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6. A feminização do jornalismo sob a ótica das desigualdades de gênero

6.5. Culturas profissionais

As culturas profissionais do campo jornalístico são frequentemente descritas pela literatura especializada como instâncias que historicamente operaram segregações horizontais calcadas em gênero. Assevera-se que o jornalismo é construído de uma perspectiva masculina imposta como norma (DAMIAN-GAILLARD, FRISQUE e SAITTA, 2009). Conforme Leite, “a figura do jornalista vista de uma forma abstrata, neutra, universal remete às categorias masculinas. O jornalista universal é geralmente pensado como um homem” (2017, p.16). Nesse sentido, os imaginários de isenção e imparcialidade valorizados pelos códigos deontológicos da área se aproximam muito mais facilmente de um habitus masculino, supostamente forjado na racionalidade e na retenção emocional (NEVEU, 2000). Para Nilsson, as “hard news, as fontes masculinas, a posição de objetividade/neutralidade, e os critérios de qualidade e ética definidos pela profissão são apreendidos como parte de uma lógica ‘masculina’ dominante” (2000, p.1).

Se tais axiologias que privilegiam o masculino permeiam a formação dos comunicadores desde a Universidade (LEITE, 2017), as mulheres que atuam no setor veem-se obrigadas a entronizarem uma cultura que de partida perturba suas possibilidades de autorrealização através da identificação profissional (DE BRUIN, 2000), uma vez que a “lógica feminina” é corriqueiramente associada nas redações às coberturas de menor relevância informativa (NILSSON, 2010). Seja em âmbito internacional (NEVEU, 2000; DAMIAN-GAILLARD, FRISQUE e SAITTA, 2009; BARTON e STORM, 2014) ou nacional (ROCHA, 2007; SILVA, 2012, 2013; LEITE, 2017), é fato largamente sustentado a

alocação de jornalistas mulheres em editorias e pautas consideradas mais “brandas” (também nomeadas de soft news), tradicionalmente ligadas a assuntos culturais, fait-divers, e aos aspectos estereotípicos da feminilidade (beleza, moda, entretenimento, maternidade, economia doméstica, comportamento) – notadamente de menor impacto na opinião pública. Diretores executivos e especialistas em marketing editorial habitualmente avaliam ser comercialmente rentável contratar jornalistas mulheres para assinarem matérias voltadas a temas apreciados como de interesse exclusivo ao público feminino, sob a vaga suposição de uma “sintonia” de interesses (DAMIAN-GAILLARD, FRISQUE e SAITTA, 2009; DAMIAN-GAILLARD e SAITTA, 2016).

Entretanto, como matéria assinada por Amanda Florindo e Erika Motoda para o Rudge Ramos Online (e publicada em 27 de outubro de 2016) permite entrever, há uma relativa aversão dos editores a atribuírem (seja para mulheres ou homens) pautas ligadas aos temas de gênero e sexualidade, sobretudo quando dedicados à problematização das normatividades estabelecidas99. Fenômeno similar também foi detectado tanto na etapa de survey quanto nos grupos focais que compuseram o relatório “Mulheres no Jornalismo Brasileiro” (2017): se 56,6% das participantes destacaram já terem assinado ao menos uma matéria em que o tema envolvia discussões de gênero, nos grupos focais as comunicadoras se queixaram da interferência de editores homens, que com certa frequência tentavam alterar matérias que reportavam casos de violência contra a mulher, ora inserindo brincadeiras e trocadilhos nos títulos, ora modificando o texto sob a alegação de que seria necessário “equilibrá-lo”, ou seja, colocar os homens em posição simétrica às vítimas de violência.

Nos termos de Leite (2017), em decorrência dessas práticas de setorização e retaliação, “as matérias produzidas pelas mulheres têm muito menos chance de estarem estampadas na capa dos jornais, o que gera uma segregação vertical, na medida em que são atribuídos valores desiguais aos trabalhos produzidos por homens e por mulheres” (p.54). A investigação empírica empreendida por Silva (2012, 2013) na redação de telejornalismo de um dos programas da RBS TV, de Porto Alegre, elucida de maneira satisfatória esse ponto: nas reportagens de cunho investigativo (que ganhavam manchete na escalada do programa), a autoria era exclusivamente masculina. “Na base da hierarquia estavam as soft news (...) que não previam um perfil especial de repórter, mas em geral eram concebidas para mulheres (ou

99

No texto, a repórter Maria Teresa Cruz, que à época atuava na Band News FM, relatava os entraves que recebeu da chefia para produzir uma reportagem sobre o estupro de mulheres no Brasil. Disponível em:

http://www.metodista.br/rronline/noticias/educacao/2016/parajornalistasedificildenunciarassedionaprofissao. Acesso em 10. Fev. 2017.

homens reconhecidos por fazerem matérias ‘não sérias’), e eram exibidas nos demais blocos, de menor audiência” (SILVA, 2013, p.100). Ademais, muito embora a apresentação do programa fosse dividida por um homem e uma mulher (ambos editores-chefes do noticiário em questão), o profissional do gênero masculino gozava de mais autonomia, prestígio e autoridade na delegação de tarefas aos seus colegas. Normalmente, a essa editora-chefe eram destinadas exatamente as matérias “leves, divertidas, ‘femininas’, sem status de hard-news” (SILVA, 2013, p.101). Para a autora, o que promovia a não contestação dessa segregação horizontal era, sobremaneira, o fato de que tanto homens quanto mulheres partilhavam na redação os mesmos valores e expectativas de gênero, de tal modo que a própria editora-chefe em tela assumia que jornalistas afeitos ao tipo-ideal profissional eram mais aptos a efetuarem a cobertura de determinadas pautas.

Novamente conforme Leite (2017), uma estratégia para contornar as desigualdades de gênero no plano das culturas profissionais adotada por algumas jornalistas mulheres é a de “neutralizar” sua performatividade de gênero,

mantendo-a na intimidade, na subjetividade, não na prática da profissão. Os valores profissionais são exaltados por resultarem em maior reconhecimento da profissional, o que conduz as mulheres a reforçarem sua identidade profissional em detrimento da de gênero, que estaria ligada a estereótipos negativos (p.62).

Porém, como Clarisse (uma das entrevistadas para a pesquisa em curso) explicita, remetendo à sua experiência como repórter principalmente em editorias de esporte, os custos de exercitar tal tática quase sempre são altos, oferecendo um profundo desgaste psicológico em contrapartida: “Não era uma coisa muito confortável. Você tinha que ficar provando muito mais que você sabia pelo fato de você ser mulher” (DEPOIMENTO extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 24 de agosto de 2016).