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7. Agricultura

7.8 Viticultura no concelho das Velas

7.8.3 Cultivo das vinhas

Quanto às técnicas empregues no cultivo da videira no passado, existem algumas carências de apontamentos ou referências, embora os estudos desenvolvidos no século XX por alguns autores ajudem a preencher, em certa parte, essas lacunas.

O cultivo da vinha realizava-se sobretudo em terras de pouca superfície arável. Na documentação surgem frequentemente os termos “mistérios” e “biscoitos”. A distinção entre

87 os dois, segundo Manuel Brasil (1987: 28), é o termo mistérios designar os terrenos onde o escorrimento lávicos ao solidificar em contacto com solo formou um afloramento rochoso bastante denso. Ainda hoje existe o lugar Mistérios em Santo Amaro, topónimo que advém da erupção de 1580. Já o termo de biscoitos é usado para os solos que são compostos por escórias e bombas vulcânicas e com alguma terra.

No século XVIII, o padre António Cordeiro (Liv. VII: 431) refere que o melhor vinho era produzido entre o biscoito queimado. Enquanto no século XIX, os irmãos Bullar (1986: 285), na sua breve passagem pela Urzelina, mencionam as tentativas dos populares para tirar proveito dos rochedos formados após a erupção de 1808, plantando o vinhedo entre eles. O trabalho envolvido nestes terrenos incipientes e pedregoso implicou uma tarefa colossal, que se desenrolou ao longo dos séculos. A construção dos socalcos juntos à rocha e remoção e transporte de milhões de pedras, muitas tendo servido para construção dos currais destinados ao abrigo das vinhas dos ventos e rocios do mar, são o expoente máximo deste trabalho. Estes currais feitos com pedra, sem qualquer tipo de argamassa, criavam um micro ambiente característico que refletia na maturação da uva. Isto é, ao longo do dia funcionavam como painéis de retenção do calor e durante a noite libertavam-no.

Nas fontes do seculo XVIII, especialmente nos contratos de arredamento, dão-nos algumas pistas sobre as exigências dos senhorios nos amanhos nas terras de vinha. Como visto, a 8 de maio de 1752 o senhorio capitão António André da Silveira, morador na Vila das Velas, arrendava dois pedaços de vinha na Ribeira do Nabo a Manoel Machado de Andrade e exigia que mondasse as vinhas a tempo e horas, pois iram dois lavradores, por parte do senhorio, em cada ano ver as vinhas e não as achando bem trabalhadas, a escritura ficava sem efeito. Além disso, o novo rendeiro comprometia-se a erguer uma casa de adega, que era de palha e madeira, com as mesmas condições (palha, portas e lagar), sendo pagas no fim do arrendamento pelo senhorio93.

Em 2 de agosto de 1752, o senhorio Pedro de Sousa de Bettencourt arrenda dois pedaços de vinha na Queimada a Manoel Pereira de Ávila e Manoel Machado Valadão, moradores na vila das Velas. O montante estabelecido para a renda era de 2.000 reis em cada ano, no mês de setembro. Estes dois pedaços de vinha eram separados, sendo que um deles continha uma casa palhoça com seu lagar. Os novos rendeiros seriam obrigados a cultivar bem vinha, como os bons lavradores, e tratar dela como fosse sua. Não a cultivando a tempo, como é costume, pagariam toda o dano que a dita vinha sofresse. As benfeitorias que fizessem

88 na vinha, sendo úteis, seriam pagas pelo senhorio no fim do arrendamento. A casa e o lagar seriam obrigados os rendeiros a deixá-los no fim do arrendamento como estavam94.

No entanto, não existe nenhuma alusão a como seriam os trabalhos dos vinhedos. Tendo em conta alguns estudos realizados no século XX sobre o cultivo e amanhos das vinhas sabemos que variariam consoante a natureza dos terrenos. Assim havia pelo menos três situações: as terras de mistérios e biscoitos; as arribas de fajãs e rochas e as vinhas em chão de terra. As duas primeiras são descritas pelo Engª. José Cunha da Silveira em “A viticultura na Ilha de Sam Jorge (Açores)” e a última por Engª. Manuel Brasil em “Notas para a História da Viticultura Jorgense”.

No cultivo dos vinhedos realizado nos biscoitos e mistérios (terrenos pedregosos) eram rompidas pelo alvião pequenas covas aonde se ponham os bacêlos, em regra a alguma profundidade, sem qualquer uso de estrumação. Contudo, nas arribas de fajãs e rochas, especialmente na costa Norte, podiam ser usadas plantas marítimas como o sargaço (sargassum vulgare) na adubação das cepas. Ao contrário das vinhas instaladas em biscoito, as das fajãs e rochas produziam um vinho de inferior qualidade e viviam ao lado de outros cultivos como a batata.

O uso da enxertia não seria comum. Em vez disso, os repovoamentos parciais faziam-se pelo processo de mergulhia, isto é, enterrava-se parte da vara velha e do ano anterior sem a destacar da madre até ganhar raiz. Os amanhos das vinhas limitavam-se às mondas das silvas e fetos, que acontecia pelo menos duas vezes ao ano. A poda das vinhas seria feita com o auxílio do podão (Catálogo 4.2.1) deixando-a cumprida, de 6 ou 7 nós, e sem polegares ou esperas (rebentos dos nós).

A vinha era estacada e conduzida sobre pequenos tanchões de tamujo, de urze e canas, sendo também amarrada por causa dos ventos. Esta tarefa de estacar e amarrar era importante para que os cachos não ficassem em contacto com o solo e não apodrecessem. A cepa era mantida baixa por causa do rocio do mar e dos ventos fortes, sendo protegida nestes espaços cercados (curais) por muros feitos em pedra, com uma altura cerca de 1 m. Em alguns casos podia ser protegida por um bardo de faias (Myrica Faya), mas nesta opção a vinha envolver- se-ia no tutor, daí resultando vinha alta, que produzia um vinho de menor qualidade. A faia era podada conjuntamente com a videira, deixando-a o mais baixo possível (Silveira 1927: 241-243)

94 Ibidem, fls. 84v-85v.

89 Na primeira metade do século XIX, os irmãos Bullar sobre esse aspeto descreviam o seguinte:

“As vinhas são “educadas” para treparem pelas altas faias, árvores de vinte a vinte cinco pés de altura e que quase se tocavam por sobre o caminho. Era a época da rebentação e as suas folhinhas verdes e tenras tornavam agradável contraste com o verde escuro das árvores, sobre as quais cresciam, e com o cinzento claro da casca. A graça que lhes emprestavam compensava bem as faias, da força que as vides lhes tiravam”(Bullar 1986: 286).

A vinha cultivada em solos de chão de terra, menos pedregosos, implicava uma sequência de trabalhos bem mais árduos, que começavam com a surriba ou desmancha do terreno. A desmancha consiste em abrir uma vala na cabeceira do terreno com uma profundidade perto de 1 m e a largura suficiente para um homem. Estes colocam-se no fundo da mesma, em linha horizontal, e vão cavando em frente, pondo pedras para um lado e padejando a terra para outro. Pelo terreno já desmanchado seria então distribuída a terra uniformemente e as pedras reaproveitadas para construir os currais. Seguidamente, a terra era dividida em vários currais de pedra, cuja área podia variar dependo da sua exposição aos ventos. Nos currais são deixadas uma ou duas entradas de comunicação. Antes de armados os currais, era construída uma parede que circunda toda a propriedade, a que designam “comoro grande”.

Estas terras destinadas aos vinhedos eram outonadas durante o mês de outubro com tremoços em associação com cevada e favas. Por vezes a adubação era ainda complementada por algumas carradas de estrume proveniente dos estábulos. Chegados a princípios de fevereiro era arrancada a outonagem e enterrada na terra.

De fins de fevereiro a março plantavam-se os barbados (pé da vinha) ou bacêlos, abrindo uma cova perto dos 50 cm de profundidade. No fundo era posto uma camada de estrume e em cima o barbado com as raízes bem estendidas. Enchia-se a cova com terra, não completamente, deixando forma de captar água junto ao barbado. A sua distribuição dentro dos currais dependia da dimensão dos mesmos, não havendo a preocupação com alinhamentos, somente havia o cuidado em deixar espaço suficiente entre as cepas.

A vinha era sachada durante os meses de abril-maio, sendo novamente mondada entre fins de julho ou no decorrer do mês de agosto. A enxertia, apenas empregue depois da invasão da filoxera, fazia-se com os barbados que melhor se adequariam ao processo. A poda era

90 realizada no inverno, não tem uma data precisa, e seguia critérios do próprio vinicultor, podendo ser mais curta ou mais cumprida, com ou sem polegar, consoante a necessidade da vinha. Por fim, a amarração das vinhas desempenhava duas funções distintas: distribuir as varas uniformemente em redor da cepa e para resistir aos ventos (Brasil 1987: 36-38).

Chegado o mês de setembro iniciavam-se as vindimas. Os cachos de uvas, apanhado com auxílio do podão, eram postos no cesto de asa ou “cesto de vindima”, de configuração redonda sobre o comprido, com capacidade variável, que se levava ao braço. Despois de cheios eram vazados para os cestos de carreto – os vindimos - com uma forma troncocónica que regulava dois potes de vinho, isto é, 24 litros (Catálogo 4.2.2). Estes são carregados no ombro do homem ou na cabeça da mulher que os levam até ao carro de bois, ou seguem diretamente até aos lagares, dependendo da distância (Brasil 1987: 38-39; Cunha 1927: 243).