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7. Narrativas de um drama prenunciado: relatos de sofrimento nas trajetórias de jornalistas

7.4. Impactos à saúde mental

Como supramencionado, dentre os oito entrevistados que relataram não terem buscado acompanhamento psicológico para lidarem com as vicissitudes presentes no dia-a-dia das redações em que atuaram, cinco delas são também profissionais que alegaram nunca terem sido coagidas a incorrerem de deslizes éticos no exercício de suas funções. Não obstante, uma destas interlocutoras, Clarisse, mencionou que, por ter sido vítima de assédio moral em uma das empresas em que atuou, considera que teria sido benéfico à sua saúde psicológica ter buscado apoio terapêutico à época, como ela mesma pontua: “Eu acho que isso, de certa maneira, refletiu um pouco em mim um tempo depois. De eu poder falar: ‘olha, seria interessante fazer dessa maneira’. Por muito tempo eu fiquei sem coragem de expor aquilo que eu achava, entendeu?” (DEPOIMENTO extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 24 de agosto de 2016).

Importante também pontuar que, dentre os sete interlocutores que assinalaram terem necessitado de ajuda terapêutica ao longo de sua trajetória, nenhum deles estabeleceu um nexo causal entre a vivência do sofrimento ético e a ocorrência de patologias. De fato, há uma

diversidade de razões identificadas pelos entrevistados como desencadeadoras de seus problemas de saúde, embora a motivação mais frequente nos relatos seja o “estresse” no trabalho, que desponta nas respostas de cinco entrevistados. As queixas de estresse em investigações empíricas com comunicadores são recorrentes, como evidenciam Heloani (2006) e mais recentemente Lima (2018). Em entrevistas com 44 jornalistas, o primeiro autor identificou que a totalidade de seus interlocutores sofria desta condição; enquanto que o segundo pesquisador, baseando-se em questionário aplicado a 1.233 jornalistas de todos os estados do Brasil, sinalizou que “57,2% afirmaram se sentir estressados, 36,7% foram diagnosticados com estresse, 24,3% têm LER/DORT, 15,8% têm transtorno mental relacionado ao trabalho e 26% receberam indicação para tomar antidepressivos” (LIMA, 2018, p.7). Todavia, embora a categoria de análise seja a mesma, no estudo de Lima (2018) não há qualquer esforço de conceituação do termo, que é empregado na pesquisa tal como usado na linguagem corrente; já no texto de Heloani (2006), estresse é entendido em uma caracterização psicobiológica extensiva, como uma reação de um organismo a componentes físicos e cognitivos que geram alterações psicofisiológicas (como a raiva, o medo, a excitação, etc). Estressores externos, para esta abordagem, são, então, “todos os eventos, bons ou maus, que ocorrem na vida da pessoa, no seu mundo externo, como morte, promoção, dificuldades financeiras” (HELOANI, 2006, p.178). Por este prisma, estresse pode ser apreendido como uma patologia manifesta somática e cognitivamente e composta por três fases: alerta; resistência e exaustão.

Entretanto, como já detectado por Nicole Aubert (1993), Maria Jacques (2003) e Seligmann-Silva et al (2010), os riscos no emprego da noção de “estresse” advém da polissemia do termo, popularizado de modo tal que pode ser utilizado no cotidiano tanto para qualificar um estado de leve irritabilidade quanto para discorrer sobre quadros de grave depressão. Isto exige do pesquisador um cuidado adicional na especificação do conceito, sob o risco de produzir tanto uma subnotificação de dados (quando os interlocutores não se reconhecem vítimas propriamente de “estresse”) quanto sua hipertrofia (quando, na ausência de um termo melhor para significar o sofrimento vivido, o interlocutor se aproveita da imprecisão semântica da palavra). Além disso, a categoria “estresse” reporta a um marco teórico cognitivo-comportamental que enfatiza mais o gerenciamento dos trabalhadores (modos de diagnóstico e controle de fatores estressores) do que as condições e a organização do trabalho. Por esta razão, muito embora não seja o caso de contestar a expressão usada pelos jornalistas para caracterizarem as fontes de sofrimento no trabalho que os levaram a

buscar auxílio terapêutico, é oportuno esmiuçar suas narrativas no intuito de compreender outras nuances do fenômeno que transbordam a noção de “estresse”.

Nas narrativas de seis entrevistados a percepção da necessidade de acompanhamento psicológico para lidar com o cotidiano da redação vem associada à eclosão de uma enfermidade que ascende do nível pré-patológico, e que é identificada pelos interlocutores como uma indiscutível manifestação psicossomática. É o que transparece exemplarmente no relato de Márcia, jornalista com passagem em diversos veículos de circulação nacional que declara nunca ter sido reconhecida pelos superiores (que somente procuravam a equipe para tecer duras críticas) e já ter sido obrigada a escrever textos encomendados pelo diretor geral de uma das redações em que esteve:

Eu tinha um plano de saúde bom. E o meu grande medo era esse, porque eu estava tão doente, eu vivia no hospital (...) eu peguei uma bactéria que eu fiquei internada uma semana, 10 dias, e os médicos falaram que ela só dá em pessoas ou soropositivo (o que no caso eu não sou, porque já fiz exame), ou em pessoas muito velhinhas, e muito debilitadas (...) então eles falaram que meu sistema imune estava zerado praticamente, né, e que era estresse, tanto que eu fui num médico, e ele falou: ‘eu não vou te receitar nenhum remédio, eu vou te receitar que você se demita’. Eu nunca vou esquecer isso que ele falou: ‘o seu remédio hoje é a demissão’ (...) Eu estava somatizando tudo, sabe? Eu tive vários episódios de infecção urinária. E um deles, que foi praticamente antes de eu me demitir, ele durou três meses, e eu não conseguia me curar. Eu já estava resistente a antibiótico, né? Os exames de sangue apontaram isso. Porque eu ficava sete horas, pelo menos, sem conseguir levantar da minha cadeira pra fazer xixi (DEPOIMENTO extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 13 de abril de 2016).

A expressão “somatizar”, proveniente do vocabulário da psicologia clínica, é fartamente empregado nos estudos em psicossomática (COSTA, 2005) e na psicopatologia do trabalho (AUBERT, 1993, LE GUILLANT et al, 2006) para designar manifestações fisiológicas sintomáticas de fatores patogênicos à saúde mental provenientes da própria organização do trabalho (a exemplo da “síndrome geral de fadiga nervosa” popularmente descrita como “síndrome das telefonistas” no seminal estudo de Le Guillant et al (2006)). Para Márcia (que no período supramencionado também ia a sessões de terapia), a exteriorização física do sofrimento no trabalho se tornou mais explícita na medida em que, após a sua demissão do portal de notícias, os episódios de infecção cessaram.

Infecções de variados tipos (na garganta, no sangue, no pulmão), casos de amigdalite, crises de tendinite, hipertensão, acidentes domésticos e úlcera são identificadas pelos jornalistas como decorrentes da exaustão no trabalho (que, assim como o ocorrido com Márcia, teria comprometido o sistema imunológico e oportunizado a emergência de enfermidades). Mas há também a menção a transtornos mentais diagnosticados no decorrer de

sessões de terapia (como a depressão e a síndrome do pânico) e, de modo agudo (apesar de difuso), o discernimento de que as jornadas extenuantes nos portais de notícia eram leitmotiv de um sofrimento paralisante, que não os conduzia a um enriquecimento do self. É o que transparece na narrativa de Tereza, que relata ter procurado a psicoterapia em um período como correspondente de um veículo de destaque nacional - época em que era vítima de críticas desmedidas dos seus chefes, de sistemática sobrecarga de tarefas, carência de reconhecimento e constrangida a violar sua ética profissional:

Porque a minha sensação era: a qualquer momento que eu fechasse o olho podia estar acontecendo alguma coisa que eu não estava pegando ou podia alguém me ligar (...) e eles já ligavam assim: ‘como é que você não tem isso? Como é que você não tem essa história?’ (...) era uma ansiedade que gerava o tempo todo (...) Era uma sensação de que não dava para ser eu estando aqui. Então eu tive que localizar um pouco assim quem é Tereza e se pra ser Tereza eu precisava ser repórter desse veículo (DEPOIMENTO extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 06 de setembro de 2016).

Os efeitos danosos desta experiência se estenderam mesmo após a demissão desta jornalista, que permaneceu indo a sessões de terapia para processar o sofrimento vivenciado. Outros entrevistados, expostos a condições similares de trabalho, também eram vitimados por esta mescla de melancolia e ansiedade que os impactava ao ponto de inviabilizar sua permanência na redação. É o caso de Antônio, à época editor e redator da homepage de um portal de circulação nacional, que diz ter procurado um psiquiatra para obter uma licença médica visando reestabelecer sua saúde mental após um período de extremo desgaste na redação:

Em alguns momentos, vendo lá que o trabalho era muito, me dava muita vontade de chorar no meio do trabalho. Em nenhum momento eu cheguei a isso, mas tinha vontade de sair dali e ir pro banheiro chorar e tudo. Ou também pegar e reagir a comentários dos outros que eu não reagiria naturalmente. Responder nervosamente, responder com grosseria, algo que não é do meu feitio (DEPOIMENTO extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 24 de agosto de 2016).

A estes depoimentos somam-se queixas de diversos interlocutores acerca da ausência de políticas nas empresas de comunicação responsáveis por dar assistência a profissionais acometidos por transtornos psicológicos. As narrativas destes entrevistados, permeadas pela dolorosa consciência de que o trabalho como jornalista lhes abateu duramente (seja pelos assédios e injustiças presenciados, pelas penosas condições de trabalho, pela ausência sistemática de reconhecimento ou ainda pelo sofrimento de natureza ética), ecoam frustrações com a carreira perceptíveis nas respostas de quase todos os interlocutores quando interrogados se, à luz de sua trajetória, arrependiam-se de terem escolhido o jornalismo como profissão.