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O isolamento de Ngonga Ngola, Tximbulagi e a estrada dos políticos

«Aqui, nós estamos na gaiola.»

Lourenço Xamuangala, regedor ‑adjunto de Ngonga Ngola

Há duas comunidades isoladas na área de concessão da SMC: as aldeias de Ngonga Ngola e Tximbulagi. As estradas que passam por essas comunidades e áreas circundantes foram privatizadas, e as comunidades locais, assim como todo e qualquer cidadão não autorizado pela empresa, estão proibidos de as usar.

Como única alternativa de ligação destas comunidades ao resto do Cuango, os cidadãos são obrigados a fazer a travessia de bóia, no Rio Cuango, precisamente na zona de maior corrente.

Uma corda amarrada a uma árvore em cada margem do rio per‑ mite ao «marinheiro» dirigir a bóia de uma margem para a outra e vice ‑versa, de pé, puxando pela corda. A pequena bóia, com ca‑ pacidade para quatro pessoas, normalmente transporta oito indi‑ víduos, para além do marinheiro, tornando a viagem numa ver‑ dadeira prece pela vida. Regra geral, as pessoas não sabem nadar.

Segundo os locais, a zona de corrente foi escolhida por ser uma área livre de jacarés, que facilmente podem furar a bóia e ata‑ car os passageiros.

A viagem de ida e volta, de Cafunfo a Ngonga Ngola, custa uma fortuna para os locais que só o garimpo pode sustentar. A tra‑ vessia do rio, nos termos enunciados, custa o equivalente a US$10. De Cafunfo para a referida margem, de motorizada, o passageiro paga US$10. Da outra margem a Ngonga Ngola, o custo ascende a US$6. Ao total de US$26, podem ser adicionados outros custos de extorsão às mãos dos guardas da Teleservice, que têm os pos‑ tos instalados nas proximidades das duas margens e controlam, de forma arbitrária, a circulação de pessoas e bens nos dois sentidos.

«Nós tínhamos liberdade de usar esta estrada que liga [a sede municipal d]o Cuango a Cafunfo, e passa por Ngonga Ngola. Era uma estrada pública. Os problemas começaram quando a ITM Mining veio para cá e privatizou a estrada», conta o regedor‑ ‑adjunto de Ngonga Ngola, Lourenço Xamuangala. Segundo o regedor, «aqui nós estamos na gaiola. A empresa apenas autoriza uma pessoa a circular na estrada, o soba [de Ngonga Ngola]. Isso é democracia? As nossas bicicletas e motorizadas só podem circular aqui no bairro. Não podemos sair daqui. Estes malandros da SMC proíbem ‑nos de circular».

Humilhados e isolados, tanto pela administração local do Estado como pela empresa, as comunidades empreenderam, em

várias ocasiões, a modesta reivindicação de obterem uma bóia em condições, que lhes permitisse realizar a travessia do rio.

A 6 de Janeiro de 2010, o director de operações da SMC, Mike Weir, recusou, formalmente, ceder uma bóia às comunidades. O referido director reconheceu, em carta enviada à administração local, quão arriscada era a travessia do rio, na única área permiti‑ da pela sua empresa. «Oferecemos, em contrapartida, a utilização das nossas vias, em condições a serem concertadas com os nossos serviços de segurança industrial», garantiu Mike Weir1.

De acordo com o regedor ‑adjunto Xamuangala, Mike Weir, com total apoio da administração local, ignorou a sua própria car‑ ta e manteve a ordem de permitir apenas a livre ‑circulação do re‑ gedor. «Depois dessa promessa, a ITM Mining deu ‑nos uma bóia pequena, onde só cabem duas pessoas. Nem sequer a usamos. Nós, os sobas, é que comprámos a bóia para a travessia», denuncia o interlocutor.

Segundo o regedor Muanangola, «a administração do Cuan‑ go nunca aceita abordar os problemas do povo. Já reclamámos tanto. Ninguém nos ouve». O regedor enfatiza o modo como os guardas da Teleservice têm imposto a regra segundo a qual todo o cidadão que passe pelos seus postos de controlo, para a travessia, com mais de 20 mil kwanzas [US$200] é obrigado a deixar todo o dinheiro com os seguranças. «Eles dizem que são ordens superio‑ res», indigna ‑se o regedor. «O chefe Nelo [do Posto da Teleservice de Katewe, numa das margens da travessia] está a despir as popu‑ lações. Assim que você deu as costas [referindo ‑se à minha passa‑ gem pela área] a situação piorou. Eles [seguranças da Teleservice] dizem que o povo tem de sofrer e não pode andar com dinheiro, por ordens da empresa», denuncia o regedor.

A Constituição da República de Angola (Art. 46.º, 1.º) estabe‑ lece limitações à liberdade de circulação quando estejam em causa interesses nacionais vitais, como é o caso da região diamantífera das Lundas. Contudo, os interesses vitais nacionais não se podem sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A proibição de circulação numa via pública situada em zona restrita apenas deve ocorrer segundo as regras definidas pela Lei dos Diamantes. Esta determina que «compete à empresa con‑ cessionária construir, à sua custa e segundo o traçado que lhe for indicado pelas autoridades competentes, vias de comunicação al‑ ternativas às estradas e caminhos públicos que passarem por uma zona restrita» (Art. 14.º, 3.º). Por conseguinte, o comportamento da SMC constitui uma grave e sistemática violação da lei e dos direitos elementares das populações radicadas na área.

Ao mesmo tempo que o seu quotidiano é sujeito a severas res‑ trições em nome do interesse nacional, as populações de Ngonga Ngola são exploradas pelos seguranças privados. A 13 de Dezem‑ bro de 2010, «eu próprio, como soba, paguei US$100 a um dos supervisores da Teleservice, no controlo de Catetomuna, como

patrocinador»2, afirma o regedor ‑adjunto Xamuangala.

Segundo esta autoridade tradicional, «eles recebem o dinheiro e, quando as suas amantes aparecem, e precisam de mais dinheiro, eles vão chantagear os garimpeiros». Os guardas da Teleservice tentaram extorquir mais dinheiro ao grupo do regedor ‑adjunto, horas após este

2 O termo «patrocinador» é usado para descrever o indivíduo que financia a actividade de garimpo organizado. Certas zonas de exploração requerem trabalhos consecutivos de esca‑ vação de mais de seis meses e cabe ao patrocinador garantir a alimentação básica, meios de trabalho e medicamentos aos garimpeiros durante o período laboral. O patrocinador deve assistir à recolha e processamento do cascalho, para a separação das pedras dos diamantes. Regra geral, o patrocinador tem direito a 50 por cento do valor dos diamantes encontrados, enquanto as autoridades tradicionais ou as forças de defesa e segurança que se associam ao esquema retêm 25 por cento e os operários dividem entre si os restantes 25 por cento.

ter efectuado o pagamento acima referido. Por incapacidade finan‑ ceira para um segundo pagamento, ainda de acordo com o regedor‑ ‑adjunto, os guardas optaram por medidas drásticas. Dois garimpei‑ ros fugiram e outros dois foram aprisionados. «Não nos bateram, por sermos mais velhos. Levaram ‑nos ao Comando Municipal da Polícia Nacional no Cuango. Puseram ‑nos na cadeia sem sermos ouvidos. Ficámos 13 dias na cela sem nunca nos terem dado de comer», explica Ezaquiel Muana Muata, 55 anos, um dos detidos.

Ezaquiel Muana Muata conta que os garimpeiros foram ou‑ vidos apenas no dia da sua libertação. «O procurador [Carlos A. Vungula] perguntou ‑nos apenas porquê o soba não escolheu uma outra área para garimparmos, e soltou ‑nos», conclui.

Nos últimos cinco anos, tenho testemunhado, em diversas visitas, o capotamento de camiões na passagem do Vuka, uma extensão de dez quilómetros que liga a sede municipal do Cuango a Cafunfo. A estrada, de cerca de 50 quilómetros, é a via pública que liga o resto do país a Cafunfo, o maior aglomerado do município, com mais de cem mil habitantes. Alimentos e outros bens de consumo são regularmente recolhidos dos destroços dos camiões. A outra via é a que os locais chamam de «estrada dos políticos», privatiza‑ da pela Sociedade Mineira do Cuango.

Na minha última visita, a 19 de Fevereiro de 2011, o cenário repetia ‑se. Um camião frigorífico, carregado de frescos, capotou na tentativa de contornar, à velocidade mínima, uma grande fen‑ da na estrada. A erosão e os enormes buracos na estrada desafiam a perícia dos automobilistas de veículos pesados, isolam a área e agravam o custo de vida em Cafunfo.

Desde 2004, tenho questionado as autoridades locais e cen‑ trais sobre o estado da via, cuja solução básica, para facilitar o

trânsito, passa pela terraplanagem. As empresas diamantíferas que operam no Cuango têm equipamento bastante, por exemplo, para dispensar uma máquina para terraplanagem da via onde os camiões regularmente capotam.

Em tempos de bonança, o Cuango produz diamantes no valor anual de US$300 milhões. A sua população jovem é desempregada e maioritariamente especializada, devido à sua participação activa no garimpo, em escavações, em partir pedras e no nivelamento de super‑ fícies duras. Como alternativa, as autoridades locais poderiam em‑ pregar os garimpeiros nos trabalhos de reparação da estrada. Tanto uma solução como a outra, de custo mínimo, têm sido ignoradas.

Enquanto isso, a estrada alternativa de terra batida, que liga a sede municipal do Cuango a Cafunfo, mantém ‑se inacessível à po‑ pulação, sendo exclusivamente utilizada pela administração local, pelo executivo central e por visitas importantes. É hoje conhecida como «a estrada dos políticos».

Todavia, o governador Ernesto Muangala tem afirmado publica‑ mente quão essencial é a reabilitação das estradas, para garantir, so‑ bretudo, a circulação expedita de pessoas e bens. «Neste momento, para nós, a prioridade são as estradas nacionais, as terciárias e secun‑ dárias, e as pontes», garante o governador3. E especifica a importân‑

cia da Estrada 225, que passa pelo Cuango, para o transporte de bens alimentares e materiais de construção. Usa a figura do presidente José Eduardo dos Santos para afirmar que este, a quem serve com zelo, cumpre com fidelidade o princípio de Agostinho Neto, segundo o

qual «o mais importante é resolver os problemas do povo»4. Mas de

propaganda oficial não vivem os habitantes da região.

3 Pedro, 2010.

A destruição da agricultura de subsistência