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2. Semiótica da canção

2.6. Critérios para o exame da melodia

Tatit (1994, 1996 e 1997) fala de três formas de compatibilidade entre melodia e letra, fundamentais para o exame da canção: figurativização, tematização e passionalização14.

A figurativização está presente em toda canção, na medida em que lhe confere o indispensável efeito enunciativo. Varia, no entanto, o seu grau de investimento. As canções que tendem para a figurativização se aproximam bastante da linguagem oral cotidiana, como se houvesse uma integração “natural” entre o que está sendo dito e o modo de dizê-lo na fala cotidiana. Neste tipo de integração entre melodia e letra, as ascendências e os descensos característicos das enunciações entoativas próprios da fala podem ser expandidos ou contraídos pelo cancionista, de acordo com os efeitos entoativos que ele deseja imprimir na condução das mensagens veiculadas pela letra. O cancionista, então, conduz o projeto entoativo de uma canção criando, pela melodia, os efeitos de indagação, exclamação, hesitação e asserção. Pela atuação da figurativização, a melodia em vez de se ater à métrica, aproxima-se da fala e reproduz suas marcas na condução da letra.

A preponderância deste procedimento cria um sentimento de verdade enunciativa, que aumenta a confiança do ouvinte no cancionista e faz parecer que este não está fingindo, mas efetivamente vivenciando o que diz. Este procedimento sugere ao “ouvinte verdadeiras cenas (ou figuras) enunciativas” (TATIT, 1996, p. 21), simulando de tal modo uma interação direta entre intérprete e ouvinte, que este último, não raras vezes, jura que o que está sendo dito está sendo dito para ele. Este efeito se dá, porque o cancionista, pela figurativização, “projeta-se na obra, vinculando o conteúdo do texto ao momento entoativo de sua execução. Aqui, imperam as leis da articulação lingüística, de modo que compreendemos o que é dito pelos mesmos recursos utilizados no colóquio” (TATIT, 1996, p. 21).

A tematização, por sua vez, caracteriza-se pelo investimento na segmentação, na proeminência dos ataques consonantais, na marcação dos acentos, na recorrência de motivos melódicos, na aceleração e na descontinuidade. Este tipo de tratamento melódico se coaduna com letras em que predominam uma conjunção eufórica, celebrada pelo autor. Aqui, o cancionista, ao formar a subdivisão dos valores rítmicos (TATIT, 1996, p. 22), está

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Como exemplo de canções em que há proeminência da figurativização, da tematização e da passionalização, citem-se, respectivamente, Sinal fechado (Paulinho da Viola), Aquarela do Brasil (Ari Barroso) e Atrás da porta (Chico Buarque).

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convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos, para criar, como na letra, um efeito de conjunção, de identidade, de concentração melódica.

Uma canção conduzida pela tematização se desenvolve sob o signo da conjunção, e a recorrência de motivos melódicos nela cria um efeito de “involução”, como se a melodia apontasse para um centro de identidade gerado por uma força de concentração, ou, para usarmos as noções de fluxo temporal de Zilberberg, de contenção do tempo.

O campo de tessitura, neste caso, é pouco explorado, e a melodia evolui horizontalmente. Esta força de concentração, por sua vez, decorre da confluência do andamento rápido e da reiteração de motivos melódicos: esta funcionando como um moderador da velocidade ao criar a previsibilidade musical e refrear o ímpeto melódico. O

refrão, por exemplo, assume uma função similar. Em termos extensos, isto é, das relações

à distância, ele se constitui igualmente como um moderador da velocidade. Por outro lado, as outras partes da canção têm uma função de desdobramento melódico. Ao atuarem como força centrífuga, imprimem um efeito de evolução e apontam para a “alteridade” melódica. O mesmo se pode dizer dos saltos de tonalidade ou saltos intervalares de uma canção temática, pois eles representam uma força de expansão melódica, na medida em que inauguram, muitas vezes, novas zonas de exploração tonal fora da previsão tematizante que o contorno até então delineava. Trata-se da presença da alteridade melódica atuando como força centrífuga.

Do exposto, extrai-se que uma canção marcada fortemente pela tematização não deixa de apresentar elementos que subvertem sua tendência involutiva, abrindo o contorno melódico para novas direções. Ou seja, em canções dominantemente temáticas, a evolução sempre tende a se insinuar, nem que seja apenas para valorizar o retorno à tendência tematizante global da composição. Assim, as forças de concentração e de expansão estão sempre atuantes na canção, sempre presentes, o que varia é o grau desta presença. Tudo se passa como se o movimento de concentração melódica, uma vez atingido certo limiar, difícil de determinar a priori, reclamasse a sua resolução, originando, pelo excesso de tematização, o sentimento de falta do movimento contrário.

Este movimento de expansão melódica, contrário ao movimento de concentração próprio da melodia tematizada, caracteriza o processo de passionalização. Este se efetiva quando há investimento na continuidade melódica, no prolongamento das vogais, nas amplas oscilações da tessitura tonal. Através deste procedimento, o autor está sobredeterminando toda a canção com os estados passionais sugeridos, na maioria das

vezes, pelo conteúdo das letras. Ao contrário da tendência à tematização, fundada na força de concentração melódica, o tratamento passionalizante faz a melodia evoluir, instaurando um percurso de busca e valorizando os pontos de passagem em função de um fim, o retorno à identidade melódica, abalada pela intervenção da alteridade, na qual a melodia se demora. Assim, por contraste com a tematização, a conformação passionalizante da melodia funda-se numa força de expansão melódica.

Ao contrário do que acontece na tematização, o andamento é lento na passionalização. Como conseqüência disto, o contorno melódico é valorizado ao mesmo tempo em que prevalece a desigualdade temática. No entanto, os saltos intervalares, isto é, as mudanças bruscas de tom, que confirmam a tendência à exploração vertical das alturas própria à passionalização, têm também a função de atenuar o excesso de desaceleração das melodias passionalizantes, na medida em que quebram a gradação dos contornos melódicos, imprimindo um quê de imprevisibilidade na cadeia sintagmática e, conseqüentemente, certa aceleração. Em melodias deste tipo, longos segmentos de canções que contrastam em termos de tonalidade e que constituem as suas partes desempenham, no toda da obra, função semelhante à dos saltos intervalares. Tais transposições de altura funcionam como elementos de aceleração para contrabalançar a tendência à desaceleração das melodias predominantemente passionais.

Dito isto, importa destacar, novamente, que a canção deve ser analisada sem que se privilegie qualquer de suas duas linguagens, verbal ou musical. Tatit se esforça para fornecer um modelo de descrição deste objeto sincrético, sobretudo porque reconhece a presença da fala, e de suas inflexões naturais, na constituição e no desenvolvimento do gênero no Brasil. Por outro lado, o autor pondera, como vimos, que a canção se afasta da linguagem coloquial cotidiana porque, nela, o plano da expressão não possui uma função apenas interina. Pelo contrário, o modo de dizer uma canção é fundamental, seu material sonoro é constitutivo do conteúdo veiculado por ela e não mero meio de acesso a ele. Por isso, a atenção do analista deve voltar-se para a canção como objeto semiótico sincrético, em que, no mínimo, duas linguagens se hibridizam, a verbal e a musical (ritmo e melodia, pelo menos).

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