• Nenhum resultado encontrado

6 POLÍTICAS DE SENTIDO E PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES DO

6.1 REDES DE COOPERAÇÃO SOCIAL

A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. A relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um “conteúdo de pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação etc, relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber - consequentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação.

(CHARLOT, 2005, p.45) A epigrafe escolhida para iniciar as reflexões desse capítulo conduz à percepção de que todo o percurso traçado neste estudo está transversalizado por tentativas de compreender como o saber atravessa o conjunto de relações estabelecidas por jovens estudantes e como estes saberes se relacionam para dialogar com o saber considerado por Bourdieu como “saber legitimo”, especifico de uma profissão, priorizado na academia. Dentre tantos fatores que podem implicar na permanência de estudantes de classes populares, nos preocupamos com as oportunidades para o desenvolvimento de sua atividade intelectual, porque o ato de aprender é individual e a aprendizagem de um determinado conteúdo não se faz com a ausência de sentido e muito menos com a separação do “eu epistêmico do eu empírico”.

O sujeito que aprende é, também, o sujeito que tem singularidades e vive um cotidiano específico. De acordo com Charlot (2005, p.45), a aprendizagem é um processo individual, mas não prescinde da mediação de outras pessoas. “É o sujeito que aprende, mas ele só pode aprender pela mediação do outro e participando de uma atividade”. Para os jovens oriundos de classes populares poderem permanecer na Educação Superior,

precisam criar políticas de sentido que viabilizem o envolvimento do indivíduo, na sua inteireza, no desenvolvimento da atividade intelectual, significando assim o seu estar no espaço da Faculdade. É um percurso que pressupõe a inventividade no diálogo entre saberes interculturais, para a apropriação do “saber legítimo” efetivamente fazer sentido para os estudantes das camadas populares.

Neste sentido, identificar os significados atribuídos às estratégias de permanência dos estudantes participantes do estudo de múltiplos casos na FSBA é uma tentativa de compreendê-los como fator de construção de mecanismos de políticas de sentido na Educação Superior. Isto nos traz o imperativo de transitar pelas redes de cooperação social que supomos serem parte do tecido de sustentação dos estudantes em suas trajetórias acadêmicas. Para situar a ideia de rede de cooperação, tomamos como referência os estudos do sociólogo alemão Nobert Elias (1994), quando assume o desafio de compreender a relação entre indivíduos e sociedade, tomando como metáfora a ideia de rede.

O autor recorre ao conceito de rede de tecido, para especificar a interligação de fios isolados na construção da forma de rede. Ressalta que

[...] nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser entendidos em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente compreendidos; a rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca (ELIAS, 1994, p.35).

Assim, a composição do tecido da rede não suprime as particularidades dos fios que a compõem. Isto significa dizer que a ideia de rede precisa ser compreendida considerando o modo como os fios se interconectam para dar forma ao todo, e isso não se faz fora de uma prática colaborativa.

Uma rede de cooperação social constitui-se, portanto, como resultado de ações visíveis ou invisíveis que se interligam em uma dinâmica de trocas. Trocas que não podem ser mensuráveis; cada um oferece o que tem de melhor para cooperar com o alcance de um determinado objetivo

(PIMENTEL, 2002). Como nas redes de relações entre indivíduos e sociedade, as formas de cooperação social são singulares porque, sendo expressas por sujeitos individuais, cada um parte de um ponto único, com as singularidades próprias do modo como cada sujeito conduz o seu estar sendo. Assim, uma rede de cooperação não pode ser compreendida como um todo homogêneo, sem considerar o papel dos fios interligados, os quais tecem a rede de cooperação com as particularidades das pessoas que intercambiam seus recursos colaborativos, sejam eles sociais, materiais e imateriais.

Na experiência vivenciada com os seis estudantes bolsistas do ProUni (cursos: Direito, Pedagogia, Fisioterapia, Jornalismo, Administração, Psicologia), a construção das redes de cooperação social não tinha origens primevas. As ações cooperativas partiam de situações anteriormente vivenciadas por outras pessoas para a construção de novas redes, organizadas com as peculiaridades dos indivíduos imbricados na dinâmica colaborativa. Este entrelaçamento pode ser percebido na breve biografia dos estudantes. De muitas maneiras e de diversos lugares eles evidenciaram a presença de pessoas que se tornaram referências positivas em seus percursos formativos e, sem suprimir o que cada um podia oferecer, foram imprescindíveis para a construção da auto percepção positiva de cada um. Com Antonio Ciampa (2005), que analisa a história de vida de Severina, nos avizinhamos da itinerência formativa de seis jovens que, como Severina, salvo as particularidades dos seus percursos, encontraram nas redes de cooperação social a força que os impulsionara para o encontro de caminhos edificantes.

Em muitas situações, estes referenciais constituíram-se fator principal para o processo de resiliência dos jovens com suas histórias de vida. Garrinchinha, Shannon, Benedito, Ravije, Olivia e Jean, todos nomearam pessoas que exerceram influências significativas em seus percursos formativos: madrinha, mãe, amigo(a), avó, avô, pai adotivo, dentre tantas referências visíveis e invisíveis, as quais se conectaram e, como os fios que confeccionam as redes mais sofisticadas, se interligaram para compor a história de formação dos estudantes em destaque.

Esta força/energia, na percepção de Pimentel (2002, p.86), ao tratar das relações dos sujeitos na experiência do IRPAA45 em comunidades do

semiárido brasileiro, “tornam-se cooperantes na construção do tecido social, coexistentes na partilha dos espaços e tempos vividos e coadunantes nas tramas que configuram as manifestações da vida nas suas comunidades”. Pensando nas biografias sociais dos jovens do ProUni, inferimos que, com articulação semelhante, eles criaram redes de cooperação, alterando os contornos definidos para o programa de política pública ProUni, pois o descompasso entre as condições oferecidas pelo programa em discussão e a realidade socioeconômica dos bolsistas teria inviabilizado a permanência dos jovem na academia, não fossem os ajustes gerados pela criatividade e solidariedade dos estudantes em suas redes de cooperação social, tantas vezes configuradas como redes de relações subterrâneas.

Não nos parece exagero afirmar que as estratégias para superar dificuldades, quase sempre, emergem de realidades complicadas, quando os sujeitos não dispõem das condições objetivas para resolvê-las. O programa de política de ações afirmativas (ProUni) entra na vida dos jovens como uma tentativa de reparação de direitos historicamente negados a pessoas vitimadas pela desigualdade social46 no Brasil. Esta proposta fomenta uma

esperança que, de certa forma, é abalada no transcurso da experiência. Na contra mão do que seria o ideal de uma política social de reparação, esta ação é guiada pela lógica da inserção, e pouco se fez para garantir a permanência e, consequentemente, a conclusão de uma graduação que garanta a aprendizagem básica dos conhecimentos requeridos por cada

45 IRPAA- Instituto Regional da Pequena Agropecuário Apropriada

46 Só para lembrar, mesmo considerando os significativos avanços em termos de programas

de combate a pobreza no Brasil, de acordo com dados divulgados pelo Banco Mundial (2011), no que diz respeito à desigualdade social, em um bloco de 129 países, o Brasil ainda se encontra entre os dez piores.

profissão. Essa fragilidade, que afeta a esperança dos jovens, fez com que Ravije (2012, 24 anos) utilizasse a metáfora “escada ensaboada” para explicar a sua percepção acerca do ProUni e as condições de permanência dos bolsistas.