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Antes de iniciar as visitas aos cursos, cuidei de entrar em contato com os coordenadores para apresentar uma breve síntese da proposta de pesquisa e compartilhar algumas informações acerca do contexto socioeconômico dos estudantes do ProUni. O fato de fazer parte da equipe multidisciplinar de apoio ao estudante (Cemapp) facilitou a aproximação com os cursos, uma vez que conhecia um bom grupo de professores, alunos de vários cursos, todos os coordenadores e gozava de certa credibilidade na comunidade acadêmica.

O primeiro curso visitado foi o de Administração. No encontro com o coordenador, foram definidas as datas das visitas e, com atitude empreendedora, o coordenador não hesitou em combinar um encontro no dia da aula de metodologia da pesquisa, por considerar ser de grande relevância, para estudantes em processo de elaboração de projetos de pesquisa, a socialização de um estudo em desenvolvimento. Acatei a proposta e, mesmo não tendo estudantes do ProUni na turma indicada para o relato de experiência, o trabalho foi desenvolvido com afinco. A atividade

aconteceu em parceria com a professora da disciplina, a qual manifestava muita criatividade e perspicácia quando confrontava as informações que socializava com os projetos dos estudantes, sobretudo quando se tratava da dimensão metodológica. Observei grande interesse dos estudantes pelo referido relato de experiência e chamou atenção o fato de todas as questões que emergiram da curiosidade dos estudantes estarem vinculadas à relação pesquisador, campo e sujeitos da pesquisa.

Em grande medida, os estudantes de Administração expressaram interesse e estranhamento pela pesquisa de campo; alguns tratavam da questão como se fosse algo complicado demais para ser alcançado, no entanto, foram cuidadosos em suas posturas enquanto participantes da pesquisa que coordeno.

No curso de Fisioterapia a estratégia de falar com a coordenação do curso mostrou-se ainda mais relevante. A coordenadora ficou impactada com as informações por mim socializadas e solicitou-me apresentar o material em uma reunião de professores, vez que dizia não imaginar a condição socioeconômica dos alunos com bolsa Prouni e acreditava ser importante partilhar com os professores as informações organizadas. No contexto do curso, a coordenadora achou necessário acompanhar-me nas visitas às salas e se colocou à disposição para recolher os questionários. Tendo aceitado a gentileza da coordenadora, deixei os questionários, mas devo considerar que o encontro com os estudantes aumentou, sensivelmente, a minha inquietação acerca do encolhimento do número de alunos com bolsa ProUni, em relação ao mapeamento realizado em 2010.

Nos cursos de Psicologia e Pedagogia percebi um interesse diferenciado pela pesquisa. Observei que nestes cursos a atenção dos alunos à pesquisa revelava o efeito de um trabalho intenso em relação à referida temática, sendo perceptível a prioridade da formação pela pesquisa no percurso formativo dos estudantes. É importante ressaltar que os alunos desses cursos foram os únicos a devolverem todos os questionários distribuídos. Quanto ao curso de Educação Física, não foi incluído na pesquisa, por ter o coordenador sinalizado a existência de diversas pesquisas, pois estávamos em fase de avaliação institucional interna e, na sua opinião, estava

provocando desconforto entre os estudantes. Com esta sinalização, suspendi a atividade neste curso.

Nos cursos de Jornalismo e Publicidade encontrei apenas 08 estudantes do ProUni, os quais se mostraram satisfeitos com o benefício e asseguraram ter bom desempenho nos estudos, (informação confirmada através da análise dos seus históricos). Os demais alunos demonstravam conhecer o programa e muitos afirmaram que iriam continuar fazendo ENEM na tentativa de conseguir a bolsa, sinalizando não ter sido a nota alcançada, no referido exame, suficiente para a obtenção da bolsa. Nesta realidade, diferente do presenciado no curso de Direito, o estudante do ProUni era considerado uma pessoa “privilegiada” pelos colegas, por não precisar pagar mensalidade. É importante esclarecer que a condição de bolsista do ProUni não pode ser compreendida como privilégio. Receber uma bolsa que toma como um dos critérios de seleção a condição de pobreza, não é privilégio e sim uma forma de reparação, ainda que precária, de direitos essenciais negados. Contudo, quando o estudante não contemplado com a bolsa ProUni concebe a conquista do benefício como privilégio, ele está falando do lugar do sujeito que vive em condição de pobreza, entrou na Faculdade e não dispõe das condições mínimas para arcar com o pagamento da mensalidade. Essas pessoas lidam, constantemente, com os constrangimentos da inadimplência, ou aguardam a aprovação de algum financiamento, arriscando serem obrigadas a desistirem do curso e adiarem ou interromperem o sonho de concluir um curso superior. Está posto nesta discussão o resultado de uma negação de direito, que atinge um contingente significativo da população brasileira e os programas de ações afirmativas acabam não dando conta da magnitude do problema.

Já no curso de Direito, os estudantes apresentavam timidez em assumir sua condição de aluno bolsista (ProUni). Infelizmente a minha visita às salas coincidiu com o período das provas e tive dificuldade em estabelecer aproximação com o grupo. Mas, mesmo com estes imprevistos, encontrei um professor que conhecia a proposta do ProUni e não hesitou em transformar a aula em um diálogo participativo sobre a temática. Na oportunidade, o único aluno que fazia parte do programa aproveitou para fazer um desabafo,

discorrendo sobre o preconceito que enfrentara no curso. Segundo ele, o fato de ser bolsista já o inseria no universo de estudantes pobres; além disso, apontou as dificuldades com a linguagem e “vocabulário escasso” como fatores de discriminação. O estudante reconhecia os diversos obstáculos que precisa superar, mas reiterava ser a bolsa um divisor de águas em sua vida. Não tive oportunidade de reencontrá-lo, mas pressuponho ter o diálogo estabelecido afetado a dinâmica da turma e que a oportunidade de cursar a educação superior poderá apresentar possibilidade de apropriação do capital linguístico, considerado pelo referido estudante e por Bourdieu (2010), como fundante para a apropriação de conhecimentos mais complexos.

Bourdieu e Passeron (2010, p. 81) acreditava que os estudantes das classes populares, ao ingressarem no ensino superior, experimentavam alto nível de seletividade e que a “[...] cultura escolar é necessariamente homogeneizada, rotinizada, ritualizada”. Neste sentido, o trabalho pedagógico das instituições de ensino tende a gerar um discurso para explicitar o habitus a ser inculcado, e os princípios desse habitus a serem sistematizados são orientados por uma lógica que prioriza a institucionalização da aprendizagem. Isto significa supervalorizar o capital linguístico instituído como norma padrão, o que pode favorecer a desqualificação acerca do saber linguístico e cultural dos estudantes das classes populares. Este raciocínio, que tantas vezes parece óbvio, provoca certa inquietação: como lidar com o capital linguístico legitimado, sem desqualificar o saber linguístico construído pelos estudantes em suas comunidades populares? Bourdieu e Passeron (2010), tratando de desigualdade ante a seleção e desigualdade de seleção, infere que:

[...] a influência do capital linguístico não cessa nunca de se exercer: o estilo permanece sempre levado em conta, implícita ou explicitamente, em todos os níveis do ensino médio e, ainda que em graus diverso, em todas as carreiras universitárias, mesmo científicas. Mais do que isso, a língua não é apenas um instrumento de comunicação, mas ela fornece, além de vocabulário mais ou menos rico, um sistema de categorias mais ou menos complexo, de sorte que a aptidão à decifração e à manipulação de estruturas complexas quer elas sejam lógicas ou estéticas depende em certa parte da complexidade da língua transmitida pela família. (p. 97)

Estaria o autor afirmando que os filhos de famílias mais distantes desse capital linguístico escolarizado seriam fadados a não manipular categorias de estruturas complexas?

É perceptível que, mesmo Bourdieu e Passeron (2010) tendo afirmado que a reprovação escolar tem mais probabilidade de ocorrer nas classes afastadas da língua escolar, sugere não ser o capital linguístico escolar transmitido pela família o único fator que responde pela formação de estruturas complexas, requisitadas nos níveis de aprendizagens mais elaboradas, visto ter ventilado que, quanto maior o número de estudantes populares em graus mais elevados de escolarização, maiores as chances de redução das desigualdades do capital linguístico. Ou seja, embora não trate de outros fatores igualmente importantes para o sucesso escolar do grupo social em evidência, o referido autor reconhece a dimensão da oportunidade de acesso como fator relevante para dirimir este tipo de desigualdade e forçar a construção de uma cultura acadêmica menos segregante.

Isto nos faz pensar que, como observou Lahire (2004a), existem outras linguagens que podem contribuir para a construção do que Bourdieu e Passeron (2010) chamou de um “sistema de categorias mais ou menos complexas”, as quais podem ser transmitidas também por famílias que não dispõem do capital linguístico escolar. Nos estudos de Lahire (2004a), a investigação das formas familiares de cultura escrita; a autoridade familiar; as formas familiares de investimento pedagógico e a ordem moral foram categorias importantes para a percepção dos inúmeros fatores concatenados na construção dos vínculos positivos de estudantes com os saberes formais e se inscrevem como fatores preponderantes para o desempenho escolar de pessoas dos meios populares.

Ocorre-me pensar na minha própria trajetória de estudante de classe popular, filha de agricultor e dona de casa com baixa escolaridade, que não acessaram o capital linguístico requisitado pelo universo da educação formal. Certamente não teria chegado ao ensino superior se o capital linguístico fosse a única forma de construção de um sistema de categorias mais ou menos complexa, embora a minha trajetória educacional tenha

favorecido a construção deste capital. Talvez o capital linguístico e as disposições econômicas não tenham sido as vias a partir das quais tenha construído o meu vínculo com o saber formal. Meu pai, embora nunca tenha frequentado a escola, era um autodidata, lia e escrevia com desenvoltura, gostava de contar histórias, sabia fazer contas, memorizou todos os estados e capitais do Brasil. Entre outros rituais, cultivava a prática de reunir os nove filhos, todas as noites, para fazer orações e contar histórias em noites enluaradas. Talvez fosse também uma estratégia para amenizar a falta da minha mãe, que faleceu quando eu tinha 4 anos. Contava muitas histórias bíblicas, sempre apresentava um velho catecismo como fonte inesgotável de sabedoria e não hesitava em dizer que tinha aprendido a ler e a escrever com o referido catecismo.

Ficava encantada com a autoridade por ele atribuída à leitura e à escrita e não cansava de ficar imaginando os segredos que os livros escondiam. Achava meu pai o homem mais sábio do lugarejo onde morava e, ainda hoje, recordo da maneira como ele se referia a sua avó. Esta personagem era relembrada por meu pai como referencial de inteligência e, quando precisava elogiar alguma aprendizagem dos filhos, recorria à memória dessa avó, “mulher letrada”. Não lembro com afeto da escola multisseriada onde cursei as primeiras séries do ensino fundamental, mas recordo do apoio incondicional que recebia quando se tratava de assuntos vinculados à escola ou à participação em algum grupo de igreja ou movimento social, que viabilizava aprendizagem de conhecimentos socioculturais.

Encontro nas pegadas do meu percurso escolar características semelhantes às dos jovens do Prouni. Nestas circunstâncias, investigar as redes de socialização de saberes para interpretar os percursos formativos de jovens do programa em evidência e compreender como essas redes contribuem para uma relação edificante com o saber acadêmico, é também uma tentativa de fazer uma leitura dos fatores socioeconômicos e culturais que contribuíram para a construção da minha subjetividade e autoafirmação no universo acadêmico.

Com o relato do estudante de Direito e as contribuições de Bourdieu,

já assumimos o capital linguístico escolar como um dos fatores que contribui para percursos edificantes de estudantes. Mas, nas contribuições de Lahire fica evidente que as condições de crescimento de um sujeito, tantas vezes expressas na criatividade de famílias ou grupos sociais, compõem realidades que escapam indicações teóricas e podem alterar trajetórias humanas, podendo dar vazão a outras descobertas.

Na tentativa de avançar na compreensão das redes de socialização de saberes de jovens participantes do ProUni, apresentamos, a seguir, um quadro sinótico com algumas informações acerca dos estudantes que participaram do estudo de múltiplos casos.

Nome fictício Idade com que ingres sou na FSBA Curso Nºde irmã os Grupos que participou Posição Ocupad a na família Escolarização Profissão/idade

Pai Mãe Pai Mãe

Olivia 18 ADM 2 Igreja/ música G.culturais Dança Primeira Ens. Médio Ens. Superior Cabeleireir o Aux.de serv. Gerais

Ravije 22 Pedagogia 2 Igreja/

música G.culturais Dança Teatro Primeiro Não tem contato Ens.fund. Incompleto Não tem contato Cozinheira Jean (nome verdadeiro) 18 Direito 0 Igreja/ música G.culturais Teatro F. única Ens. Médio

Não tem Ambulante ---

Benedito Psicologia 2 Igreja/ música G.culturais Teatro F. do meio Ens.fund.

Incompleto Ens. Médio

Incompleto Pedreiro Dona de Casa Garrichinha 19 Fisioterapi a 2 Igreja, ONG- ambientalisa 2º N.estudou Lê e escreve N.estudou Lê e escreve Agricultor Agricultora dona de casa

Shannon 23 Jornalismo 1 Teatro 1º Ens.

Fund. Ens. Médio Motorista Dona de casa Quadro sinótico 01 Fonte: Pesquisa Direta, 2010

O quadro em destaque surge com o propósito de apresentar os estudantes que participaram do estudo multicasos e reunir, num mesmo panorama, algumas informações dos sujeitos da pesquisa, as quais qualificamos como fundantes para uma primeira aproximação da realidade do grupo. As informações em destaque permitem dar continuidade ao processo de articulação de informações importantes para a compreensão dos elementos favoráveis ao estabelecimento de relações positivas com o saber acadêmico, ao tempo em que fortalecem os estudantes na difícil tarefa de ocuparem espaços invisíveis na instituição de educação superior em que estão vinculados.

A partir dessas informações foram intensificados esforços no sentido de aprimorar uma “escuta sensível” (BARBIER, 2004) e compreender as bases construídas pelos participantes da pesquisa. Entendendo-as como

estruturas que os impulsionam a criar estratégias de participação no espaço da instituição, afirmando a política pública, enquanto constroem suas dinâmicas de autoafirmação e ocupam espaços, por vezes invisíveis, na educação superior.