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1. Diagnósticos de um capitalismo (e de um jornalismo) em rupturas

1.2. Em direção a um jornalismo pós-industrial?

Em suas investigações sobre as reestruturações no mundo do trabalho principiadas nos últimos anos do século XX, Huws (2015) destaca, além da ascendente difusão de tecnologias digitais e da globalização comercial, uma importância exacerbada atribuída pela racionalidade neoliberal ao conjunto dos “trabalhadores criativos”. Este termo anacrônico, que preserva um já há muito defasado léxico taylorista (onde as atividades de concepção e execução estão apartadas), estaria sendo consagrado na literatura gerencial como a pedra de toque do crescimento econômico e da sofisticação das rotinas produtivas. Os grupos profissionais identificados sob essa alcunha ofereceriam sua engenhosidade como matéria-prima, extraindo significado e prazer de cada tarefa concluída eficazmente.

A julgar pelo panorama anteriormente deslindado de transições no mundo do trabalho, é evidente que a manifestação palpável deste sedutor discurso empresarial de uma “economia baseada no conhecimento” caminha na contramão de suas prerrogativas de matriz ideológica. De acordo com Huws (2015), a “mais-valia” de vários tipos de atividades rotuladas como “criativas” é expropriada visando sua estandardização em protocolos padronizados, modelos de qualidade específicos e indicadores de desempenho. O que transcorre na atração de um segmento da força de trabalho para as malhas do gerencialismo moderno é um esforço por baratear o custo de sua mão-de-obra, codificando e sistematizando seus conhecimentos tácitos para que eles possam ser segmentados em componentes transformados em uma miríade de instruções replicáveis por sujeitos menos qualificados ou por dispositivos técnicos. “Uma vez que as tarefas foram padronizadas, elas podem ser fracionadas facilmente, porque cada unidade, em cada etapa do processo, é essencialmente a mesma” (HUWS, 2015, p.88).

Tais indicadores tornam-se mensuráveis, possibilitando o gerenciamento dos serviços por seus resultados (e não mais pela “criatividade” dispendida na execução deles). Não obstante, conclui a autora, “as mesmas qualidades que os atraíram para o trabalho criativo em primeiro lugar começam a desaparecer sob o peso de rotinas diárias que envolvem o preenchimento de planilhas e fichas de trabalho, checagem para garantir que as rotinas normais sejam seguidas e documentação de todas as etapas do trabalho” (HUWS, 2015, p.90). No processo, invariavelmente, jornadas são estendidas, salários reduzidos e condições de trabalho precarizadas.

Dentre as muitas categorias profissionais listadas pela autora que estariam presenciando reestruturações desta natureza, o mercado jornalístico é mencionado em diversas passagens. Em texto dedicado à expansão de um proletariado enfocado em atividades de processamento de informação, Huws (2009) indica que os jornalistas seriam atualmente

obrigados a se enquadrarem em modelos rígidos de publicação digital sob um ritmo de trabalho estafante e mecanizado. A propriedade intelectual sobre seus textos estaria em litígio no Reino Unido (HUWS, 2011), e a popularização, no setor, de contratos flexíveis ou mesmo sem remuneração estaria ameaçando a subsistência dos comunicadores (HUWS, 2014). Dyer- Witherford (2016) respalda esta leitura ao afirmar que, com a disseminação de canais de conteúdo produzido espontaneamente por usuários e com a popularização dos algoritmos de mapeamento e processamento de dados de consumo, trabalhos tipicamente “intelectuais” e considerados imunes à automatização, como o jornalismo, têm experimentado um processo de re-proletarização, resultando na precarização dos postos no setor.

Ainda que Huws e Dyer-Witheford não sejam propriamente estudiosos do mundo do trabalho dos jornalistas, suas considerações panorâmicas sobre o campo também refletem, por exemplo, nas populares listas de “piores empregos do ano” nos Estados Unidos. Segundo o site CareerCast11, nos anos de 2013, 2015, 2016 e 2017 o jornalismo foi considerado a ocupação mais desfavorável segundo o ranking do portal (composto de 200 profissões). A metodologia adotada para o levantamento dos dados envolve, em geral, métricas de renda, oportunidades de ascensão na carreira, condições laborais e de saúde. Dentre as motivações que justificam este pódio inglório, os autores do estudo listam a perda de prestígio da imprensa, a crise no modelo de publicação impresso, o enxugamento de postos de trabalho, a alta pressão que caracteriza as redações e a migração de jornalistas qualificados para áreas vizinhas (tais quais o setor publicitário e as relações públicas). Segundo o CarrerCast, as previsões de crescimento da categoria até 2022 são de -8%12.

Nos últimos anos pesquisas como as de Carmen Grisci e Paulo Rodrigues (2007), Chris Anderson, Emily Bell e Clay Shirky (2012) e Mark Deuze e Tamara Witschge (2015) chegam a propor que a discussão sobre as “crises” pelas quais o mercado jornalístico vem passando (e que serão objeto de discussão nos capítulos subsequentes) trilham em consonância às transformações recentes no “espírito” do capitalismo, e por esta razão a atual conjuntura seria adequadamente designada de “jornalismo pós-industrial/fordista”. A motivação para a escolha deste termo derivaria da constatação de que “a redação não é necessariamente uma entidade sólida ou coerente no jornalismo pós-industrial de hoje e, por isso (...) o campo precisa desestabilizar as tradicionais conceituações sobre as organizações de notícias” (DEUZE e WITSCHGE, 2015, p.3). À flexibilização nas formas de contratação dos

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Disponível em: http://www.careercast.com/. Acesso em 10. Fev. 2018. 12 O índice é referente ao ano de 2017.

comunicadores (com disseminação da atividade de freelancers e temporários, por exemplo) corresponderia uma fragmentação da redação como centro de convergência da produção noticiosa. Nesta conjuntura três elementos ganhariam destaque: “o encurtamento e a supervalorização do tempo de confecção do produto jornal (o deadline), o alongamento da jornada de trabalho e o desmantelamento dos limites entre funções” (GRISCI e RODRIGUES, 2007, p.48).

Uma das precursoras desta tese, ao menos em cenário nacional, é Virgínia Fonseca (2006). Há quase duas décadas a autora defende que as transformações macroestruturais que vêm ocorrendo nos conglomerados de mídia devam ser lidas por esta terminologia, muito embora reconheça que o jornalismo de caráter empresarial já se consolidara no Brasil ao menos desde o início do século XX. Para Fonseca (2006), a modernização da imprensa brasileira (ocorrida pioneiramente no Diário Carioca a partir de 1950) não só representou a introdução de uma concepção americana de objetividade no jornalismo, mas também uma forma de gerenciamento do trabalho bastante similar ao modelo fordista, com a centralização do processo de produção na redação. Em contraste, a transição singular do país para o pós- fordismo teria representado, para o jornalismo, o alvorecer de um período de supressão da importância atribuída ao ambiente físico da redação, com a paulatina extinção do copidesque13, o início de uma gradual redução de postos de trabalho em veículos de mídia (acarretando no acúmulo de funções entre os remanescentes e a introdução de regimes flexíveis de contratação) e uma aproximação dos setores comerciais do departamento jornalístico14.

Muito embora estas transformações não possam ser necessariamente lidas pelo léxico da “precarização” (haja vista o fato de que os próprios relatos sobre a modernização da imprensa no país retratam o período anterior à década de 1950 como uma época em que o jornalismo nacional era “praticado com um espírito amadorístico e aventureiro, por profissionais com pouco preparo técnico e eticamente descompromissados” (ALBUQUERQUE, 2010, p.101), ou seja, em um contexto de produção mais precário que aquele consolidado a posteriori das reformas), a narrativa histórica apresentada por Fonseca

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Trabalho editorial consolidador das reformas da imprensa nacional iniciadas no Diário Carioca na década de 1950, atuava como “uma instituição intermediária, cujo papel era revisar o material oriundo do trabalho editorial (o texto) e adequá-lo às exigências da composição gráfica” (ALBUQUERQUE, 2010, p.107).

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Já em 1980, com a reforma da Folha de S. Paulo e a introdução do Manual de Redação no veículo, inicia-se um processo de demissão de comunicadores que não se adequavam às exigências normativas do documento, bem como uma política de aproximação do leitor através da distribuição de fascículos, brindes e sorteios (ABREU, 2002).

incide sobre dois pontos nevrálgicos do campo jornalístico: 1) a incorporação da racionalidade neoliberal pelas corporações de mídia provoca um deslocamento paradigmático na prática, que se acerca de um jornalismo orientado pela diversificação da oferta de conteúdos norteadas pelas preferências do público-alvo, atendendo a uma lógica prioritariamente comercial, conforme Jean Charron e Jean de Bonville (1996); 2) se as reformas da imprensa da década de 1950 em diante representaram uma sensível transformação na identidade profissional (que adere ao discurso da objetividade como referência de conduta ética e a fórmula do lead na abertura das matérias (ALBUQUERQUE, 2010), o mesmo pode ser dito das recentes reestruturações nos conglomerados de mídia, como os capítulos subsequentes procurarão evidenciar.

Ao findar desta seção, não restam dúvidas de que há uma estreita articulação entre as inflexões nos princípios de sustentação do capitalismo, as recentes reestruturações no mundo do trabalho e a atual conjuntura instável dos mercados de produção noticiosa. Muito embora o enxugamento das redações e a crescente busca pela ampliação das receitas publicitárias nos veículos de mídia esteja tornando as atividades dos comunicadores extraordinariamente estandardizadas (revelando uma reminiscência do período fordista), veremos adiante que tal padronização é atrelada a uma mudança nas lógicas organizacionais que possibilita a racionalidade neoliberal controlar de modo ainda mais incisivo o trabalho dos jornalistas.