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PARTE 1 A NARRATIVA DIGITAL COMO SISTEMA 38

1. O que é narrativa digital? 38

1.2. O comportamento do sistema narrativo 50

1.2.3. Critérios de noticiabilidade 58

Os tradicionais critérios de noticiabilidade e valor-notícia47 do jornalismo — como o excesso, a falha ou a

inversão citados por Duarte (1999) — revelam com bastante clareza em quais camadas do sistema

narrativo o jornalista atua por tradição. Os valores que têm a ver com o conteúdo na notícia (acontecimentos e dados a serem transformados em notícia); os valores ligados à disponibilidade do material e aos critérios relativos ao produto informativo (processos de produção e realização), os valores que consideram a audiência (imagem que os jornalistas fazem acerca dos que consomem as

47 Traquina (2002, p. 173) define o conceito de noticiabilidade como “o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isso é, de possuir valor como notícia”.

noticia); todos esses valores indicam que há uma incidência do trabalho do jornalista em algumas camadas do sistema narrativo: levantamento de dados, seleção e inserção de dados no sistema, definição de formatos.

A recolha de fontes, a seleção de informações e o formato da narrativa constituem critérios habitualmente ativados ao longo da modelagem narrativa não-digital e que são igualmente levados ao processo de modelagem da narrativa digital. O que não corresponder aos requisitos citados, ou por não ser adequado às rotinas produtivas do jornalismo ou aos seus cânones, então é comumente descartado. Não adquirindo o estatuto de notícia — de uma história a ser contada — perder-se-á, pelo menos no âmbito jornalístico (Wolf, 2003, p. 190). Isso não será a regra, por exemplo, para o chamado jornalismo de dados que se sustenta em dados ainda sem valor-notícia identificados.

Como poderemos notar ao longo deste estudo, é nas camadas mais profundas e subterrâneas do contexto digital que são levadas a cabo decisões e aplicadas estratégias pouco familiares aos jornalistas. Já nas camadas mais superficiais encontram-se as decisões mais próximas à cultura jornalística tradicional: o desenho da interface do usuário (a vitrine), a escolha de títulos, a disposição de imagens, as possibilidades de hiperligações de aprofundamento.

Tais critérios de noticiabilidade não prevêm, portanto, como o jornalista deva guardar um certo dado em um banco de dados e como ele poderá recuperá-lo mais tarde, extraindo pautas ou gerando visualizações de dados. Ou seja, os critérios incidem pouco sobre o momento de antenarração (a pré- narrativa, a narrativa em potencial, ainda sem enredo), tão caro ao sistema narrativo. Inexistem valores- notícia que estimulem o jornalista a trabalhar em camadas mais profundas da modelagem narrativa. Os conhecidos critérios de noticiabilidade não dão conta de estimular o jornalismo de dados ou a visualização de dados. Será preciso observar as novas práticas sistêmicas para desvelar os critérios de noticiabilidade que dialogam com dados e metadados, sobretudo.

É fato que nos meios tradicionais, o processo de newsmaking está baseado na desconstrução das informações para uma posterior edição e apresentação das mesmas em um formato jornalístico (Wolf, 2003, p.244) – como o é também num contexto digital. Mas em nenhum momento da história, essa desconstrução poderia ser também gerenciada pela máquina e por recursos computaconais, como ocorre na atualidade.

desenho do sistema narrativo é que a atuação do jornalista, uma vez realizada à moda tradicional, revela- se insuficiente e limitada — porque incide apenas em uma parte da modelagem narrativa, e não no sistema como um todo. Diríamos que incide muito mais no frontend (interface final) que no backend48

(bastidores).

Note-se que estamos longe de sugerir aqui que os jornalistas façam códigos para o backend. Já procuramos deixar isso claro em nossas Hipóteses. Sugerimos, porém, que no momento histórico em que vivemos o jornalismo se abra para ter contato com o modus operandi dos diversos estratos do sistema – o que lhe daria a vantagem de compreendê-lo e tirar deste entendimento algum proveito comunicacional. Assume-se que os jornalistas podem compreender sistemas sem precisarem se tornar matemáticos ou programadores, um ponto que já vem sendo trabalhado pela Universidade de Columbia através do curso49 de mestrado em Jornalismo e Computação, onde os alunos têm aulas de Introdução às bases de dados, Inteligência Artificial, Desenho da Interface do Usuário, Análise de Algoritmos e Sistemas de Visualização de Informação entre outras disciplinas atualmente ignoradas pelos cursos de Jornalismo tradicionais.

É preciso observar que não podemos cair na armadilha de considerar que atuar em todos os estratos do sistema daria ao jornalismo total controle e poder sobre a modelagem da estrutura narrativa. É preciso ter em conta que na perspectiva do pensamento sistêmico não há espaço para o controle e a predição. Trata-se de um erro provavelmente oriundo da mentalidade do mundo industrial, a qual assume que há uma chave para a previsão e controle (Meadows, 2008, Kindle Edition, Location 3118).

A questão aqui é menos de controle e mais do sentido da ação realizada. O jornalista está acostumado a atuar em partes dos estratos com ações que no contexto digital não necessariamente irão fazer sentido para o todo do sistema. Na teoria dos sistemas, esse é o conceito de racionalidade limitada (bounded

racionality) desenvolvido por Herber Simon em 1957: as pessoas são levadas a tomar decisões

limitadas, ou seja, que fazem sentido dentro de uma parte de um sistema, mas não são razoáveis dentro de um contexto mais amplo, ou quando vistas como uma parte do amplo sistema (Simon, 1972). Ou

48 Cf. Lista de siglas.

49 O programa é projetado para fornecer aos alunos habilidades em Ciência da Computação e Jornalismo de forma a prepará-los para as novas carreiras de mídia digital em jornalismo. Os alunos saem com certificação dupla em ambos os campos. Endereço eletrônico do curso:

sistêmico.

O conceito de racionalidade limitada explica por qual razão as pessoas geralmente buscam assumir decisões racionais, ou seja, são adaptáveis e orientadas a objetivos claros, mas nem sempre isso acontece; não por serem irracionais, mas porque a arquitetura emocional ou cognitiva do ser humano falha (Jones, 1999). O conceito foi proposto como uma base alternativa para a modelagem matemática de tomada de decisão, usada em economia e disciplinas afins. Simon afirma que o tomador de decisão é um satisficer, busca uma solução satisfatória e não um ideal, tal como irá se esperar do jornalista.