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CTS no contexto da política de C&T para a América Latina

Numa perspectiva progressista para o ensino de ciências no Brasil, Auler (2002) faz um levantamento do estado da arte em termos de CTS para o contexto brasileiro, atendo-se basicamente nos trabalhos de pensadores latino-americanos, e particularmente de Dagnino, no que diz respeito às políticas científico-tecnológicas.

Em maio de 2002 foi realizado o Fórum “Gestão da Integração Ciência, Tecnologia e Sociedade”, em Londrina, sob os auspícios do GEITA (Grupo de Estudos em Inovação Tecnológica na Agricultura) do IAPAR (Instituto Agronômico do Paraná).

O Objetivo do Fórum foi, segundo os organizadores, “alavancar reflexões e estimular uma visão crítica sobre a gestão do conhecimento e da tecnologia, não apenas como instrumento de progresso e competitividade, mas como fenômeno social e parte do processo democrático”. Resultou desse encontro uma coletânea de artigos reunidos em livro (Santos et alii, 2002), no qual apresenta-se uma situação geral da C&T e suas interações com a Sociedade para o Brasil.

O que se percebe é que o estado atual de CTS no Brasil, por esta perspectiva, também apontada por Auler (2002), é de uma orientação muito pertinente para as questões de dependência e das dificuldades de se estruturar uma ação de caráter endógeno para uma maior efetividade das ações que visem a superação dos graves problemas sociais que são típicos da condição do capitalismo periférico.

Vaccarezza, ao realizar um apanhado da questão da ciência e da tecnologia na América Latina, considera essencial que para tratar de C&T é preciso contextualizar e relativizar para a realidade latino-americana (Vaccarezza, 2002, pp. 43-79).

Pode-se inferir dos trabalhos de autores como Dagnino e Vaccareza, a necessidade de se transformar, também na essência, o processo educacional com vistas a uma participação dos professores e dos profissionais no processo de decisão sobre as questões de C&T que possa propiciar uma ampliação do processo democrático, que busque uma maior participação de outros atores no processo

decisório das políticas de C&T. É de se notar também a presença de Lopez Cerezo nessa publicação, o que sugere uma aproximação à tradição Iberoamericana em CTS, cuja abordagem é mais epistemológica.

Dagnino entende que o maior desafio da comunidade de pesquisa brasileira é, justamente, “gerar uma dinâmica alternativa àquela que se vem conformando nos países avançados em substituição ao paradigma eletro-mecânico fordista. É gerar uma dinâmica de exploração da fronteira de conhecimento científico e tecnológico distinta da hoje hegemônica em nível mundial” (Dagnino, 2002, p. 104).

Este autor considera que um tema central recorrente no campo dos estudos CTS, tanto no Brasil quanto nos países capitalistas avançados, está associado ao como fazer com que a produção local de conhecimento seja melhor distribuída e absorvida pela produção para que se possa disponibilizar bens e serviços cada vez mais baratos e efetivos para a sociedade. Não se afasta assim da idéia de que o conhecimento científico-tecnológico deve finalmente gerar benefício social. Mas no contexto de sua obra, corrobora que essa relação não é linear como propunha o modelo linear de desenvolvimento (modelo ofertista linear), em concordância com o enfoque CTS aqui utilizado.

Referindo-se à relação pesquisa-produção para a América Latina, Dagnino aponta cinco idéias-força (ou pressupostos) do transplante do modelo institucional do ofertismo linear (MIOL) resultante do contrato social selado pelo relatório Bush, e que após 50 anos ainda parece orientar a comunidade científica (e tecnológica):

• A ciência, por ser inerentemente boa, deve ser apoiada pelo estado em nome da sociedade.

• A “cadeia linear de inovação”, centrada na visão do processo de inovação que surge da perspectiva empírica do pesquisador ao nível micro do laboratório, do encadeamento pesquisa básica = pesquisa aplicada = desenvolvimento tecnológico = novo produto = benefício social, que de modo reducionista é transferido para o nível macro dos processos sociais, sujeitos a determinantes muito mais complexos e pouco controláveis. Tal modelo acabou por se transformar em normativo da política de C&T.

• A formação de “massa crítica”, que promove a potencialização das duas anteriores. A concentração do elemento pesquisa básica e recursos humanos

desencadearia a reação da cadeia linear de inovação de forma auto- sustentada.

• A pesquisa básica que seria o detonador do processo inovativo é usada pela comunidade da ciência para justificar a concessão dos meios, pelo estado, para materializar a cadeia linear de inovação. Essa vai mais longe, ao assumir como central o seu papel na elaboração da política de C&T e a posterior avaliação dos resultados.

• A idéia de modernidade, baseada na visão eurocêntrica, que ganha força no pós-guerra, que a considerava uma conseqüência da capacidade de gerar e absorver progresso técnico. Um corolário dessa idéia é que se a sociedade se mostra incapaz de absorver o conhecimento que a comunidade científica oferece é porque ela se encontra num estágio atrasado (ênfase adicionada).

De acordo com o autor, para entender os efeitos dessas idéias-força nos países latino-americanos é conveniente introduzir novos conceitos, como o de teia de relações23 (ou rede de relações) e de campos de relevância, que ele desenvolve no restante do seu trabalho, estabelecendo uma comparação com o que acontece nos países economicamente avançados.

Cabe destacar, das considerações deste autor, que o campo de relevância vai sendo formado a partir de “sinais” de relevância, difusamente “emitidos” pelos atores, e “captados” pela comunidade de pesquisa (aspas do autor), que formam a teia de relações – nos países centrais, as empresas, o estado, a sociedade em geral –, para cujos atores o conhecimento produzido é funcional (idem, p. 127). Em resumo, o caldo de cultura da pesquisa conformado por esses sinais de relevância, “decodificados” pela comunidade de pesquisa converte-se em sinal de qualidade, que finalmente irá orientar a ação da comunidade de pesquisa. Naqueles países “o resultado é um mecanismo que reduz o compromisso da comunidade de pesquisa a uma mera garantia de qualidade da pesquisa que vai ser feita com dinheiro público, uma vez que a relevância está ‘garantida’ pela teia social de atores” (idem, p. 128). Todavia, há que se considerar que essa esquematização que é válida para a

23 Dagnino comenta que o conceito de “teia de relações” guarda certa correspondência com aqueles usados para explicar os processos de mudança tecnológica que tentam dar conta da complexidade sociotécnica. Dentre os autores citados por ele, destaco os que trabalham com a perspectiva construtivista social da tecnologia (Bijker, Hughes e Pinch, 1997).

compreensão de como se conforma a política de C&T nos países ricos, pode não ser adequada para países como o Brasil e, inclusive, chegar a inibir o reconhecimento de especificidades que são próprias do país. Em outras palavras, pode inibir a formação de uma consciência crítica dos atores envolvidos com as atividades de C&T para o que é social e economicamente relevante.

Como fruto da análise desenvolvida com o aporte dos conceitos de teia de relações e de campo de relevância, pode-se compreender as influências exercidas pelo modelo linear de desenvolvimento na América Latina (idem). Particularmente, no que diz respeito ao conceito de qualidade, o autor afirma que a comunidade científica latino-americana concebe a qualidade em pesquisa associada à idéia de neutralidade, ahistoricidade e universalidade ligados àquele modelo de desenvolvimento. Para reforçar o entendimento de como esse processo de assimilação ocorre ao nível das estruturas de pesquisa e pedagógicas, é mister reconhecer que muitos de nós, pesquisadores e professores, não percebemos que

o conceito de qualidade que adotamos é, na realidade, historicamente e socialmente construído. Isto é, que “pertence” a um outro campo de relevância estabelecido por uma outra teia de relações. Por ser datado e formulado no interior de um outro contexto econômico, social e político, esse conceito é funcional aos interesses dos atores sociais que neles se manifestam de forma hegemônica. Ele é adaptado – e “pertence” – a uma outra sociedade (Dagnino, 2002, p. 128).

No entendimento aqui apresentado, não se trata de falta de qualidade de pesquisa – que é claramente mostrada através dos excelentes trabalhos apresentados em congressos e revistas indexadas internacionais –, mas do modo de entender o que significa aquela qualidade em termos de C&T quando considerada no âmbito de sua imbricação com a sociedade em que se insere. Nesse sentido, aquela concepção de qualidade – que é simultaneamente razão e resultado de uma prática histórica dependente – torna-se um obstáculo pedagógico à mudança de perspectiva, de modo que constitui um dos fatores relevantes a ser considerado ao se buscar construir uma nova prática pedagógica que se plasme pela formação criativa e crítica desses atores.

Dessa maneira, está-se diante de uma situação de difícil superação pela via da formação tradicional, dado que ela inibe a formulação de alternativas pelos próprios educadores, os professores, já que estes se encontram embebidos desses pressupostos a um tal ponto que a sua reprodução, quando percebida, é vista como base da solução e não como parte do problema da dependência. É uma questão de difícil tratamento acadêmico justamente pela natureza dos envolvimentos a que aqueles pressupostos submetem os pesquisadores e as instituições.

Cabe esclarecer que essa interpretação da relação de dependência não implica, no contexto desta tese – e que é registrado em vários momentos – fechar as portas para o aprimoramento do conhecimento científico. Ao contrário, ela acrescenta novos desafios para o desenvolvimento científico e tecnológico, na medida em que se preocupa em promover também uma maior interação com a sociedade e suas especificidades locais.

O que se propõe nesta tese é contribuir para a ampliação da compreensão dos papéis que os educadores da área técnica possuem nessa rede de atores. Pode-se inferir, em concordância com Dagnino, Thomas e Davyt, que se torna necessário, para superar as deficiências provocadas pela lógica da dependência, que os atores locais sejam formados com a consciência da relevância a que se refere, conferindo- lhes a capacidade de discernir sobre a relevância da atividade para um conjunto maior de atores que compõem a rede de relações, ou o sócio-sistema tecnológico.

Isso pressupõe que o conhecimento científico-tecnológico deve estar relacionado também com as realidades locais, caso contrário não há ligações fortes o suficiente para que este seja posto a serviço da sociedade, mas apenas a uma hipotética sociedade que seria usufrutuária de produtos tecnológicos de uma tecnologia que não chegou para a maioria da população e que é relevante para os países de origem desse tipo de conhecimento. Essa desvinculação é também associada ao que Dagnino denomina de disfuncionalidade universitária, já abordada no capítulo 1.

O fato é que os autores dessa vertente, na sua maioria, apontam para os problemas decorrentes da relação de dependência da condição periférica, seguindo a tradição que remonta aos inícios do movimento CTS na América Latina. Então, o que é importante salientar no contexto desta tese, é o fato de que há uma convergência para o tratamento da questão também pela ótica da mudança conceitual no ensino tecnológico, e de engenharia em particular. Compreender essas imbricações no

ensino das técnicas constitui um passo importante também para a superação dos obstáculos para o desenvolvimento científico e tecnológico a que esses autores se referem.

Ao final das contas o que se busca salientar, agregando essa crítica ao modelo de desenvolvimento em C&T brasileiro é que, em certa medida, os fatores que contribuem para a manutenção da lógica do modelo linear ofertista no caso latino- americano não têm sido adequadamente equacionados, porque não provocam uma suficiente comoção intelectual nas instituições que têm por função educar os atores que participam ativamente do processo de mudança tecnológica. Por essa perspectiva, esses atores não estariam conscientes, ao nível de sua formação técnica, das imbricações amplas e complexas de sua atividade e, desse modo, não possuiriam as condições cognitivas para propor alternativas a essa realidade a partir de seus conhecimentos, convergindo para o que é apontado por autores da vertente educacional CTS. E essa consideração é concordante com a conclusão de Dagnino de que

o desafio da democratização exige uma renovação conceitual muito significativa dos pesquisadores e dos analistas e gestores da política de C&T. E que esta renovação, em função do recurso cognitivo e político que detêm esses atores é imprescindível para gestar o novo modelo institucional que tornará possível aquela dinâmica alternativa (Dagnino, 2002, p. 139).

NOVAS PERSPECTIVAS E IMPLICAÇÕES

“Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.”

Chefe indígena da Virgínia24