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Capítulo I. Barbara Medea:

3. Cum Medea florentem aetatem reddiderit et amore arserit

O tratamento dispensado a Medeia pelos artistas helênicos antigos sofreu outra profunda metamorfose no século III a.C. O centro da produção cultural havia se deslocado de Atenas para Alexandria, vindo de uma Hélade esfacelada pelas lutas fratricidas que se seguiram à conquista da

107 MELERO, Antonio. Op. Cit. p. 327.

108 PALEFATO. Le Cose Increbili di Palefato. Tradução de Giovanni Veludo. Venezia: Tipographia di Gio, 1843. p. X – XII.

109 Palaeph. 43: DI MEDEA. Medea, come dicono, cuocendo gli uomini veechi, li rifaceva di giovinezza. Ma gli e, che

Medea primiera trovò in un certo fiore la virtù di far neri per fino a capelli bianchi. τnde a’ vecchi, che bianchi gli aveano, rendeali neri. E altresi primiera inventò il sudatorio, com che facea sudare chiunque il volesse, ma si di celato, che alcuno de' medici non ne venisse punto a sapere; e la faccenda era chiamata calefazione. Gli uomini adunque per cosiffatte evaporazioni tornavano pùi snelli e sani. Perciò egli, vedendo codesto apparato di caldaie, e legne e fuoco, avvisarono ch' ella cuocesse gli uomini. Pelia non di meno, già vecchio e debole, ne voile fare la pruova, e mori.

paz sobre os persas. Sob a nova ordem político-filosófica do mundo rearranjado após as conquistas e a morte de Alexandre, o cosmopolitismo imperial, de viés tantas vezes estoico, fazia conviver íntima e pacificamente com o mundo clássico muitos povos e culturas antes percebidos pelos gregos como bárbaros. Inevitavelmente, portanto, o tratamento dado à barbárie teve de se reformular, quando se compartilhavam boa parte dos costumes e dos valores. Aos luxos, aos excessos de ornamentação e aos preciosismos orientais tão rejeitados pelos oradores áticos dois séculos antes, acostumou-se bem rápido a corte dos Ptolomeus. O estrangeiro perdia seu caráter feroz ao transformar-se em objeto de interesse erudito, pela raridade das informações que poderia portar. Era o tempo dos viajantes. Com o incremento do comércio e das expedições exploratórias, com a itinerância dos peregrinos religiosos e com a difusão dos roteiros turísticos e médicos, as terras distantes e seus povos passaram a excitar cada vez mais a curiosidade do sábio-cortesão – o sacerdote das musas de gosto refinado e aguda reflexão.

Assim, nos tempos pacíficos do helenismo, a sociedade entesourava nas bibliotecas a erudição de todo o mundo conhecido110. Os leitores refinados preferiam a elegância dos temas. Por isso, Alexandria, tão diversa da belicosa pólis que inspirara os cantos épicos arcaicos e os dramas clássicos, afastaria tudo o que fosse grotesco e pouco elegante, inclusive da narrativa dos mitos. Graça e espírito eram esperados da produção artística111. Medeia não poderia, portanto, continuar sendo a mãe atroz, a assassina ciumenta e insana, em um tempo em que tais comportamentos se tornariam antes de tudo socialmente inconvenientes.

Mas, como toda narrativa ligada à arcaica dimensão mitológica, essa nunca deixou de ser recontada. Sua imagem reestruturou-se – e a bárbara deixou de representar perigo para o mundo helenístico. Afinal, a ameaça da emblemática estrangeira, que espelhara os temores suportados pela guerra contra os persas, desfizera-se em um mundo onde as fronteiras nacionais se haviam tornado tão distantes que forçaram o estreitamento do convívio entre os povos. Por isso, afastando-se da tradição trágica que privilegiara a amarga e iracunda maturidade da personagem, Medeia retornou à

110 PICHON, René. Histoire de la Littérature Latine. Paris: Librairie Hachette et Cie., 1967. p. 285. 111 THÉOCRITE, MOSCHOS, BION. Les Bucoliques Grecs. Paris: Librarie Garnier Frères, 1931. p. 13.

virginal juventude para recomeçar a contar toda a sua história, porém em um outro mundo.

Calímaco ocupou-se de Medeia no segundo livro dos Aetia. Mostrou-a instituindo cultos e fundando cidades, ombreando nisso com Héracles, herói civilizador por natureza. Píndaro já a havia feito profetizar o surgimento da cidade de Cirene; e Heródoto apontara-a como epônima dos medas. Porém, Calímaco os superou. Fez deverem-lhe culto as cidades de Cadmo, Éfira, Córcira, Creta e a Sicília112.

E Medeia, nessa sua nova dimensão cosmopolita, fez-se bela novamente, embora não como a deusa hesiódica. Com atitude de uma jovem comum, Calímaco referiu-se a ela. Ao discordar de Zeus no início de seu Hino113, o bibliotecário de Alexandria citou de forma implícita a resposta que Medeia teria dado ao cretense Idomeneu, quando ele, juiz de uma contenda sobre a beleza das deusas, dissera que Tétis deveria ser a vencedora. “τs cretenses são mentirosos”, respondeu-lhe ela, em uma reação mais condizente com o descontentamento de uma virginal princesa do que a esperada reação de uma deusa marcada pela selvageria e pela crueldade.

Medeia foi assim também descrita nos Argonautica helenísticos. Apolônio de Rodes tratou dela sob a imagem da inexperiente jovem, ingênua e apaixonada. Medeia consumiu-se pelo insuperável amor despertado por Eros, por intercessão de Afrodite e de Hera – Afrodite queria o sofrimento de Eetes porque o Sol, seu pai, exibira seu adultério com Ares; e Hera interessava-se tão só pelo êxito da empresa de seu protegido Jasão. Medeia transformava-se, enfim, na grande auxiliadora de Jasão, como fora Nausícaa, a homérica princesa feácia, para Ulisses, ao ensinar-lhe como e a quem se dirigir, no palácio real, a fim de conseguir o retorno à sua terra. Aliás, outros foram os paralelos estabelecidos entre Medeia e Nausícaa, em uma evidente percepção da função propiciatória que Apolônio de Rodes dera à sua personagem114. Como Nausícaa fora a primeira habitante da ilha a ver Ulisses, do mesmo modo Medeia foi a primeira a ver Jasão em terras colcas,

112 CALLIMACHUS. Callimachea, Hymni cum scholiis veteribus. Lipsiae: Teubner, 1870. p. 80.

113 Call. Jov. 1.7-9: O Zeus, some say that thou wert born on the hills of Ida; others, O Zeus, say in Arcadia; did these

or those, τ Father lieς “Cretans are ever liars.”

114 CLAUSS, James. Conquest of the Mephistophelian Nausicaa – εedea’s role in Apollonius redefinition of epic hero. In: CLAUSS, James; J. JOHNSTON, Sarah I (ed.). Medea. Princeton: Princeton University Press, 1997. p. 173.

quando ele chegava ao palácio de Eetes para, diplomaticamente, pedir-lhe o tosão. Semelhantes também foram as descrições dos palácios de Eetes e de Alcínoo115, e a névoa que protegeria tanto os argonautas quanto Ulisses116.

Naquele momento, Eros – um deus tão caro aos alexandrinos e tão menos perigoso do que aquele deus provocador de loucuras descrito por Píndaro – flechou Medeia fazendo-a apaixonar-se. Tanto que, logo depois, Apolônio descreveu-a no leito, a consumir-se em pesadelos eróticos e cheios de culpa. Ele inovava o modelo épico, com a busca pelo entendimento da natureza, dos sintomas e das consequências da paixão, emprestando ao circunspecto gênero literário, adequado aos mais elevados assuntos, a liberdade que era antes somente dos epigramistas e dos comediógrafos117. O amor tornava-se, pois, o tema do epos e, para tanto, o poeta invocou a musa Érato no início de seu canto. Medeia sofria e o amor era como uma ferida. Ela chorava e dormia, procurando no sono alívio para seus tormentos. Mas não se tratava de um amor que debilitasse – o canto valoroso alexandrino não poderia ter o amor como enfraquecedor118. Por isso, Medeia não enlouqueceu, não esmoreceu, mas, de modo inverso, tornou-se mais forte e temerária. E como Eros era um deus invencível, fez suplantar o dever filial de Medeia, que ensinou a Jasão como jungir os touros e a vencer os spartoi 119.

Medeia era, pois, a salvadora da Hélade que pedia, mais do que o amor de Jasão, que seu nome fosse lembrado para sempre120. E mesmo o assassinato do irmão, como último ato de impiedade familiar que ela iria cometer no canto de Apolônio, ainda encontrava alguma justificativa, não sendo mais motivado pelo atraso na perseguição dos colcos. Com aquela dolorosa morte, ela rompia todos os vínculos que a pudessem ligar à antiga pátria, completando o ato de separação iniciado com o auxílio no cumprimento das provas e com a tomada do tosão. Só com

115 Hom. Od. 7.81-135.

116 Hom. Od. 7. 14-17: Então Ulisses pôs-se a caminho da cidade. Sobre ele Atena/ derramara um denso nevoeiro,

para assim o ajudar, não fosse algum dos magnânimos Feaces encontrá-lo/ no caminho e interrogá-lo, desafiando a dizer quem era.

117 GIANGRANDE, Giuseppe. Op. Cit. p. 330. 118 GIANGRANDE, Giuseppe. Op. Cit. p. 333. 119 CLAUSS, James J. Op. Cit. p. 168.

tamanho sacrifício e tão grande desprendimento ela poderia entregar-se a Jasão e à Grécia. Mas o crime de sangue os conspurcava. Medeia atraíra o irmão e Jasão o executara. Por isso, eles tentaram purificar-se com o macabro desmembramento do jovem, em um ritual que parece ter tentado preveni-los do terrível miasma que perseguia os assassinos121.

Purificados pelo ritual de Circe, Medeia continuou como a auxiliadora de Jasão, que só graças a ela havia cumprido as provas impostas por Pélias e tornara-se herói. Medeia tornou-o apto a representar as virtudes esperadas do homem do mundo cosmopolita da Alexandria ptolomaica. Ensinou-lhe a ser um novo herói quando os belicosos modelos homéricos estavam desacreditados, quando o contato entre os povos enriquecia e fortalecia os reinos, quando a condição feminina ganhava certa relevância, e quando, enfim, a erudição e a galanteria dignificavam o cortesão122. O heroísmo de Jasão poderia, assim, contar com o auxílio feminino de uma bárbara sem que sua virtude decrescesse. Pelo contrário, na função de celebrar tratados, o heróico argonauta precisava contar com a ajuda da virgem estrangeira, já que a sagacidade dolosa e a força iracunda típicas da virtude arcaica não mais serviam para a manutenção do estatuto heróico – que necessitava sobretudo das qualidades tipicamente amorosas de sedução e de convencimento.

Foi, portanto, subvertendo a tradição da narrativa que, em uma reviravolta surpreendente, Medeia deixara de ser a terrível mãe assassina para rejuvenescer-se na forma de uma virgem enamorada, que salvaria os gregos. Esqueceram-se suas mortes e perdoaram-se suas faltas, uma vez que seus sofrimentos davam azo a que se entendesse a alma humana e seus sentimentos mais profundos. E Medeia, ao lhe ser afastada a parte da barbárie, será redimida mesmo da morte de Pélias, imputando-se a ela apenas a execução da pena imposta por Hera pela desconsideração do rei de Iolcos, que não lhe prestara os devidos cultos.

121 BREMMER, Jan. Why did Medea Kill her Brother Apsyrtus? In: CLAUSS, James; J. JOHNSTON, Sarah I (ed.).

Medea. Princeton: Princeton University Press, 1997. p. 83-99.

122 JχωKSτσ, Steven. χpollonius’ Jason: ώuman being in an epic scenario. Grece & Rome, Cambridge, MA, v. 39, n. 2, p. 155, 1992.