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A cumplicidade institucional entre as FAA e a Teleservice estende‑ ‑se muito para além da partilha de métodos de tortura e extorsão de cidadãos. No Cuango, ambas as organizações se confundem como uma só força de repressão e comando unificado.

Por exemplo, a 30 de Janeiro de 2011, uma patrulha mista de 19 elementos das FAA, da Teleservice e da Polícia Nacional dete‑ ve dois garimpeiros na área de Kamikondo, em Cafunfo, durante uma operação conjunta. Segundo depoimento de Júlio Francisco Armindo (Caso n.º 12, p. 131), um dos soldados das FAA maltratou‑ ‑o com nove bofetadas no rosto e bateu ‑lhe várias vezes com o cabo da pá nas mãos. «Um guarda da Teleservice disse ao soldado das FAA que este não sabia ‘educar’ os garimpeiros e pediu o pau para o ensinar», conta o garimpeiro. Como parte do ensinamento, o agente da Teleservice, de acordo com Júlio Francisco Armindo, «pediu ao soldado para me pisar na cabeça, enquanto outro guarda da Teleservice sentou ‑se nas minhas pernas. Com o pau, o [instru‑ tor da] Teleservice começou a torturar ‑me de verdade nas náde‑ gas, até inflamarem. Foi uma porrada reforçada».

Júlio Francisco Armindo afirma que os agentes da Polícia Na‑ cional que tomaram parte na operação se mantiveram passivos e se recusaram a participar nos actos de tortura.

Para se perceber de que modo a Teleservice se especializou em actos de tortura, com cobertura institucional das FAA, é im‑ perativo recuar ao dia 20 de Agosto de 2009. Várias dezenas de efectivos da Teleservice organizaram, durante a noite, a tortura em massa de 150 garimpeiros aprisionados na área de Tximango, município de Xá ‑Muteba, fazendo ‑os deitar ‑se de forma alinhada

na estrada de Kamabo, em Cafunfo, município do Cuango24. Os

garimpeiros eram amarrados uns aos outros pela cintura. «Cada um de nós foi torturado de acordo com o número de garimpeiros aprisionados. Apanhámos cada um 50 vezes nas nádegas, 60 nas palmas das mãos e 40 nas plantas dos pés.» Esta é a descrição de Jordan de Almeida Manuel, uma das vítimas que até à data exibe uma grande cicatriz na mão direita resultante da tortura com um cabo de pá. Outros sofreram ferimentos de catanadas.

Após submissão a outras sevícias, por volta da uma da manhã, conforme depoimento de Jordan de Almeida Manuel, os seguran‑ ças procederam à entrega dos detidos à unidade militar das FAA, situada na vila de Cafunfo. Os soldados, de acordo com Jordan de Almeida Manuel, receberam os garimpeiros, torturando ‑os nova‑ mente com mangueiras de combustível cortadas em três tiras e conhecidas como 3X3 pelo seu efeito de chicotada tripla. Por ter sido reconhecido como um dos activistas locais e porque sangrava bastante, os militares decidiram libertar Jordan de Almeida Ma‑ nuel, desde que ele pagasse US$50. Uma escolta de dois soldados acompanhou ‑o a casa, para efectuar a cobrança. O ordenamento jurídico angolano em circunstância alguma sanciona a transferên‑ cia de prisioneiros de empresas privadas de segurança para o exér‑ cito, para prosseguimento de actos de tortura.

Passadas duas semanas, Jordan de Almeida Manuel deslocou‑ ‑se a Luanda, onde concedeu entrevistas ao Novo Jornal, à Rá‑ dio Ecclesia e relatou a sua experiência aos estudantes de Direito

24 Regra geral, os garimpeiros referem ‑se ao Tximango como sendo parte de Cafunfo, por desconhecimento da divisão administrativa entre os municípios do Cuango e de Xá ‑Muteba. O primeiro situa ‑se na margem esquerda do Rio Cuango, enquanto o segundo ocupa a margem direita. Por sua vez, apesar de albergar mais de dois terços dos cerca de 150 mil residentes do município do Cuango, a localidade de Cafunfo não tem qualquer estatuto administrativo, sendo gerida à distância, a partir da sede municipal do Cuango, que fica a 50 quilómetros.

da Universidade Metodista25. Como sempre, as autoridades

fecharam ‑se em copas.

«Quando leio livros sobre escravatura e vejo gravuras sobre o modo como se batia nos escravos, eu lembro ‑me desse dia. Eu era um escravo», desabafa o jovem activista.

No capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias funda‑ mentais dos cidadãos, a Constituição angolana consagra a cada in‑ divíduo (Art.º 36.º, n.º3, a) «o direito de não ser sujeito a quaisquer formas de violência por entidades públicas ou privadas». Por sua vez, a mesma lei estabelece «o direito de não ser torturado nem tra‑ tado ou punido de maneira cruel, desumana ou degradante» (Art.º 36.º, n.º3, b). De modo reiterado, a Constituição proíbe a tortura e os tratamentos degradantes nos seguintes termos: «Ninguém pode ser submetido a tortura, a trabalhos forçados, nem a tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degrantes» (Art.º 60.º). Ainda com base na Constituição, que prevê da responsabilidade do Estado e de ou‑ tras pessoas colectivas públicas (Art.º 75.º, n.º 1), podem imputar ‑se os actos acima descritos ao Estado, em particular às chefias das FAA, bem como à direcção da Teleservice e ao seu grupo de accionistas.

A situação real, no Cuango, indicia um aumento da violência. Um grande segmento da juventude local, assim como muitos cam‑ poneses, exibem no corpo as marcas de tortura que lhes são infli‑ gidas diariamente pelas entidades acima referidas.

Todavia, como sempre, o executivo é tão exemplar na comu‑ nicação de promessas para o povo como no seu incumprimento cabal. Para 2011, o ministro do Interior garante a melhoria da paz pública e o desarmamento das empresas de segurança privada,

que utilizam armas de guerra26. No Cuango, contudo, a Teleservi‑

25 Cfr. Neto, F., 2009. 26 Dinis, 2010.

ce apresenta um poder de fogo de longe superior ao da Polícia Na‑ cional. É sob a ameaça das armas de guerra, sempre presentes nos actos de patrulhamento, que os garimpeiros são sujeitos a seví‑ cias. Todos os anos, altas entidades da Polícia Nacional prometem o mesmo, em vão. Como afirma o ministro Sebastião Martins, em Angola «há paz de guerra. Ainda não há paz social». Na região do Cuango, os ataques continuam – contra as comunidades locais.