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Interações entre fragmentos e totalidades

Ao longo desta reflexão é defendida uma nova perspectiva, de interações substantivas, para o enfrentamento da fragmentação do conhecimento tecnocientífico na engenharia, por entender que é imperativa, por questões práticas do mundo tecnológico, uma abordagem que esteja em sintonia com os processos de transformação em curso e da conseqüente mudança de pressupostos da atividade ciejtífico-tecnológica. Contudo, há de se evitar o holismo ingênuo, e achar que se pode eliminar o tratamento dos fragmentos, mesmo nas técnicas, em favor da busca de uma unidade do conhecimento. Eles existem e trabalhamos com eles. Angotti considera que “há excessos que apelam para unidades intangíveis, pelo menos em tempos atuais, que desprezam a força e a profundidade que o homem conquistou com seus bisturis bem aplicados, ou seja, do próprio empreendimento das Ciências”. Para ele, “tais abordagens em busca de totalidades levam a uma sensação de completeza de conhecimento que é falsa e enganosa” (Angotti, 1991, p. 28).

Essas considerações, contudo, não descartam a necessidade de contextualização dos fragmentos e das suas interações socioculturais. Essas não

podem ser esquecidas ou expropriadas daqueles porque estão também em suas origens, como já apontado anteriormente.

Ao referir-se ao conceito de holomovimento de David Bohn (1998), incorpora-se uma nova compreensão de que as partes também encerram os todos. De alguma forma, afirma Angotti, “as partes estão comprometidas com seu passado, com o seu conjunto, com a totalidade do ‘holomovimento’ de onde vieram” (idem, p. 57). Não há como negar o papel da fragmentação no trato do conhecimento tecnocientífico, mas deve-se ter presente que “a tendência é prestigiar a fragmentação desde que nos mantenhamos conscientes do compromisso das partes com o conjunto, o holograma das teorias” (idem).

Morin é útil para reforçar essa compreensão. Ao separar o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa extensa (res extensa), ou seja, a filosofia e a ciência, e ao colocar como princípio de verdade as idéias “claras e distintas”, Descartes estabeleceu o paradigma mestre do Ocidente, que o autor denomina de “paradigma da simplificação” e que se caracteriza pelo conjunto dos princípios de disjunção, redução e abstração.

Os resultados foram notáveis, desde que por sua conta, a partir do século 17, a civilização ocidental experimentou as transformações decorrentes do considerável desenvolvimento do conhecimento científico e da reflexão filosófica. Mas esse fato, para Morin, escondeu por quase dois séculos as conseqüências nocivas que agora começam a emergir, por conta de uma luta travada contra o pensamento fragmentário em ambos os campos do saber.

Cabe reforçar aqui que não se trata de uma crítica do conhecimento e tratamento lógico-matemático dos fragmentos, já assumido como necessário, e nem tampouco de uma reificação ou defesa do pensamento único, mas de indicar que as interações entre campos de saber aparentemente antagônicos ou disjuntos mostram- se muito fecundas para a ampliação do conhecimento disciplinar e redução das diferenças e incompreensões interdisciplinares – basicamente na identificação do tipo de problema a resolver e nos critérios de valor a considerar –, com conseqüências importantes sobre a natureza das produções da engenharia.

Com a redução das disjunções disciplinares assumidas como propostas para uma formação técnica socialmente referenciada conforme já abordado em outros

momentos nesta tese, amplia-se o campo de atuação das disciplinas, ou das especialidades, na medida em que visceralmente se interpenetram.

A disjunção entre o conhecimento científico e a reflexão filosófica acabou por transformar uma possível fecunda relação em uma quase incomensurabilidade para a engenharia (e também para a filosofia), incentivada por interesses que se confrontam de modo permanente e crescente com questões oriundas da crítica filosófica, como as questões éticas, que deságuam nas questões de consciência social, ecológica e política.

Uma leitura desse tipo é igualmente encontrada em C.P. Snow, no seu histórico discurso na academia Real de Ciências em Londres, em 1939, embora com uma crítica mais contundente para o conhecimento científico (Postman, 1994, p. 11). A teoria das duas culturas chocou e certamente abalou a confiança e as certezas de ambos os lados da muralha. Mas, ao mesmo tempo, criou condições para uma reaproximação, na medida que tornou pública uma dicotomia velada.

A partir da segunda metade do século 20, emergem as reações contra os efeitos nocivos da ciência e da tecnologia, e a separação torna-se ainda mais intensa, entre correntes tecnocatastrofistas e tecnootimistas, entre a feroz crítica filosófica às realizações da ciência-tecnologia, com conseqüências sobre a engenharia – imaginada como seu braço prático –, e a resistência surdo-muda desta, que sequer conseguia responder à crítica filosófica (com algumas exceções), exatamente por não saber como fazê-lo, já que privada do poder do pensamento filosófico de si mesma.

No Brasil foi a própria engenharia, através das suas representações acadêmicas, que incentivou essa disjunção ao propor a eliminação das humanidades do currículo na reforma universitária de 1970, em nome de uma necessidade de ampliação dos conteúdos tecnocientíficos, ainda defendido por alguns acadêmicos.

Argumenta-se que, em função da intensificação da fragmentação institucionalizada do conhecimento da engenharia, causa e efeito das especializações, os novos professores de engenharia parecem tender, assim como os novos profissionais, mais ainda que seus mestres, para o pensamento fragmentário, o que é compreensível justamente por se tratar de uma geração de profissionais posterior à implantação da reforma universitária da década de setenta, e do processo de inibição política imposto às universidades pela ditadura militar ao longo das duas difíceis décadas seguintes. Além disso, estão submetidos a um

processo de busca desesperada por recursos para a pesquisa gradualmente reduzidos ao longo dos anos, mas com uma cobrança institucional crescente sobre a produtividade acadêmica, o que levou esses professores nesse “salve-se quem puder” a verem a universidade como uma estrutura empresarial e, desse modo, colocarem a pesquisa – que quantifica o currículo pessoal – acima do ensino (e da sua pesquisa), cujos resultados são mais sutis e de difícil quantificação.

Esse equívoco histórico é agora percebido, quando se propõe novamente a introdução das humanidades no currículo das engenharias. Entretanto, ainda há muito a fazer, para evitar que, novamente, mantenha-se institucionalizada essa disjunção entre as “duas culturas”. A compreensão que emerge das páginas deste ensaio é, ao contrário, a de que é necessário e urgente estabelecer a inseparabilidade entre esses dois campos de saber, porque se entende que a tecnologia é fundamentalmente um processo que só é concebível como produção sociocultural.

Pelo enfoque CTS e pelas manifestações de organizações sociais diversas, essa tendência ao aumento da fragmentação é nitidamente contrária ao que se propõe como uma possível redução dos problemas sociais e ambientais para o século 21, que implica necessariamente o envolvimento da tecnologia – concebida como sócio-eco-sistema – que é o atual expoente em torno da qual gravita a sociedade. Tem-se procurado reunir esforços para uma reorientação quanto aos compromissos e responsabilidades dos profissionais de engenharia para as questões da sustentabilidade planetária, a qual não suporta o pensamento fragmentário, o que não implica a eliminação do fragmento, da parte, mas a sua imbricação, conforme já abordado anteriormente.

Agora, no início do século 21, trava-se uma luta pelo reconhecimento das interações existentes entre o conhecimento tecno-científico e o conhecimento das humanidades, ou do humano nas técnicas, posto que um não existe sem o outro, que não se reduz a uma relação óbvia que prescinde da reflexão da própria imbricação. Ao contrário, a disjunção mostrou-se tão eficaz que sua compreensão e superação torna-se um exercício incessante para ambos os campos de saber, necessidade de um contínuo intercâmbio interdisciplinar.

com a teoria da auto-organização e a da complexidade, são abordados os substratos comuns à biologia, à antropologia, fora de qualquer biologismo e de qualquer antropologismo. Uma tal teoria permite revelar a relação entre o universo físico e o universo biológico, e assegura a comunicação entre todas as partes do que nomeamos o real. As noções de física e de biologia não devem ser reificadas. As fronteiras do mapa não existem no território mas sobre o território, com arames farpados e os fiscais da alfândega.

Se o conceito de física se alargar, se complexificar, então tudo é físico. Digo que então a biologia, a sociologia, a antropologia são ramos particulares da física; do mesmo modo, se o conceito de biologia se alargar, se complexificar, então, tudo o que é sociológico e antropológico, é biológico. A física como a biologia deixam de ser redutoras, simplificadoras e tornam-se fundamentais. Isto é quase incompreensível, quando se está no paradigma disciplinar onde física, biologia, antropologia são coisas distintas, separadas, não comunicantes (Morin, s/d, p. 56).

Em consideração concordante com a teoria da complexidade, pode-se estabelecer paralelo com a engenharia, na medida que a ela é já uma atividade que congrega os vários campos do saber disciplinar em unidades tangíveis. Mais que isso, cada vez mais interações são estabelecidas com outras áreas de conhecimento resultando em novas especialidades. Nesse sentido, não se pode compreender a engenharia como atividade alheia a interesses e interferências sociais e ambientais, quaisquer que sejam. A questão então é explicitar em que nível de complexidade estaremos operando.

Um tema já recorrente nas discussões sobre ciência e tecnologia é o do desenvolvimento sustentável, necessitando-se precisar o que isso significa em termos conceituais, uma vez que ele abarca uma miríade de interpretações e está presente nos programas e políticas de C&T de muitos países. Por conta disso, encontra-se imerso num universo onde vicejam os mais diferentes interesses e pressões. Trata-se, desse modo, de assunto público de primeira grandeza.

Portanto, pensar o ensino de engenharia sem pensar em sustentabilidade não é mais cabível, e essa percepção tem sido manifestada em intensidade crescente por todos os atores envolvidos com o desenvolvimento científico e tecnológico. Tornou-se parte da agenda do dia das questões da tecnologia e transforma-se rapidamente em

um novo pressuposto que deverá compor a estrutura pedagógica da engenharia no século 21. No entanto, o significado e as implicações do desenvolvimento sustentável não estão muito claros para a engenharia.

Para situar, por pouco que seja, alguns dos dilemas com os quais nos defrontamos, lanço mão de uma das questões importantes no âmbito da engenharia e que concerne aos iminentes problemas de escassez. Para o enfrentamento deste problema, tem-se apontado para a idéia de desenvolvimento sustentável, que parece bastante simpática às engenharias, que se defrontam com o dilema do aumento da capacidade cognitiva de transformação da natureza com a manutenção (e renovação) dos mananciais naturais. Há até algumas décadas, a maioria dos problemas associados à escassez de recursos naturais estavam restritos ao âmbito local, que seriam resolvidos com a melhoria dos sistemas de transporte, permitindo explorações mais distantes. Atualmente essa visão de solução já parece não ser mais aceitável, posto que a consciência do esgotamento dos mananciais naturais e as pressões sociais tornaram claro que esse problema não encontra solução apenas na ciência- tecnologia, de modo que não há como escapar de se trabalhar com a perspectiva de que as questões em torno da sustentabilidade do desenvolvimento possuem implicações muito mais amplas.

Aqui a idéia de desenvolvimento sustentável é significativamente ampliada se considerada no âmbito das suas interações complexas, para o qual

a sustentabilidade do desenvolvimento não significa um ajustamento suplementar à racionalidade do desenvolvimento moderno. O âmago do conceito – o princípio ético da solidariedade – guarda o imenso desafio contemporâneo de assegurar a sustentabilidade da humanidade no planeta, no interior de uma crise de civilização de múltiplas dimensões interdependentes e interpenetrantes: ecológica, social, política, humana, étnica, ética, moral, religiosa, afetiva, mitológica… A sustentabilidade do desenvolvimento é um problema complexo, porque a sua essência está imbricada em um tecido de problemas inseparáveis, exigindo uma reforma epistemológica da própria noção de desenvolvimento (Paula Yone Strob, In: Morin, 2000, p. 9).

Com essa perspectiva, densa certamente, propõe-se a incorporação de fatores não-técnicos na estrutura pedagógica da engenharia.

Trata-se de ver, no ensino tecnológico, a sua constituição interdisciplinar e transdisciplinar, ou seja, de considerar o que foi tacitamente expropriado desse conhecimento, re-unir seus elementos constituintes em totalidades, não apenas como uma soma de partes separadas, mas urdidas como um tecido onde cada fio é estrutural, e sua falta é imediatamente percebida. Há aqui uma diferença entre a simplificação do complexo, estratégia necessária para o tratamento lógico- matemático, reconhecendo as nossas limitações instrumentais e humanas, e o desconhecimento ou a simples eliminação da complexidade, vendo o fragmento como totalidade. Como afirmava Pascal, “é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como é impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes” (Morin, 1999, p. 30). Mas o todo, no contexto da complexidade, é mais do que a soma das partes.

Esses entendimentos estão presentes nos trabalhos de pensadores importantes, como Georges Lukács e Gaston Bachelard. Lukács, revendo na velhice sua visão dogmática, considera que “o complexo deve ser concebido como elemento primário existente. Daí resulta que é preciso primeiro examinar o complexo enquanto complexo e passar, em seguida, do complexo aos seus elementos e processos elementares” (Lukács, apud Morin, s/d, p. 23).

Morin, referindo-se ao pensamento de Bachelard, comenta que ele considerava que o simples não existe, apenas o simplificado. “A ciência constrói o objeto extraindo-o do seu meio complexo para o colocar em situações experimentais não complexas. A ciência não é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística necessária para libertar certas propriedades e mesmo certas leis” (Morin, s/d, p. 23).

4.7 Especialidade, tecnocracia e o sentido da interdisciplinaridade para a