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Território geográfico, território existencial

2. MORAR NA USP: A POSSIBILIDADE DE HABITAR UM LUGAR SOCIAL

2.1. Primeira Parte - Sobre habitar a moradia universitária

2.1.3. Território geográfico, território existencial

Quando pensamos no conceito de território, não estamos nos referindo somente ao espaço físico, geográfico, do chão onde se pisa. Pensar sobre o território implica percebê-lo como um espaço pulsante por onde se caminha, levando em conta o próprio sujeito caminhante e tudo aquilo e aqueles que lhe interpelam ao longo da trajetória, bem como as interpelações que ele mesmo produz. Pensar sobre o território implica também articular a dimensão do espaço com a dimensão do tempo, da longitudinalidade, a partir de uma perspectiva histórica.

Para falar sobre território, destacamos algo do pensamento de Milton Santos, geógrafo brasileiro, cujo trabalho se destaca no campo da saúde coletiva, ampliando as concepções de (uso do) espaço. Para Milton Santos, um território “seria formado pelo conjunto indissociável do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso ou, em outras palavras, a base técnica e mais as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica e política” (SANTOS, 2002, p. 87 apud LIMA; YASUI, 2014, p. 597). O autor diferencia o uso do território do território em si, porém aponta para uma inseparabilidade entre a estrutura e funcionamento da sociedade de seu espaço geográfico. Dessa forma, uma compreensão acerca dos processos sociais, econômicos e políticos que atravessam determinado território possibilita entender sua dinâmica e vice-versa.

Milton Santos era um pensador bastante crítico dos processos de globalização e do neoliberalismo político-econômico; por meio da geografia humana, buscou mostrar os efeitos desses processos históricos, destacando que as relações no mundo globalizado, ou melhor, a incidência do poder (econômico) global no âmbito local produz fragmentação nos territórios e nas relações (BROIDE, 2016; SANTOS, 1996). Santos, falando sobre o território, aponta: “o que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida” (1998, p. 15) e, dessa forma, o entendimento da dinâmica territorial é “fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda de sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro” (1998, p. 15). Podemos inferir aqui que o território possui uma dimensão de enquadre ou metaenquadre, nos termos blegerianos e kaesiano. Também podemos entender o

território como o lugar onde a subjetividade pode se constituir, onde a vida e as relações se desenvolvem, onde os sujeitos buscam produzir sentido para a própria existência:

O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. (SANTOS, 1999, p. 8).

De acordo com Lima e Yasui, o conceito de território envolve a ideia de articulações, de movimentos e até mesmo de trocas intersubjetivas: “a ideia de um território transitaria do político para o cultural, das fronteiras entre os povos aos limites do corpo e aos afetos entre as pessoas” (2014, p. 597). A partir das reflexões acima, podemos compreender que o território

[...] é relacional. Ele diz respeito à construção e à transformação que se dão entre os cenários naturais e a história social que os homens inscrevem e produzem: memórias dos acontecimentos inscritas nas paisagens, nos modos de viver, nas manifestações que modulam as percepções e a compreensão sobre o lugar; relações que surgem dos modos de apropriação e de alienação desse espaço e dos valores sociais, econômicos, políticos, e culturais ali produzidos; modos múltiplos, contíguos, contraditórios de construção do espaço, da produção de sentidos para o lugar que se habita por meio das práticas cotidianas (LIMA; YASUI, 2014, p. 597).

Temos, portanto, que o território é o espaço relacional onde a vida acontece. Preocupados em pensar a relação entre a clínica, a subjetividade e os territórios, Lima e Yasui (2014) nos apresentam a noção de “território existencial”, que diz respeito à apropriação subjetiva do espaço material e afetivo, buscando a constituição de um lugar para se viver.

Retomando a questão da moradia universitária, neste trabalho buscamos olhar o CRUSP como território, em busca da construção de um entendimento acerca dos modos de vida e de produção de saúde/doença que ali acontecem. Entendemos o CRUSP como uma comunidade com muitas particularidades, com modos de expressão singulares, com uma história marcada por conflitos e até mesmo por certa estigmatização dentro da comunidade universitária. Embora seja um lugar impermanente, pois pretende-se que seja um lugar de passagem para os estudantes-moradores, comporta também um fundo de permanência, algo transmitido, explícita

ou implicitamente, aos recém-chegados pelos que ali estão – estes últimos também herdeiros de histórias que se misturaram às suas vivências.

Para Lima e Yasui (2014), apoiados no pensamento de Deleuze e Guattari (1997), os territórios contêm possibilidades de desterritorialização e reterritorialização. Temos, na moradia estudantil, uma condição da qual o estudante-morador não pode se desvencilhar em sua chegada: abandonar, mesmo que temporariamente, seu território existencial original, ou seja, tudo que lhe era familiar e próprio (desterritorialização) para construir ali um novo território (reterritorialização).

De um ponto de vista clínico, Lima e Yasui (2014) defendem que todo processo de desterritorialização precisa ser acompanhado, cuidado e investido para que a reterritorialização possa acontecer. Trata-se de um processo criativo que demanda também possibilidade de sustentação e de amparo por parte do ambiente (família, grupos, instituições).

Sobre a moradia estudantil, há ainda a necessidade de busca de novos territórios quando se encerra o tempo destinado a ocupar o espaço, geralmente por ocasião da conclusão de uma graduação ou pós-graduação. Estamos falando, portanto, de sucessivas demandas de desterritorialização e reterritorialização, processos que só podem se concluir quando há recursos psíquicos e materiais, bem como a possibilidade de sustentação destes pelo sujeito e pelo ambiente.

De acordo com Lima e Yasui (2014), uma morada deve constituir-se como um contorno que possa propiciar ancoragem e proteção. Ainda, segundo os autores: “É preciso pertencer a um território para desterritorializar-se” ou, como nos ensina Winnicott, “não há originalidade sem uma base de tradição” (1975, p. 602). Entendemos assim que todo movimento de travessia interterritorial (ou entre moradas) demanda a existência (ou ao menos a possibilidade de criação) de pontos de apoio, de chão firme para pisar, de margens para se escorar.

Neste subcapítulo, partimos da ideia de território, pensado como moldura mais ampla, e agora devemos avançar para olhar em direção a um enquadre mais micro, localizado no ambiente de morada, onde acontece o habitar. Conforme assinalado, é a própria moradia o anteparo que faz a intermediação entre o Eu e o mundo, o que discorreremos a seguir.