sofrimento estudantil não diz somente respeito aos problemas anteriores à entrada na universidade, mas principalmente às condições que encontra e aos questionamentos que surgem ao entrar. Dessa forma, a dimensão do traumático está remetida a algo que acontece no momento presente da vida do jovem estudante na universidade, seja por estar exposto a problemáticas da precariedade sem poder contar com as defesas do código de sua comunidade de origem, seja pela demanda de rearranjo psíquico por conta da realização de uma conquista muito idealizada, seja, ainda, pelas experiências de violência vividas na própria moradia – tudo isso em um momento ainda constitutivo da vida psíquica, na passagem da juventude para a vida adulta e na perspectiva da passagem da vida de estudante para uma nova vida profissional.

Neste trabalho, proponho que a entrada na universidade, assim como a possibilidade de saída com um diploma nas mãos, trata-se de um processo de travessia, de atravessamento de mundos, de transposição de lugar. Para que tal processo aconteça, é preciso que haja condições de sustentação ao longo do percurso. Blum (2015) desenha o trabalho de testemunhar o testemunho como uma terceira margem, como um ponto de apoio intermediário entre o passado e o futuro. Podemos pensar que a terceira margem é aquela que propicia um amparo a mais no fluxo das águas turbulentas, possibilitando a conquista da travessia do rio da vida, do

ponto de partida até o ponto de chegada. No contexto do sofrimento estudantil no CRUSP, podemos pensar que o rio é a vida universitária. O estudante parte de sua margem de origem e mergulha nas águas com tudo aquilo que carrega. Em plena turbulência, quando já não vê mais a margem de partida e ainda não vislumbra a margem de chegada, se não houver algum ponto de apoio para a transposição do trajeto inicialmente planejado, corre-se o risco de ser derrubado pela correnteza. Mas se há possibilidade de parada, de organizar a carga e tomar fôlego, torna-se possível seguir e alcançar o outro lado, vencer o rio e retornar à terra firme. Assim, destacamos na presente discussão a importância da construção de dispositivos de terceira margem como meios de ancoragem (ou intermediação) para que a travessia do estudante na universidade venha a ser efetivada.