• Nenhum resultado encontrado

2.4 OS COMPONENTES CONSTITUTIVOS DA EDUCAÇÃO POPULAR

2.4.1 Cultura

Discutir o conceito de cultura não é uma tarefa fácil, visto que há uma pluralidade conceitual que dificulta uma compreensão aproximada de seu significado. No presente trabalho, resgatam-se o movimento e a produção como categorias teóricas norteadoras do conceito de cultura, fundamentando-se na concepção de Álvaro Vieira Pinto para o exercício dessa reflexão.

Vieira Pinto (1979) concebe a cultura como criação humana, como processo de produção da existência dos humanos. A cultura, nas palavras do autor, é resultado da “complexidade crescente das operações de que esse animal se mostra capaz no trato com a natureza, e da luta a que se vê obrigado para manter-se em vida” (p. 121-122). A cultura é concebida como uma manifestação histórica do processo de hominização. Portanto, cultura é coetânea do processo de hominização, o que significa dizer que tanto a criação da cultura como a criação humana constituem duas faces de um único e mesmo processo, que passa de orgânico na primeira fase a social na segunda, estando sempre presentes, interligados e se condicionando mutuamente.

O ser humano encontra-se em constante desenvolvimento, passando por diversas fases desse desenvolvimento. Nesse processo de desenvolvimento e de criação humana, o humano foi aperfeiçoando-se, transformando a realidade e a sua própria existência. Nesse processo de transformação, o homem torna-se um ser produtor, mas que no início produz inconscientemente e depois passa a produzir consciente de si mesmo. Desse modo, a cultura se desvela como um processo de acumulação das experiências vivenciadas pelos humanos, estes selecionam aquelas que lhes são favoráveis. “Suas imagens e lembranças, advindas das realidades sensíveis, são convertidas em ideias. Assim, avança para as generalizações, expressando um processo de

diferenciação do mundo material enquanto que adquire contornos no pensamento humano” (MELO NETO, 2006a, p. 26).

A cultura enquanto processo produtivo, como produção da existência em geral, apresenta dois sentidos: “produção do homem por si mesmo, mediante a ação exercida sobre a natureza para se perpetuar como espécie que evolui e adquire progressivamente a capacidade ideativa; e produção dos meios de sustentação de vida para o indivíduo e a prole” (VIEIRA PINTO, 1979, p. 124).

O autor chama a atenção para a dupla natureza da cultura, enquanto produto do processo produtivo, como pode ser observado nesta passagem:

[...] de bem de consumo, enquanto resultado, simultaneamente materializado em coisas e artefatos e subjetivado em ideias gerais, da ação produtiva eficaz do homem na natureza; e de bens de produção, no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de subjugação da realidade pelas ideias que a representam, constitui a origem de nova capacidade humana, a de idealizar em prospecção os possíveis efeitos de atos a realizar, conceber novos instrumentos e novas técnicas de exploração do mundo, e criar ideias que significam finalidades para as ações a empreender (VIEIRA PINTO, 1979, p. 124).

Lembra ainda que, em muitas sociedades, em que há classes distintas, estes dois aspectos, cultura como bem de consumo e bem de produção, não se encontram igualmente distribuídos.

Daí resulta a situação em que apenas uma parte, um grupo minoritário, por ser o detentor da cultura enquanto bem de produção, forma a classe daqueles que têm o privilégio de conceber as finalidades sociais, e por isso aparece como “culto”, enquanto o restante, as massas, que somente manejam os bens de produção sem os possuir e só escassamente absorvem os bens de consumo, adquirem a enganosa aparência de parte “inculta” da sociedade (VIEIRA PINTO, 1979, p. 124).

A observação do autor revela que, em certa fase da história humana, a cultura surge separada, visto que deixa de ser um bem geral de consumo e de produção, igualmente, ao alcance de todos os humanos para se tornar privilégio de uso de alguns. Então, os bens culturais passam por uma divisão, ficando no poder de grupos minoritários os bens que representam o aspecto de produção da cultura, possibilitando-lhes acumular riquezas; e “os bens que corporificam as forças produtivas põem a seu serviço os grupos sociais, que formarão a grande maioria das comunidades” (PALHANO, 2008, p. 179).

Nesse sentido, apreendemos que a humanidade produz e reproduz cultura devido à uma necessidade existencial, para se apropriar dela, para expressar, criar e recriar a realidade. Portanto, “o homem produz a cultura por uma necessidade existencial, para se apropriar dela, pois é por meio dela que chega a postular as finalidades da sua ação” (VIEIRA PINTO, 1979, p. 126). Entretanto, como enfatiza Baptista (2008), conforme a estruturação social de cada sociedade, o homem deixa de apropriar-se da cultura, de dominá-la e passa a alienar-se a ela, ao transformá-la em uma realidade acima dele, coisificando-a. Nessa perspectiva, Vieira Pinto (1979, p. 126) destaca:

O que se passa em tempos como os atuais, porém, e em sociedades como a nossa, é que, por motivo do rumo tomado pela estruturação social, o homem em vez de se apropriar da cultura, de dominá-la, faz o inverso, aliena-se a ela, transforma-a numa realidade entificada, superior a ele. Daí decorre duas consequências: o homem se aliena à cultura, só sendo reconhecido “culto” aquele que cultiva os valores culturais alheios; e por outro lado, a cultura se corrompe na essência deixando de ser concreta, como deveria ser por natureza, para se tornar abstrata.

Esse processo de alienação ou de aleijamento na posse, na propriedade dos bens culturais, é consequência da histórica divisão social do trabalho e do surgimento das classes sociais. Nesse sentido, o pesquisador alega:

[...] nas sociedades divididas em classes, a cultura tem necessariamente base de classe [...]. Onde existem classes em antagonismo, as concepções ideológicas e os produtos materiais da arte não podem deixar de refletir a situação individual de quem os produz [...] entendemos por cultura o conjunto dos bens materiais e espirituais criados pelos homens ao longo do processo pelo qual, mediante o trabalho, exploram a natureza e entram em relações uns com os outros, com o fim de garantir a satisfação de suas necessidades vitais (VIEIRA PINTO, 1994, p. 40).

Macedo (1988) ressalta a importância de se considerar as relações sociais para compreender a cultura, visto que “é apenas por referência à estruturação dessas relações (elucidadas a partir de certas determinações fundamentais) que o sentido da produção cultural pode ser apreendido” (p. 34). A autora compreende cultura como um “conjunto global de modos de fazer, ser, interagir e representar que, produzidos socialmente, envolvem simbolização e, por sua vez, definem o modo pelo qual a vida social se desenvolve” (p. 35). Na sua concepção, a cultura somente poderá ser analisada a partir do reconhecimento de que não há atividade humana desvinculada da construção de significados que passam a dar sentido à existência. Portanto, a análise da cultura envolve a reflexão do produto da atividade dos

humanos, mas também do processo dessa produção; considera o modo como esse produto é socialmente produzido.

Como sugestão, acrescenta a necessidade de se fazer uma análise da cultura a partir da explicitação “não apenas de que maneira o proletariado incorpora uma ideologia de mobilidade social, mas também, em reconstituir a maneira pela qual a condição proletária é concretamente vivida em função dessa incorporação” ( p. 38).

Cabe salientar ainda que a incorporação de um conjunto de valores capitalistas torna-se requisito para reprodução da ordem vigente, entretanto, não significa que as classes populares deixem de produzir e manipular conjuntos culturais que traduzam uma rejeição da situação em que estão inseridos. Nessa perspectiva, Wanderley (1994, p. 60) anuncia que “o povo tem uma sabedoria popular, expressa em seus códigos, dramaturgia, religiosidade, produtos culturais e senso comum”. Esses elementos constituem a base fundamental que deve servir de plataforma para que as classes populares e os intelectuais orgânicos possam chegar à hegemonia da sociedade civil no processo concomitante de sua libertação social, econômica e política.

Portanto, uma prática consequente da educação popular deve partir não apenas do saber popular constituído, da cultura do povo, mas daquilo que as pessoas dos setores populares simbolicamente se dizem, através da trama complexa que faz as suas vidas, ou seja, dos dados reais da vida cotidiana que constituem e renovam sem cessar este saber e a cultura que o povo cria e onde existe (BRANDÃO, 2001, p. 57).