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Instância discursiva e práxis enunciativa

1. Da semiótica do discurso à semiótica da canção Discurso como campo de presença

1.2. Instância discursiva e práxis enunciativa

Se a instância enunciativa, conforme se admite, é a instância responsável pelo conjunto das operações que tornam um dado discurso presente no mundo, então a tomada de posição que lhe é correlata seria pura singularidade. No entanto, não é isto que acontece. Cada discurso-ocorrência está inelutavelmente ligado a uma série de outros discursos, aos quais não deixa de se referir. Por isto, cada ato enunciativo singular constitui-se a partir de um conjunto de outros atos de linguagem, que se apresentam encadeados e superpostos em um dado discurso-ocorrência. Este repertório aberto de enunciações participa da práxis

enunciativa (secção 1.2.1, do primeiro capítulo) e sempre está subjacente ao exercício do

ato enunciativo singular. Por isso, pode-se dizer que o ato enunciativo é a um só tempo individual e coletivo.

Nesta tensão entre o individual e o coletivo, a enunciação ganha destaque, pois é na instância discursiva que as decisões são tomadas e as estratégias discursivas se definem. Dispondo de um amplo leque de escolhas enunciativas, a enunciação e seu sujeito se caracterizam pelas seleções operadas em discurso, dentre as quais, Bertrand ([2000] 2003) destaca a:

escolha de perspectiva (sobretudo em função da estrutura polêmica que permite ordenar a narração, conforme, por exemplo, a perspectiva do fugitivo ou a do policial), escolha da focalização e do ponto de vista (segundo a posição adotada pelo narrador e o lugar do observador), escolha dos dispositivos de ocultação, condensação ou expansão que, pela própria textualização, determinarão entre outras coisas as formas e os gêneros de discurso. (p. 48)

Para Bertrand ([2000] 2003), então, é lícito “considerar que o percurso gerativo de sentido, subjacente ao conjunto dessas operações, mostra, em seu esquema de conjunto, os materiais que a enunciação mobiliza para se realizar e que ele constitui, por isso mesmo, um modelo enunciativo” (p. 48). De acordo com tal passagem, parece apropriado aproximar este modelo enunciativo, resultante do conjunto das escolhas realizadas pela instância enunciante, de um repertório de operações que acabam por caracterizar um modo de dizer, um estilo, enfim, um sujeito, cuja existência não pode ser desvinculada da existência do enunciado e do modo como este enunciado foi construído.

Todavia, salientemos que tais escolhas serão acompanhadas no seu próprio curso, quer-se dizer com isto que a perspectiva adotada é a do discurso em ato. Estaremos mais atentos à emergência da significação e às operações que a produzem, porque desejamos

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acompanhar o texto em sua leitura-audição, já que o nosso interesse se volta para a questão do sujeito discursivo “Pessoal do Ceará”, simulacro identitário cuja existência é posta sob suspeição. Este sujeito, por sua vez, é um efeito de discurso criado a partir da leitura/audição dos textos elaborados por aquele grupo de artistas que deixou o Ceará no princípio da década de 1970.

Para tanto, a concepção de discurso como campo de presença é fundamental, pois a seleção (realização) de uma perspectiva, de uma focalização, de um ponto de vista, e a escolha (realização) dos dispositivos de ocultação, condensação e expansão, próprios da textualização, implicam as outras operações previstas pela práxis enunciativa: atualização, potencialização e virtualização. Em outros termos, selecionar uma grandeza para um discurso é jogar com os modos de existência em discurso de outras grandezas que com ela se relacionam.

Para acompanhar o discurso no seu desenvolvimento, como ato de produção e de interpretação do sentido, foi preciso configurar as precondições que engendrariam o ser do sentido e reformular o nível epistemológico da teoria semiótica a partir de dois simulacros: um tensivo e um fórico, como vimos. E, para Tatit (1994), os valores tensivos e fóricos introduzidos na teoria passaram a auxiliar na construção de um modelo para dar conta dos conteúdos passionais, sendo que “a dimensão passional do sujeito do enunciado espelha os desejos e os valores do sujeito epistêmico que começa, assim, a responder por todos os estratos gerativos, desde os níveis mais profundos” (p. 42).

Segundo Tatit (1997), este ser, tensivo e fórico, não está muito distante da construção de um simulacro do sujeito da enunciação, muito embora Greimas e Fontanille ([1991] 1993) jamais tenham considerado a presença deste sujeito desde as etapas mais abstratas do percurso gerativo. Para Tatit, a enunciação já se produz, como postulava Zilberberg ([1988] 2006), em Razão e poética do sentido:

nos termos de uma oscilação tensiva que privilegia ora os limites e as contrações, ora as progressões e as expansões do fluxo fórico. No primeiro caso, temos a criação do tempo com suas tensões expectantes e, no segundo, a criação do espaço com suas difusões e desdobramentos narrativos. O árbitro regulador de toda essa alternância rítmica é o eu em posição de sujeito enunciador. (TATIT, 1997, p. 15)

Como salienta Tatit (1997), esta etapa de precondição do sentido é um postulado teórico indispensável para o desenvolvimento dos níveis mais concretos do percurso gerativo. É, na verdade, uma dimensão que pode apenas ser concebida, mas não

formalizada, cuja presença em discurso só pode ser avaliada a partir das escolhas operadas pelo sujeito epistêmico e passional, que converte a natureza contínua destas oscilações tímico-fóricas em descontinuidades categorizáveis.

Segundo este modo de conceber o nível das precondições de geração do sentido é que se pode entender o sujeito da enunciação, como já assinalamos, se fazendo presente no discurso, a partir da primeira cisão, a cisão primordial com a imanência do vivido, em que ele rejeita um tempo fora de controle, um fluxo indeterminável e imprevisível, para, com a

parada, promover a primeira interrupção do fluxo fórico, e, com a parada da parada,

implementar a busca do sentido, como defende Zilberberg ([1988] 2006).

Pensando nesta etapa inicial de constituição do sentido, Tatit (1997) admite a aproximação do conceito de corpo ao de foria e, seguindo os passos de Zilberberg ([1988] 2006), defende a existência de uma unidade fundadora, de conjunção plena entre sujeito e objeto, uma espécie de elo primordial entre estes dois actantes, o que torna patente a influência da fenomenologia merleau-pontyana na semiótica discursiva. Senão vejamos.

A aproximação do conceito de “corpo” ao conceito de “foria”, com sua oscilações tensivas, sugere outra interessante aproximação conceitual – sempre no plano dos simulacros, desta vez entre espaço e tempo. Ao promover uma verdadeira intersecção da protensividade, que define a função de sujeito, com o poder de atratividade, que define o actante objeto, a noção de corpo circunscreve um espaço teórico de junção, de onde emana o sentido de unidade do ser. A epistemologia das paixões proclama, nestes termos, uma tensividade original que, na preservação do elemento uno, assegura a identidade do sujeito (protensividade do sujeito mais potencialidade do objeto) e que, na partição desta unidade básica, cria a alteridade e o próprio sentido de busca (recuperação da integridade do ser). Integração e cisão constituem imagens que articulam a dimensão espacial do modelo e ajudam a representar, desde os níveis mais profundos, as manobras contínuas e descontínuas dos discursos. (TATIT, 1997, p. 14)

A existência deste horizonte fluindo no nível profundo permite não apenas pensar a primeira interrupção como cisão inaugural entre sujeito e objeto, mas, sobretudo, imaginar que, mesmo disjungido o sujeito do objeto, o elo de atratividade entre eles permanece atuante, de modo que o sujeito passa a buscar a reintegração com o objeto, da qual depende a identidade dele, sujeito. Em outros termos, “o distanciamento do objeto só intensifica os laços de conjunção com o valor, cuja figuração mais precisa é a da nostalgia da fusão plena, quando sujeito e objeto ‘faziam parte’ do mesmo continuum.” (TATIT, 1997, p. 16)

Segundo Tatit (1997, p. 17), graças à postulação do nível tensivo-fórico, e de seu fluxo temporal anterior à primeira cisão, em que as funções actanciais estão neutralizadas, é que podemos justificar as noções de sentimento de falta, de espera, de desejo etc.,

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motores da busca e razão da narratividade. Este estado de conjunção plena, do qual o sujeito só sai pela primeira operação debreante, é, como já se disse, uma postulação teórica sem pretensões ontológicas. Trata-se apenas de um simulacro para ajudar na operacionalização do nível profundo do modelo semiótico, mas que, conforme salienta Tatit (1997), não deixa de sugerir o primeiro modo de atuação do sujeito da enunciação na constituição do sentido.

Uma vez concebido este estágio continuum de tensividade-fórica, que liga sujeito protensivo e objeto atrativo, sua primeira categorização ocorre no nível missivo. Neste nível, as oscilações tensivo-fóricas se apresentam na tensão entre a contenção do fluxo com a valorização das saliências (limites e demarcações), quando são privilegiados os valores

remissivos, resultantes da parada, e a distenção/expansão do fluxo, com predomínio dos

valores emissivos, resultantes da parada da parada. No nível missivo, as articulações de sentido devem ser compreendidas como uma sintaxe rítmica que gera as descontinuidades e as continuidades subjacentes a todo discurso, independentemente da linguagem de sua manifestação.

Este modo de conceber o percurso gerativo apresenta a vantagem de instituir, na etapa profunda de geração do sentido, categorias que valem tanto para a expressão quanto para o conteúdo, respeitando assim o princípio hjelmsleviano de isomorfismo dos dois planos da linguagem. Ele permite ainda a construção de categorias de análise aplicáveis a diferentes linguagens, o que favorece a homogeneização do tratamento analítico no que tange aos gêneros de composição sincrética, como a canção, por exemplo.

Esta possibilidade de tratamento de objetos sincréticos, em virtude do caráter temporalizante do conceito de foria, com suas oscilações tensivas, anima Tatit a elaborar uma semiótica da canção, pois ele vê cada canção como um projeto entoativo de um sujeito enunciante, o cancionista2, cuja tarefa é operar a seleção e a sintagmatização dos valores lingüísticos e melódicos para a construção de uma peça cancional, a partir das diretrizes do modelo cancional brasileiro erigido ao longo do século XX.

No âmbito deste projeto teórico, a concepção temporal dos níveis fórico e missivo assume grande importância, por conta de o componente musical só poder ser apreendido

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Cancionista não é só o compositor de uma canção. Nesta categoria, incluem-se também o arranjador e o intérprete. No entanto, estamos concorde com Tatit (1996), que aponta a integração dos componentes melódico e verbal como o ponto “nevrálgico” da canção. No caso do “Pessoal do Ceará”, isto é mais patente ainda, uma vez que o compositor da canção é, muitas vezes, seu próprio intérprete.

em seu próprio curso, isto é, como um discurso em ato, em termos de continuidades e descontinuidades do fluxo temporal.

Embora Tatit não se filie explicitamente à corrente dos que falam de discurso em

ato, cremos que, subjacente à sua proposta de análise da canção, como se poderá constatar

mais adiante, pulsa este conceito, e a construção do sentido de uma canção, sobretudo o sentido melódico, só se perfaz por meio do acompanhamento dos acidentes locais, da repercussão extensa destes acidentes na totalidade da peça e da imbricação entre o componente melódico e o verbal. O conceito de discurso em ato aplica-se, assim, perfeitamente ao modo de exame da canção patrocinada por Tatit, principalmente porque nele o discurso cancional é analisado em termos de densidade de presença, dentro de um campo discursivo, dos três modelos de integração entre melodia e letra (secção 2.6., mais adiante).

Para Tatit, a análise de uma canção visa a evidenciar a significação subjacente aos efeitos de sentido gerados na sua escuta. Deste ponto de vista, o analista deve acompanhar a canção no seu próprio desenvolvimento, flagrando os acidentes locais e sua repercussão na totalidade do texto, com o objetivo de explicitar o conjunto de procedimentos adotados pelo enunciador na elaboração da peça cancional.

A nosso ver, é precisamente esta concepção dinâmica de discurso em ato que constitui o mote para Tatit (1994) construir seu método de análise da canção. Recorrendo aos conceitos saussureanos de sílaba e ritmo silábico, que haviam sido ampliados e aplicados por Hjelmslev também ao plano do conteúdo, e generalizados por Zilberberg para aplicação em todos os domínios semióticos, Tatit (1994) busca desenvolver uma teoria original para o tratamento deste objeto sincrético, teoria em cuja base de significação encontram-se as postulações rítmicas desenvolvidas por Zilberberg.

Assim como Saussure ([1916] s/d) descrevia a sílaba como uma seqüência sonora que envolve aberturas e fechamentos, originando fronteiras de sílaba e pontos vocálicos, numa dinâmica em que uma operação pede a outra e vice-versa, Zilberberg concebe, na esteira de Hjelmeslev, o mesmo movimento rítmico marcando o conteúdo. Os valores missivos se alternam no texto de modo tal que “a intervenção remissiva, referente aos limites, convoca forçosamente um fazer emissivo, referente à extensão gradativa, para retomar a continuidade ameaçada”. E, de modo inverso, “o excesso das forças emissivas sempre resultará em parada, em imposição de limites comprometidos com os valores remissivos”. (TATIT, 1997, p. 19)

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Para conceber esta sintaxe temporal própria aos dois planos da linguagem, Zilberberg (apud TATIT, 1997, p. 19-22) decompõe o tempo em quatro dimensões que operam simultaneamente: cronológica, rítmica, menésica e cinemática. Os dois primeiros atuam na ordem intensa, isto é, entre elementos que mantêm relações de vizinhança, enquanto o terceiro e o quarto se expandem pela cadeia sintagmática, regulando as relações à distância, por isso são de ordem extensa3.

O tempo cronológico atua estabelecendo a sucessão cronológica dos fatos, criando a apreensão de um antes e de um depois, num fluxo ininterrupto em que o presente se faz passado. O tempo rítmico atua imprimindo a lei e instituindo a identidade (igualdade) e alteridade (desigualdade) dos valores, “neutralizando o sucessivo e magnetizando os contrastes temporais. É o tempo das alternâncias e da conservação do processo que substitui a fluência do cronológico pela consistência rítmica” (op. cit., p. 152).

O tempo mnésico é responsável pela memória e pela expectativa. Uma vez aplicado sobre o tempo cronológico, o tempo mnésico neutraliza a sucessão ininterrupta e permite a recuperação do passado. Quando, por outro lado, incide sobre o tempo rítmico, a célula rítmica se expande por todo o texto e cria a espera. Como desdobramento da sobredeterminação do tempo cronológico e do tempo rítmico pelo tempo mnésico, “o antes e o depois cronológicos transformam-se em passado e futuro ancorados em simultaneidade no presente” (op.. cit., p. 152). Isto equivale a dizer que o tempo mnésico expande pela cadeia discursiva as leis rítmicas, criando memória e expectativa, controlando, assim, a evolução descontínua do tempo cronológico.

O tempo cinemático incide sobre a seqüência inteira, “acelerando ou desacelerando seus valores substanciais, já que os valores relativos não se alteram” (op. cit., p. 153) . No entanto, como adverte Tatit (1997), Zilberberg já considera a questão da velocidade antes mesmo de tratar do tempo cinemático. Ao falar da tensão entre continuidade e descontinuidade, efeitos resultantes da aplicação do tempo rítmico e mnésico sobre o tempo cronológico, Zilberberg já reconhece o papel decisivo da velocidade na constituição do sentido temporal para a semiótica discursiva.

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A oposição intensa/extensa é tomada de empréstimo à glossemática e adaptada por Tatit (1994) para servir ao estudo da canção, cuja coerência do texto melódico deve ser analisada em termos de tensão estabelecida entre os acidentes locais e o percurso da extensão geral da obra. Para os conceitos de intenso/extenso, consulte-se Greimas e Courtés (1986).

A atuação dos tempos rítmico e mnésico sobre o tempo cronológico pressupõe a expansão de leis de repetição imediata, de interação a distância, de gradação contínua, enfim, de relações de identidade cuja função básica é deter o progresso do discurso, e, com isto, assegurar, ainda que parcialmente, a integridade do sujeito. Ora, todos esses processos que evitam rupturas muito bruscas entre os elementos do discurso, mantendo seus laços de continuidade como um sujeito que não perde o valor do objeto (ou, pelo menos, o valor do valor), constituem manobras da desaceleração que visam devolver ao sujeito a duração necessária ao seu convívio com o objeto. (op. cit., p. 21)

Assim, se considerarmos, como sugere Wisnik (1989), o nascimento do som musical como uma decorrência do sacrifício do ruído, de sua ritualização, de sua domesticação, pela estabilização da matéria sonora bruta, portanto, como um produto da contensão do fluxo temporal, isto é, de uma desaceleração básica, podemos admitir, como defende Tatit (1994), que a musicalização da fala constitui também um primeiro processo de desaceleração, na medida em que, na canção, a matéria sonora da fala, interina e assimétrica, por natureza, recebe um tratamento estético que visa, em última instância, a sua conservação. Esta conservação, por sua vez, está diretamente ligada à necessidade de remotivação do signo, própria a toda linguagem de natureza estética. Ela visa a constituir o material sonoro como foco de atenção, desviando-se assim da fala, em que o material sonoro funciona basicamente como via de acesso ao conteúdo.

Este processo pode ser compreendido na base dos modos de existência semiótica. Tudo se passa como se o material sonoro da fala se realizasse nas práticas lingüísticas cotidianas apenas para conduzir o enunciatário ao plano do conteúdo de um dado texto. Uma vez alcançado o plano do conteúdo, o material sonoro da fala se virtualizaria, isto é, o foco forte se concentraria no conteúdo, que poderia ser, a partir de então, expresso por outras palavras. Na canção, por sua vez, ambos os planos da linguagem se mantêm atuantes, numa relação tensiva cujo sentido gerado depende da interação entre a linguagem musical e a linguagem verbal. Nestes termos, a desaceleração da qual fala Tatit corresponde a uma mudança no andamento que leva da expressão para o conteúdo, fazendo com que o sujeito da enunciação se demore no apreender a expressão e as relações semi- simbólicas dela com o conteúdo. Por esta razão é que Tatit dá relevo ao andamento como categoria fundamental para o exame da canção e propõe, com base neste conceito, um modelo de descrição para ela, que adotaremos e que passamos a apresentar.

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