• Nenhum resultado encontrado

3. Um grupo profissional em vias de dissolução? Redações em crise, integrações precárias

3.2. Gerações evanescentes

Por certo os indícios de precarização do campo jornalístico em São Paulo não se restringem ao espectro da remuneração, das jornadas e do acúmulo de atividades. Os dados coletados por um dos surveys desta pesquisa, enfocado em deslindar o perfil sócio profissional dos comunicadores do Estado de São Paulo, sustentam outras vias de deterioração de suas condições de trabalho: dos 238 respondentes, mais da metade (55%) indicou estar em uma empresa de comunicação por um período de um a três anos, seguidos de 27% atuando para o mesmo empregador entre três e seis anos, e somente 18% vinculados por mais de seis anos a uma mesma organização.

Gráfico 29 - Tempo de trabalho na empresa atual

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

Os índices de mobilidade na carreira também são altos, com 45% dos participantes assinalando já ter atuado em outras empresas do mesmo setor, 40% em empresas de outros setores, e somente 15% se restringiram a um único emprego ao longo de sua trajetória.

55% 27% 9% 3% 3% 3% 1 a 3 anos 3 a 6 anos 6 a 10 anos 10 a 15 anos 15 a 20 anos Acima de 20 anos

Gráfico 30 - Mobilidade na carreira

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

Já os resultados do segundo survey aplicado no percurso desta investigação (com 318 participantes) apontam um predomínio por formas precárias de contratação: somente 33% dos respondentes alegaram atuar sob o regime da CLT e 8% como servidores públicos, enquanto que 18% se declaravam freelancers, outros 18% se identificavam como PJs, 9% exerciam suas atividades em contratos de prestação de serviços, 4% trabalhavam em cargos em comissão e 1% como estagiários46. Ou seja, a metade dos participantes deste survey (50%) alegou trabalhar em um regime flexível de contratação.

Gráfico 31 - Formas de contratação

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

46

Outros 6% se identificaram como empresários e 3% ficaram na categoria “Outros”. 15%

45%

40% O emprego atual é o único

Já esteve em outras empresas do mesmo setor

Já esteve em empresas de outros setores 33% 18% 18% 9% 8% 6% 4% 3% 1% Carteira assinada Freelancer

Atuação como Pessoa Jurídica (PJ) Contrato de prestação de serviços Servidor(a) público

Empresário(a) Cargo em comissão Outros

A consequência desta propensão a regimes instáveis de emprego no setor é uma dispersão nos acordos de férias e a uma redução acentuada no percentual de profissionais que recebem o 13º salário, como os gráficos a seguir permitem constatar:

Gráfico 32 - Férias

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

Gráfico 33 - Pagamento de 13º Salário

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

Dentre os 318 respondentes da pesquisa, impressiona que 55 (25% da amostra) tenham alegado não gozar deste direito, enquanto que 35 (16% do total) apontaram que os períodos de

42% 25% 16% 9% 4% 4% Anualmente (30 dias) Sem férias Conforme demanda de trabalho Férias obrigatoriamente fracionadas em 15+15 Somente recessos Férias coletivas 55% 45% Sim Não

férias são concedidos conforme demanda de trabalho (ou seja, podem simplesmente ser suspensos) e outros 10 (4%) indicaram que só usufruem de descanso em recessos antes ou após feriados nacionais e regionais. Somando os quatro grupos, constata-se que para 45% dos participantes, quase metade do total, o direito a férias, previsto no Decreto-Lei Nº 1535, de 15 de abril de 197747 da Consolidação das Leis do Trabalho não é garantido, visto que uma parcela expressiva dos respondentes nem mesmo possui contrato com carteira assinada.

A mesma situação é observável no que tangencia ao pagamento do 13º salário aos jornalistas: ao passo em que 55% dos participantes do segundo questionário (176 profissionais) assinalaram que recebem anualmente o 13º salário, outros 45% (ou 142 trabalhadores) não são beneficiados com esta gratificação. Sendo o 13º um direito aos trabalhadores com carteira assinada, conforme a Lei Nº 4090, de 13 de julho de 196248, pode- se afirmar que na atual conjuntura quase metade dos jornalistas de São Paulo não são contemplados com direitos trabalhistas fundamentais por não possuírem contratos estáveis nas empresas de comunicação.

Se discriminados por faixas etárias, os dados ainda indicam acentuação na deterioração das condições de trabalho entre os jornalistas com maior experiência no setor: no survey aplicado a 238 profissionais da área, na faixa de 31 a 70 anos os gráficos de tempo de permanência em uma mesma empresa mantém uma inclinação para vínculos de até três anos: entre 31 e 40 anos os números atingem 45%; entre 41 e 50 anos 33%; e entre 51 e 70 anos, 36%.

47

O Decreto-Lei institui que todo empregado terá direito anualmente a um período de férias, usualmente 30 dias corridos que podem também ser divididos em dois períodos em regime individual ou coletivo. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1535.htm. Acesso em 10 dez. 2018. 48

Gráfico 34 - Tempo de trabalho na empresa atual (por idade)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

As taxas de mobilidade na carreira também permanecem sem alterações substanciais em todos os recortes geracionais, com diminuição progressiva do índice de profissionais que atuaram em uma única organização no decurso de sua trajetória.

Gráfico 35 - Mobilidade na carreira (por idade)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

No tocante às formas de contratação, os resultados do survey “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo” corroboram tal indício de precarização dos jornalistas de idade mais avançada - tradicionalmente responsáveis por contribuírem na

0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2

19-30 anos 31-40 anos 41-50 anos 51-70 anos

71% 45% 33% 36% 25% 34% 30% 18% 5% 21% 37% 46% Mais de 6 anos 3 a 6 anos 1 a 3 anos 0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

19-30 anos 31-40 anos 41-50 anos 51-70 anos

17% 15% 9% 11% 46% 45% 36% 54% 36% 40% 55%

36% Já esteve em empresas de outros

setores

Já esteve em outras empresas do mesmo setor

constituição de uma “identidade ocupacional” entre os novatos. Se entre os comunicadores de 19 a 30 anos o índice de registrados sob o regime de CLT atinge os 56% (seguido por freelancers (17%) e PJs (11%)), na faixa entre 31 e 40 anos esta taxa recua para 36% (com 20% de freelancers e 17% de PJs); entre 41 e 50 anos novo declínio de profissionais com CLT (somente 22%, seguidos de 26% de PJs e 13% de freelancers); entre 51 e 60 anos o índice atinge 20% (com 22% de freelancers e 18% de PJs); e por fim, na última faixa etária, entre 61 e 70 anos, o número de comunicadores com CLT atinge seu valor mais baixo, de 19% (comprimidos entre a taxa de 22% de PJs, 19% de contratos de prestação de serviços e 13% de freelancers).

Gráfico 36 - Formas de contratação (19 a 30 anos)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

Gráfico 37 - Formas de contratação (31 a 40 anos)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”. 56% 17% 11% 5% 5% 3% 1% 2% Carteira assinada Freelancer

Atuação como Pessoa Jurídica (PJ) Contrato de prestação de serviços Servidor(a) público Empresário Outros Estágio 36% 20% 17% 6% 7% 6% 6% 1% 1% Carteira assinada Freelancer

Atuação como Pessoa Jurídica (PJ) Contrato de prestação de serviços Servidor(a) público

Empresário Cargo em comissão Outros

Gráfico 38 - Formas de contratação (41 a 50 anos)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

Gráfico 39 - Formas de contratação (51 a 60 anos)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”. 22% 13% 26% 11% 11% 8% 9% Carteira assinada Freelancer

Atuação como Pessoa Jurídica (PJ) Contrato de prestação de serviços Servidor(a) público Empresário Cargo em comissão 20% 22% 18% 12% 12% 6% 2% 8% Carteira assinada Freelancer

Atuação como Pessoa Jurídica (PJ) Contrato de prestação de serviços Servidor(a) público

Empresário Cargo em comissão Outros

Gráfico 40 - Formas de contratação (61 a 70 anos)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

Estes indicadores também são reforçados no que se refere ao pagamento de 13º salário, conforme expresso no gráfico seguinte:

Gráfico 41 - Pagamento de 13º Salário (por idade)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Condições de trabalho dos jornalistas profissionais do Estado de São

Paulo”.

Entre os profissionais de 19 a 30 anos, há uma expressiva maioria (72% do total) que é contemplada com o subsídio de Natal. No próximo segmento etário, de 31 a 40 anos, este percentual já é reduzido a 58% da amostra, até que as porcentagens se invertem no estrato

19% 13% 22% 19% 3% 13% 8% 3% Carteira assinada Freelancer

Atuação como Pessoa Jurídica (PJ) Contrato de prestação de serviços Servidor(a) público Empresário Cargo em comissão Outros 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 19-30 31-40 41-50 51-60 61-70 72% 58% 40% 49% 42% 28% 42% 60% 51% 58% Não Sim

seguinte, de 41 a 50 anos, onde somente 40% dos respondentes recebem o 13º salário enquanto que os outros 60% são privados deste direito, refutando a perspectiva de que o amadurecimento no campo poderia conduzir a uma maior estabilidade profissional e ao cumprimento mais rigoroso dos direitos trabalhistas. Nas faixas seguintes, de 51 a 60 anos e de 61 a 70 anos, mantêm-se o quadro: no primeiro grupo, são 49% dos comunicadores que recebem a referida gratificação, e no segundo, o mesmo índice se reduz a 42%.

A fragilização de postos de trabalho mais estáveis para jornalistas de maior experiência na área implica em uma maior parcela destes profissionais que se veem compelidos a complementarem sua renda mensal com prestação de serviços extras. Se na faixa de 19 a 30 anos pouco mais de um terço dos respondentes (ou 38% da amostra) afirmam acumular funções com vistas a uma maior remuneração, entre os jornalistas de 31 a 40 anos estes índices se elevam para 42% - até atingirem seu ápice no bloco de 41 a 50 anos, com 52% dos trabalhadores (ou mais da metade do total) exercendo atividades extras. Os percentuais decrescem suavemente no último estrato, de 51 a 70 anos, em que 46% dos colaboradores relataram prestar serviços para complementarem a renda.

Gráfico 42 - Prestação de serviços para complementação de renda familiar (por idade)

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

Desestruturações desta natureza no mundo do trabalho dos jornalistas foram recentemente sinalizadas por autores como Zélia Aghirini (2012) e Deuze e Witschge (2016), sobretudo devido às sucessivas ondas de demissões de profissionais com salários mais altos

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%

19 a 30 anos 31 a 40 anos 41 a 50 anos 51 a 70 anos

38% 42% 52% 46%

62% 58% 48% 54%

Não Sim

(substituídos por recém-formados de baixa remuneração e maior adaptabilidade às normas político-editoriais das organizações) e pelo enxugamento dos postos de trabalho que muitos deles ocupavam. Na etapa de análise de conteúdo da pesquisa em curso tais tendências também se viram refletidas: das 61 matérias elencadas na categoria “demissões”, ao menos 31 reportam nominalmente exonerações de jornalistas de reconhecida reputação na área. Também no estrato de reportagens que se propõem a oferecer reflexões sobre as supostas crises que afetam os veículos de imprensa esta problemática é debatida: em uma série de

textos sobre o tema, intitulados “A pior profissão do mundo”49 e “A revoada dos

passaralhos”50, ambos publicados em 10 de junho de 2013 pelo portal Pública, menciona-se, a título de exemplo, o caso de diversos jornalistas com mais de 20 anos de vivência em redações que foram exonerados das organizações para as quais prestavam serviços (alguns deles inclusive tendo migrado para outras áreas após a notificação da dispensa). Em uma das matérias é narrado o caso de Paulo, repórter da editora Abril que, com 53 anos e 28 de profissão, é um dos poucos colegas com mais de 50 na redação. Em suas palavras:“Você tem uma quantidade gigantesca de jovens na faixa do 20 e tantos e 30 anos, aqui na Abril. O que acontece? Com o tempo a empresa vai simplesmente substituindo” (FONSECA et al, 2013).

Já em coluna assinada por Moretzsohn para o Observatório da Imprensa de 13 de janeiro de 2015 com o título “O jornalismo sem jornalistas”51 o enfoque é o “passaralho” ocorrido no grupo Globo no início daquele ano, que teria vitimado aproximadamente 160 contratados, muitos deles com mais de 20 anos na empresa - informados sobre sua exoneração sem qualquer aviso prévio. Os critérios para os cortes teriam sido tempo de casa e nível salarial. Na perspectiva da autora, “a saída de alguns dos mais experientes jornalistas é mais um passo no caminho suicida que vem sendo percorrido há décadas pelas empresas jornalísticas de modo geral” (MORETZSOHN, 2015).

O diagnóstico inverte dinâmicas já exaustivamente analisadas que ressaltavam a instabilidade profissional exclusiva a jornalistas jovens, ainda em inserção no mercado. A título de ilustração, no contexto francês, Ruellan (2001) destacara a expansão do serviço de freelancers entre novatos na profissão, que “antes de poderem ascender a postos de trabalho estáveis, devem passar por uma fase de empregos descontínuos e precários, constituindo uma direção de ajuste que permite aos empregadores julgar sua capacidade (de trabalhar e se

49 Disponível em:

http://apublica.org/2013/06/revoada-dos-passaralhos/. Acesso em 10. Fev. 2017.

50

Disponível em: http://apublica.org/2013/06/revoada-dos-passaralhos/. Acesso em 10. Fev. 2017. 51

Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em- questao/_ed833_o_jornalismo_sem_jornalistas/. Acesso em 10. Fev. 2017.

adequar à empresa) por um período relativamente longo (muitas vezes vários anos)” (p.142). No Brasil, Heloani (2005) e Fígaro (2013) também haviam frisado esta inclinação do mundo do trabalho dos comunicadores em oferecer postos precários a principiantes na carreira que, enquanto buscavam melhores oportunidades, submetiam-se a jornadas extenuantes (entre oito a dez horas por dia) com contratos flexíveis.Considerava-se, inclusive, que este período de instabilidade era naturalizado pelo ingressante na carreira, possibilitando a “aceitação e participação em rituais de socialização profissional que admitem os tempos, a paciência, a maleabilidade, e mesmo a submissão, como experiências necessárias para obter o direito a um trabalho” (RUELLAN, 2001, p.147).

Os deslocamentos nos modos de inserção no mercado também repercutem, por sua vez, em teses caras às sociologias das redações, que descreveram, em outros contextos, um aprendizado tácito da “cultura profissional” nas rotinas diárias por intermédio do contato com repórteres e editores mais versados no ofício52. Os dados levantados por esta investigação potencialmente revelam uma desarticulação na lógica de integração à “comunidade jornalística”, tal como propuseram os estudos seminais de Warren Breed (1955), Pierre Bourdieu (1996), Ruellan (2004, 2010) e Nelson Traquina (2005).

Para Ruellan, a história do jornalismo “é a ilustração perfeita do benefício (socialização, proteção, identidade) que os trabalhadores podem retirar de um processo corporativo que consistiu em fechar o território profissional, em reservá-lo a uma categoria especial de membros em detrimento de outros que se viram, assim, excluídos” (2004, p.18). Na esteira, a transmissão dos valores do ofício, partilhados coletivamente, transcorre no interior de uma comunidade dos jornalistas, tendo em vista que “as notícias são produzidas por profissionais que partilham uma ‘forma de ver’ comum, isto é, uma cultura noticiosa comum” (TRAQUINA, 2005, p.28). Bourdieu (1996) e Traquina (2005) chegaram inclusive a nomear os grupos profissionais organizados nas redações como tribos/comunidades interpretativas, que possuiriam cada qual um conjunto de “saberes” legitimados, bem como seus indivíduos socialmente estimados, detentores de autoridade para repassar conhecimentos

52

A tese de que o trabalho é vetor de uma construção coletiva gestada situacionalmente (ao invés de reprodução mecânica de prescrições) é o alicerce também dos estudos clínicos acerca do trabalho de matriz francófona, a exemplo dos escritos de Dejours (2004b) e Clot (2014). Para o primeiro, o surgimento de uma “cultura do ofício” em uma comunidade de trabalhadores exige o estabelecimento de relações de confiança sustentadas por princípios éticos de convívio, tanto com os pares quanto com os subordinados e superiores hierárquicos. Clot (2014) complementa esta linha de raciocínio ao debater as etapas de inserção de um trabalhador em determinada cultura do ofício já estabelecida, que permite que ele acesse um grupo profissional que gradativamente pode lhe conferir reconhecimento pelas habilidades desenvolvidas no contato diário com os veteranos.

adquiridos no decorrer da trajetória. Destarte, na interação com jornalistas mais velhos os novatos se envolveriam em um processo de acumulação de saberes acerca da profissão e de maturação do news judgement adequado ao veículo. Na medida em que se aprende o ‘jornalês’ e seus valores, os iniciantes são moldados conforme a lógica da redação e são valorizados segundo esta competência linguística dominante, que é o principal capital neste mercado particular, ‘capaz de impor a lei de formação de preços mais favorável aos seus produtos e de propiciar o lucro simbólico correspondente’ (BOURDIEU, 1996, p.57).

Bourdieu (1996) constata que a natureza simbólica da institucionalização das práticas jornalísticas é o que possibilita a um jovem repórter poder transitar da condição de foca à de experiente, apreendendo gradativamente as particularidades da redação, os saberes partilhados pelo grupo e o vocabulário legitimado no campo. Enfim, por essa leitura clássica do processo de inserção nesta zona do mundo do trabalho as competências técnicas do jornalista decorrem do reconhecimento de sua legitimidade pelo grupo, e os profissionais mais versados na cultura do ofício assumem um papel fundamental na transmissão dos valores comuns partilhados na redação.

Nos estudos nacionais sobre a história do jornalismo, este processo de aquisição progressiva de saberes e de socialização na redação também é retratado. A título de exemplo, na narrativa sobre as reformas empreendidas no Diário Carioca na década de 1950, encabeçadas por Pompeu de Sousa, Danton Jobim e Luis Paulistano, papel de destaque é atribuído à geração de jovens jornalistas contratados por eles que na redação se formaram conforme as novas normas estilísticas adotadas pela equipe, incorporando um novo “espírito” de produção jornalística que deveria ser transmitido para os futuros “focas” (ALBUQUERQUE, 2010). Já entre as décadas de 1950 e 1970, os repórteres vinculados ao Partido Comunista Brasileiro que atuavam nos mais distintos veículos de mídia tinham o prestígio dos donos das empresas não só por sua discrição e disciplina características (que, sobretudo no período ditatorial, era imprescindível como meio de manter o movimento político na clandestinidade), mas porque indicavam colegas militantes para assumirem postos de trabalho no setor, ensinando-os a agirem conforme as mesmas normas de conduta que lhes garantiam gozar de certa autonomia no trabalho (ALBUQUERQUE e SILVA, 2007).

Em estudo recente de Pereira (2013), advoga-se em favor da permanência desta forma de socialização e aquisição de saberes legitimados no mundo do trabalho dos jornalistas também em redações digitais. Por meio de entrevistas com profissionais que atuam em empresas do ramo, o autor defende que o aprendizado no ambiente de trabalho e na

interlocução com os pares ainda é determinante se comparado aos eventuais cursos de treinamento oferecidos pelos veículos aos seus contratados. Conforme Pereira, as especificidades da organização de mídia para a qual o profissional atua e sua trajetória e aspirações na área delineiam “as condições em que os jornalistas negociam aquilo que precisa ser aprendido, como certo tipo de conhecimento pode ser adquirido, e o grau de autonomia que ele ou ela irão ter para propor alterações e experimentações” (2013, p.139).

Nas entrevistas semiestruturadas conduzidas no decurso da presente investigação a persistência desta forma típica de aprendizado no mundo do trabalho dos jornalistas também foi perceptível. Quando indagados sobre suas relações com colegas e superiores nas redações em que atuaram, muitos dos entrevistados sustentaram a tradicional segmentação entre teoria e prática para argumentarem em favor do aprendizado tácito da cultura jornalística a partir de sua efetiva inserção no mercado, sobretudo no que diz respeito ao domínio dos softwares utilizados para formatação e publicação dos materiais que produziam para os veículos (softwares estes muitas vezes desenvolvidos pelos departamentos de tecnologia da informação das próprias empresas).

Mas também não é possível desconsiderar depoimentos que atestam, nas redações digitais, uma desqualificação dos saberes adquiridos ao longo de uma trajetória e transmitidos para os jovens ingressantes no jornalismo, em patente contraste à tese de Pereira (2013). A título de exemplo, segue o discurso da jornalista Nathália, com passagem em diversas agências de conteúdo:

Não dá pra acomodar. Antigamente as pessoas faziam curso de datilografia, um curso de, sei lá, edição de imagens né, revelação fotográfica, e elas trabalhavam com aquilo durante 30, 40 anos, e viravam quase uma peça de museu dentro das redações, porque ninguém ia demiti-las por conta da experiência, do conhecimento, da bagagem, mas sabiam que os processos já tinham sido otimizados, automatizados. E hoje em dia não há espaço para peças de museu não. Museu, tem museu virtual, assim, ninguém vai ficar mantendo um funcionário, por mais experiente que ele seja, se ele não