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2. Semiótica da canção

2.7. Melodia e letra compatibilizadas

A importância da necessária compatibilidade entre melodia e letra, como recurso para criar um efeito de sentido unificado, fica evidente neste comentário extraído de Wisnik (2003). Diz ele, que, durante o Estado Novo, o Departamento de Imprensa e Propaganda incentivou sambistas a fazerem canções elogiando o trabalho para combater a malandragem. O esforço malogrou. A razão está no fato de que, embora as letras assumissem um ethos cívico, “essa intenção era contraditada pelo gesto rítmico, pelas pulsões sincopadas, que (...) opõem um desmentido corporal ao tom hínico e à propaganda trabalhista” (p. 206). Se admitimos, então, esta necessária compatibilidade, vamos ao como ela se processa.

Conforme foi dito, a tendência à figurativização cria um efeito enunciativo, um valor de realidade, que presentifica o momento da enunciação, como se a experiência relatada fosse um aqui-agora. A presença da fala repercute na letra da canção, e as marcas lingüísticas disto são evidentes. Todos os recursos utilizados para presentificar a relação

eu/tu (enunciador/enunciatário) num aqui/agora, como vocativos, imperativos,

demonstrativos etc., servem para criar o efeito enunciativo próprio a toda canção. Em produções deste tipo, a melodia aproxima-se da entoação lingüística, criando o efeito de que, ali, se relatam acontecimentos cujas circunstâncias são revividas a cada execução15.

No dizer de Tatit, a tendência à tematização, tanto melódica quanto lingüística, atende às necessidades gerais de manifestação de uma idéia e de sua celebração. Sobre isto, diz o autor:

A qualificação de uma personagem (a baiana, a mulata, o folião, o jovem ou o próprio narrador) ou de um objeto (o samba, a dança, o país etc.) é uma das principais formas de manifestação da reiteração na letra. A exaltação, a enumeração das ações de alguém (O escurinho ou Pedro Pedreiro, p. ex.) ou a própria construção de um tema homogêneo (a rotina em Cotidiano ou Você não entende nada ou ainda a natureza em Águas de

março ou Refazenda, por ex.), funcionam muito bem como espelhamento das

reincidências melódicas. Este tipo de compatibilidade simples já permite a identificação de inúmeras canções quase didaticamente construídas: Falsa baiana, O que é que a

baiana tem, Palco, Garota de Ipanema, Beleza pura etc. Reiteração da melodia e

reiteração da letra correspondem à tematização. (TATIT, 1997, p. 102-103)

A tendência à passionalização reside no investimento na continuidade melódica, no alongamento das vogais, sintomas das tensões internas do cancionista, que, transferidas

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Tatit (1997) exemplifica com as canções Conversa de botequim, Acorda, amor, Da maior importância,

para a emissão prolongada das freqüências e/ou para as amplas oscilações tonais, configuram extensamente a canção, modalizando-a com os estados passionais do enunciador. Se a tematização se dá no nível somático, a passionalização desvia o foco para a dimensão psíquica. A propósito, mais uma vez deixemos a expressão com Tatit:

A configuração de um estado passional de solidão, esperança, frustração, ciúme, decepção, indiferença etc., ou seja, de um estado interior, afetivo, compatibiliza-se com as tensões decorrentes da ampliação de freqüência e duração. Como se à tensão psíquica correspondesse uma tensão acústica e fisiológica de sustentação de uma vogal pelo intérprete. O prolongamento das durações torna a canção necessariamente mais lenta e adequada à introspecção. Afinal, a valorização das vogais neutraliza parcialmente os estímulos somáticos produzidos pelos ataques das consoantes. O corpo pode permanecer em repouso, apenas com um leve compasso garantindo a continuidade musical. Todas as canções românticas possuem essas características próprias do processo de passionalização. (TATIT, 1997, p. 103)

Dietrich (2004) organiza estas três tendências (sempre presentes na canção, variando apenas o grau de presença) num quadrado semiótico que permite visualizar o modo de articulação entre elas.

leis musicais

tematização passionalização

não-passionalização não-tematização

figurativização (fala)

Segundo este quadrado semiótico, tanto a tematização quanto a passionalização representam a presença da música na canção, com suas leis de tratamento sonoro. Atuam, portanto, como forças que visam a perenizar o material sonoro da fala, imprimindo-lhe contornos melódicos que o tornem memorizável, pela contensão do fluxo temporal que o caracteriza. Ambas se conjuntam no eixo complexo que as subsumem: as leis musicais.

A fala, por sua vez, constitui o termo neutro, a subsunção dos contraditórios da passionalização e da tematização, a ausência do tratamento musical, uma espécie de “ponto

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zero” em que o plano da expressão não vale como substância sonora, mas, sim, como mera via de acesso ao conteúdo.

Uma observação importante se impõe aqui. Apesar de o quadro apresentar a tematização, a passionalização e a figurativização como termos de uma estrutura semântica, devemos compreendê-las como processos que atuam simultaneamente na canção, ou ainda, como forças que exercem poder de atração, localizando cada canção, cada segmento de canção, e, por conseguinte, o próprio fazer cancional, em pontos específicos do diagrama. Isto porque não se deve conceber, por exemplo, a ação da passionalização sem a interferência das duas outras forças complementares a ela, e isto vale para qualquer uma das tendências. A exclusividade de um dos processos descaracterizaria a canção como tal, cuja existência depende da tensão entre estes três modos de integração entre melodia e letra. A escolha e a dosagem dos recursos da tematização, da passionalização e da figurativização geram efeitos de sentido diversificados na canção. Por exemplo: o mero investimento em graus tonais imediatos ou em saltos tonais intervalares age na percepção da continuidade, fazendo a composição oscilar entre os pólos do contínuo e do descontínuo, respectivamente, criando efeitos de aceleração ou desaceleração em seu percurso melódico.

Estes três modos de integração entre melodia e letra povoam o universo da canção de consumo em dosagens variadas. Estando sempre co-presentes, variam quanto ao modo de sua existência semiótica em discurso. Assim, a realização da tematização ou da passionalização não suprime a figurativização, sempre atual, uma vez que não se pode prescindir da fala para a existência da canção. Por isto, as marcas da irregularidade modulatória da fala não deixam de comparecer no texto cancional, caso contrário, perder- se-ia o seu necessário caráter enunciativo.

Estes três modos de compatibilização entre letra e melodia mantêm, como se vê, uma relação tensiva entre si, e a presença dominante, recessiva ou residual delas em uma dada canção é obra das escolhas do cancionista, que visa criar um dado efeito de sentido, controlando a apreensão do ouvinte pela disposição de tais modos de compatibilização no campo discursivo.

Se, por exemplo, a presença da tematização torna-se demasiadamente forte (intensidade do foco no campo de presença discursivo), a passionalização se potencializa, como resposta ao excesso de concentração patrocinado pela tematização, e vice-versa. Em outras palavras, a predominância das formas involutivas (tematização e refrão) implica a

intervenção das formas evolutivas de desdobramento do contorno melódico, expandindo o campo de tessitura explorado pela canção, e vice-versa.

No que tange à relação entre os regimes de concentração e de expansão melódica, especificamente, o esquema abaixo, fornecido por Tatit e Lopes (2008, p. 26), dá a ver não somente a oposição de base que os liga entre si, mas também a complementaridade dos contrários, em virtude de a intensidade saturante da presença de um regime no campo discursivo reclamar a realização do outro, como parada, isto é, como contenção do

excesso. Neste jogo, em que os contrários se insinuam toda vez que um dado regime dura

em demasia, estabelece-se uma proto-sintaxe de caráter tensivo, envolvendo as duas modalidades de investimento musical no trato com a fala, concentração e expansão, cuja decorrência imediata é criar o efeito de sentido de igualdade ou de desigualdade na substância sonora.

CONCENTRAÇÃO (aceleração de base) central complementar tematização desdobramento refrão outras partes identidade

gradação transposição desigualdade graus imediatos salto intervalar

complementar central (desaceleração de base)

EXPANSÃO

Pelo esquema, a predominância do regime da expansão configura-se a partir de uma desaceleração de base e da restituição do percurso melódico. Nestes casos, as transposições e os saltos intervalares reforçam a tendência à expansão ao explorar o campo de tessitura tonal, mas também instauram desigualdades, funcionando como elementos de aceleração e de imprevisibilidade no percurso melódico. A gradação e os graus imediatos, por sua vez, contribuem com a desaceleração de base, mas atuam complementarmente na geração de identidades, na medida em que criam previsibilidades dentro do contorno melódico da canção. A ação simultânea destes recursos, numa canção desacelerada, imprime nela um sentido de evolução melódica e favorece, na letra, o tratamento de temas ligados à disjunção entre sujeito e objeto ou entre sujeitos. Nestes casos, os temas

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melódicos progridem valorizando a condução vertical da melodia e percorrem o campo de tessitura buscando a identidade, que não encontram.

No regime da concentração, a opção de base é pela aceleração. A tematização e o refrão imprimem na canção o efeito de identidade melódica, apontando para um centro de atração. Este movimento centrípeto responde pelo efeito de involução que as canções tematizadas assumem. Tudo se passa como se, pela reiteração dos mesmos motivos melódicos, a canção não evoluísse, e, como conseqüência natural desta não-evolução, surgisse um efeito de desaceleração, uma vez que a reiteração melódica funciona como contensão do tempo cronológico operada pelo tempo rítmico e mnésico. O desdobramento e as outras partes da canção instauram a desigualdade por constituírem a presença da alteridade melódica num movimento que se delineava centrípeto.

Cumpre-nos encerrar a descrição dos modos de convivência entre estes dois regimes, com o trecho extraído de Tatit e Lopes (2008, p. 26), por conta do seu poder sumarizante.

os recursos centrais do regime da concentração (tematização e refrão) correspondem aos recursos complementares do regime da expansão (graus imediatos e gradação) no que tange ao critério da identidade entre seus respectivos elementos. Do mesmo modo, os recursos centrais do regime da expansão (salto e transposição) mantêm correspondência com os recursos complementares do regime da concentração (desdobramento e outras partes) no que diz respeito ao critério da desigualdade de seus respectivos elementos. Essas correspondências flexibilizam as fronteiras entre os dois modelos de tal forma que, muitas vezes, o que é complementar num dos regimes convoca as características do que é central no outro.

Apelando mais uma vez para a idéia de discurso em ato, podemos dizer que os autores admitem, de uma maneira geral, a coexistência dos dois regimes nas canções. Um e outro regime se faz sempre presente no campo discurso de uma canção, mas eles variam em termos de grau de presença. Na realidade, ambos mantêm uma relação tensiva entre si, de tal modo que a realização de um regime pressupõe a atualização do outro ou sua potencialização. Ou seja, o regime realizado em uma dada canção tem intensidade forte, está no centro do discurso, enquanto o outro ocupa o seu horizonte.

Estas duas forças contrárias atuam, como vimos, sobre o material sonoro da fala, imprimindo-lhe contornos melódicos e criando efeitos de igualdade e de desigualdade, de concentração e de expansão, enfim, de continuidade e de descontinuidade. Desse modo, a canção, como projeto enunciativo do cancionista, resulta das formas de convivência dos três modos de compatibilizar melodia e letra: a figurativização, a tematização e a

passionalização. E o cancionista, por sua vez, define-se, na expressão de Tatit (1996), como um “malabarista”, precisamente porque lida com possibilidades oscilatórias entre tensões temáticas e tensões passionais e com o processo de desativação dessas mesmas tensões, buscando o “equilíbrio” adequado para o seu projeto enunciativo, que visa, em última instância, veicular o conteúdo expresso na letra da canção.

Do exposto, depreende-se a importância do cancionista, como aquele que é responsável pelo projeto enunciativo de uma canção, como enunciador geral que opera as seleções dos componentes lingüístico e melódico, com vistas a criar um efeito de sentido único, a partir das primeiras escolhas, fundadas nas oscilações tensivas, e, em seguida, pela conversão destas oscilações tensivas no nível missivo e nos demais níveis do percurso de geração do sentido.

O cancionista é, pois, o sujeito da enunciação, o sujeito responsável pelo conjunto dos procedimentos adotados na elaboração de uma canção. E a ele não se pode chegar, senão por meio do seu próprio fazer cancional, pela identificação e avaliação das operações e das seleções realizadas por ele na confecção do discurso-enunciado. É a partir da análise das canções que se pode reconstruir a identidade do dizer, a dicção, para Tatit (1996), de um cancionista, como modo de dizer singularizante.

No próximo capítulo, vamos proceder à análise de algumas canções, melodia e letra, que podem apontar para a existência de um percurso identitário atribuível a um sujeito epistemológico “Pessoal do Ceará”. Dentre as canções selecionadas para análise, destacam-se A palo seco, em virtude da importância que lhe parece ter sido conferida pelos próprios cearenses, e aquelas canções em que pontificam as configurações da imigração e da canção.

CAPÍTULO 4

1. DO CORPUS

A seleção das canções para análise obedece a alguns critérios. Em primeiro lugar, optamos por nos restringir aos três primeiros LPs de cada autor, cujos lançamentos correspondem ao período em que a designação “Pessoal do Ceará” foi cunhada e se firmou no cenário musical brasileiro (ver quadro abaixo).

Cancionista Álbum Ano

Belchior Belchior 1974

Alucinação 1976

Coração selvagem 1977

Ednardo Ednardo e o Pessoal do Ceará 1973 O romance do Pavão Mysteriozo 1974

Berro 1976

Fagner Manera frufru manera 1973

Ave noturna 1975

Raimundo Fagner 1976

Os nove LPs acima apresentam um total de 91 canções, das quais eliminamos nove, por serem exclusivamente (melodia e letra) de outros autores, como, por exemplo: Dono

dos teus olhos, de Humberto Teixeira, Riacho do navio, de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, e Sinal Fechado, de Paulinho da Viola. Das 82 restantes, desconsideramos aquelas cuja letra

não era de um cearense, dentre as quais estão: Ave noturna, de Cacá Diegues, Tambores, de Ronaldo Bastos, e Última mentira, de Capinan. Também foram deixadas de lado as adaptações, como Penas do tiê, Serenou na madrugada e Antônio Conselheiro (bumba

meu boi), as três de Fagner. Desse modo, chegou-se a um conjunto de 70 canções para

análise.

Deste conjunto, decidimos pinçar prioritariamente a canção A palo seco, em virtude da importância dada a ela pelos próprios cancionistas cearenses, já que foi gravada ainda

na década 70 pelos três cearenses de maior projeção no campo musical brasileiro. Belchior, compositor da canção, a inclui no seu disco de estréia, de 1974, intitulado Belchior, e a regrava em seu segundo long play, Alucinação, de 1976. Ednardo registra-a em seu primeiro disco solo, O romance do pavão mysteriozo, de 1974, e Fagner a faz figurar entre as canções de seu segundo álbum, Ave noturna, de 1976.

A gravação da mesma canção pelos três cancionistas, aliada à regravação dela por seu autor, poderia suscitar, por si, a hipótese de que os cearenses, pelo menos os três acima mencionados, representam uma tomada de posição no cenário literomusical brasileiro, a constituição de um ethos, um modo de dizer específico da cearensidade. Assim sendo, selecionamos esta canção para uma análise detida, a fim de verificar se ela pode revelar indícios de uma unidade identitária cearense no campo da música popular, nos anos 70. Afinal de contas, o ato de gravar uma dada canção constitui, pelo menos em princípio, um investimento, por parte daquele que a grava, num posicionamento discursivo ou num ethos.

A segunda razão que nos faz selecionar esta canção para análise é o fato de que nela um enunciador, instalado no discurso como um eu-narrador, vai delineando aos poucos sua identidade, alicerçada nos valores convocados para o discurso e da relação eufórica ou disfórica que mantém explicitamente com eles, para, no final, provocar o enunciatário a fim de despertá-lo para a realidade da vida. Cumpre ressaltar que a provocação, como estratégia de manipulação, pode constituir mais um elemento que justifique o destaque dado por nós a A palo seco, visto que ela é recorrente no conjunto cancional dos cearenses, e mais de um estudioso aponta-a como um dos traços característicos da atitude assumida pelo grupo.

A terceira razão deve-se ao fato de o enunciador se declarar sob o domínio de uma paixão, o desespero, estado de alma que serve para definir um modo de estar no mundo, um modo de o sujeito reagir aos estados de coisa que se lhe apresentam no mundo. Assim sendo, o ato de gravar a canção não se restringe à assunção cognitiva dos valores nela investidos. Mais do que isto: gravá-la é assumir a disposição passional do narrador, num sincretismo entre o intérprete da canção e o interlocutor da enunciação simulada no discurso (o narrador em primeira pessoa), fenômeno bastante freqüente na execução de uma canção e diretamente responsável por sua eficácia e encanto, segundo Tatit (1987). O

desespero relatado nesta canção parece ainda ser a razão da atitude provocativa que muitas

vezes os enunciadores das canções do “Pessoal do Ceará” assumem no cenário político- cultural brasileiro.

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A quarta razão, não menos importante, é que A palo seco tem um claro caráter metaenunciativo, que se evidencia na alusão à própria canção (“canto torto”) e na manifestação do desejo do narrador acerca do papel a ser desempenhado pelo canto, não mais na esfera do narrado, mas no contexto da comunicação, isto é, no contexto da própria execução, que envolve o cantor e os ouvintes reais.

Acrescente-se a estas quatro razões o fato de a canção, já no seu título, estabelecer uma relação intertextual com o poema homônimo de João Cabral de Melo Neto. Esta relação assumida pode tornar-se uma tomada de posição quanto ao modo de encarar o fazer poético, indicando um ponto de identificação entre o discurso dos cearenses e o universo de valores de João Cabral, que, no limite, poderia vir a se constituir um archéion1 para os cearenses.

Estas razões constituem, a nosso ver, motivo suficiente para justificar a seleção de

A palo seco como ponto de partida para a análise que ora empreendemos. Tal canção, em

suma, representa o que vamos chamar de núcleo passional, isto é, o centro de tensividade passional a partir do qual o percurso do sujeito “Pessoal do Ceará” será pensado.

Realizado o estudo desta canção e identificado um conjunto mínimo de propriedades do sujeito em desespero, veremos, em seguida, se é ou não possível reconstituir, com base na análise de outras canções do grupo cearense e de seus sujeitos enunciantes, um percurso para o “Pessoal do Ceará”. Se tal percurso for comprovado, poderemos, em seguida, acompanhar o sujeito transdiscursivo “Pessoal do Ceará” em seu devir constitutivo, inclusive na sua relação com as alteridades que o atravessam.

As demais canções a serem analisadas, que perfazem um total de dez, foram selecionadas em função das configurações discursivas da imigração ou da canção. Demos preferência às canções em que estas duas configurações estão co-presentes.

Isto se explica, em primeiro lugar, pela alta freqüência destas duas configurações discursivas na produção dos cearenses. Em segundo lugar, a configuração da imigração, pela constância com que aparece nas canções e pelo valor, digamos, referencial que nelas muitas vezes assume, constitui-se meio bastante adequado para examinar a imagem que o enunciador de cada texto faz de si, a imagem que tem do outro e a imagem que julga o outro fazer dele, enunciador. A configuração da canção, por sua vez, em virtude de seu

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Em Análise do Dicurso, archéion é um conjunto de enunciadores que constitui uma fonte legitimamente para uma dada prática discursiva.

caráter metaenunciativo, revelará a concepção que se faz deste gênero em cada texto e, por via de conseqüência, do ofício que o envolve.

A preferência por estas duas configurações também encontra respaldo na constatação de que o percurso migratório do grupo tem como meta a expansão do seu fazer cancional, estando assim, pois, as duas configurações ligadas desde o início. Além disto, supomos que, uma vez distantes do lugar de origem, a canção muda de estatuto para os cearenses e passa a desempenhar outras funções, sobretudo no que tange ao processo migratório que os cearenses protagonizaram.