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Delinear um objeto de estudo, embora seja tarefa que comporta rigor científico, não pressupõe a construção de propostas concluídas ou impossíveis de serem ajustadas. O encontro de um pesquisador com uma temática inspiradora de sua curiosidade maior pode ser explicado por sua história de vida, memórias históricas acumuladas nas itinerâncias formativas, dentre tantas outras possibilidades de se justificar escolhas e conduzir percursos investigativos.

Neste estudo, como em tantos outros de natureza etnográfica, acredita-se que a construção do campo de pesquisa iniciou-se desde a tessitura dos primeiros fios que deram corpo a proposta de estudo. E, por se tratar de uma pesquisa esboçada a partir da minha experiência profissional, parecia não ser necessário maior investimento no processo de aproximação do campo. Uma vez que havia estabelecido bom relacionamento com vários setores da instituição e conhecia as pessoas com quem deveria dialogar durante a pesquisa, a fase de aproximação parecia superada.

Após a entrega da carta de apresentação, 19 de julho de 2010, observo a diferença entre estar no campo e estar imerso no campo. O estar no campo guarda relação com o fato de transitar no espaço e, convivendo na instituição, posso dizer como Gilberto Velho (2003, p. 15), “que já possuía um tipo de conhecimento e informação apreciável sobre parte do universo que me propus investigar”. Isto a priori soou como condição de quem não precisava investir no processo de aproximação. Em certa medida, este raciocínio corresponde à realidade; o que não estava previsto era a inusitada percepção de estar no campo, sem estar imersa nele. Isto significa que transitar no espaço não configura imersão, a ideia de imersão extrapola a presença física do pesquisador(a) no cenário, e diz respeito a um mergulho com implicações diretas entre cenário de pesquisa, em construção, e o objeto em estudo.

O estar no campo pode não significar, ainda, a desobstrução dos vasos comunicantes intermediadores do diálogo entre pesquisador e contexto de pesquisa28. O lugar de onde olhava e ouvia era de profissional da

instituição com função definida, espaço demarcado, enquanto que o lugar do pesquisador, ora ocupado na comunidade acadêmica, não se apresentava com muita clareza. As relações eram atravessadas por algumas inseguranças e pela busca da pesquisadora de descobrir caminhos suaves para aquisição de informações, visto ter observado a sobrecarga da assistente social e o momento de tensão em face do realinhamento institucional em curso no lócus de pesquisa.

Superada a expectativa de apresentar a proposta de estudo à assistente social, iniciou-se o período de espera da concessão das informações. Notava que, em certas circunstâncias, estranhava o que me era familiar e, por conta disso, não me sentia livre para fazer cobranças ou ser mais incisiva na busca dos dados da pesquisa. Percebo certa aproximação com o que Pimentel vai situar como uma das possibilidades de se pensar o estranhamento e a familiaridade na pesquisa etnográfica em educação. O jogo de estranhar o familiar pode se inscrever no processo de diferenciação do outro da pesquisa e criar instabilidades para se compreender a diferenciação e a identificação, processos que, como Pimentel (2009), compreendo serem diferentes, mas indissociáveis. Ainda sobre estranhar recorro à contribuição do referido autor, quando infere que:

Estranhar é ver de forma diferente aquilo que os indivíduos que participam da investigação veem como o mesmo, é também criar instabilidade semântica e epistemológica para as significações compartilhadas sobre um determinado contexto cultural. (PIMENTEL, 2009, p. 134)

Talvez seja necessário pensar na importância do distanciamento para

28 Na ideia de contexto estão sendo visualizados também todos os atores sociais

participantes da pesquisa. Aquelas pessoas que possuem saberes fundantes às descobertas dos pesquisadores.

permitir uma maneira diferenciada de conhecer o outro, o familiar pode se tornar estranho quando ocorre a mudança de papeis, a percepção da instabilidade contribui para a desconstrução de “certezas” teóricas e, arrisco afirmar, que me sinto instigada a compreender melhor o estatuto epistemológico da relação entre o observado, o pensado e o vivido, expressões demarcadas por Pimentel (PIMENTEL, 2009) quando trata de autoridade e rigor nas pesquisas etnográficas em educação.

Dialogando com Velho (2003) sobre os desafios de estranhar o familiar, confirmo a inquietação de ser esta uma tarefa complexa e nem sempre bem sucedida, que exigiu a capacidade de desnaturalizar noções e percepções que configuravam a minha maneira de olhar a dinâmica da comunidade acadêmica em situações anteriores. Emerge desta compreensão o desafio de problematizar o sentido do olhar nos percursos investigativos. O olhar, concebido por Roberto Cardoso (2000, p.19) como uma das etapas de apreensão de fenômenos sociais, não se refere somente ao ato de enxergar o visível. O ato cognitivo de olhar está atravessado por nossas construções teóricas e pode, inclusive, alcançar realidades invisíveis. Neste sentido, Cardoso (2000, p.19) sinaliza que a primeira experiência do pesquisador no campo precisa ser a da “domesticação do olhar”.

Domesticar o olhar na experiência de pesquisa em discussão perpassa pelo bom senso e a sensibilidade para dialogar com o vivido e reconhecer nas experiências de outros pesquisadores pistas para a construção de nossas próprias trilhas. Estas pistas podem aparecer nas buscas propositais, como também emergir dos repertórios intelectuais, memórias de situações desafiantes, como as vividas por Berreman (1975) em uma aldeia do Himalaia. Naquele caso, a imersão no campo e a conquista da confiança dos participantes da pesquisa requisitaram a inspiração e objetividade do pesquisador, no sentido de quebrar a resistência sobre a impossibilidade de um sociólogo americano desenvolver pesquisa na Índia.

Tratou-se de uma explicação precisa, na qual o pesquisador lembrou que a Índia enviará jovens para estudar na América, da mesma forma que a América o enviou para aprender a língua e conhecer os costumes dos habitantes do Himalaia. Isso diminuiu o abismo gerado acerca das

possibilidades de trocas possíveis entre territórios com marcas socioeconômicas, políticas e culturais diferentes e demarcou a conquista da confiança entre pesquisador e participantes da pesquisa.

Na mesma perspectiva, Fernanda Eugênio (2003) e Manuela Ferreira (2003), de lugares diferentes, apontam a complexidade e a criatividade no desafio de lidar com a imersão no campo. Estas experiências situam-se no que Becker (1999) aponta como um dos desafios das ciências sociais: romper com a ideia de método como camisa de força e priorizar a inventividade na elaboração de dispositivos de pesquisa. Evitar estudos apriorísticos, ao tempo em que, sem perder os eixos balizadores do objeto de estudo, o pesquisador encontra-se diante da responsabilidade de, para além de seguir rigorosamente uma determinada proposta metodológica, ajustar os dispositivos às demandas emanadas do território de pesquisa.

Nestes termos, é a imersão no campo de pesquisa e a sensibilidade do pesquisador que vão convergindo para a descoberta das estratégias mais adequadas à aproximação dos participantes da pesquisa e, consequentemente, favorecem a invenção de estratégias para lidar com as situações que produzem estranhamento. Esta dinâmica de criar atalhos para chegar às informações desejadas, ficou evidenciada nas primeiras tentativas de mapear os estudantes bolsistas do ProUni da FSBA, situação que aos poucos, foi sendo contornada, mesmo tendo alterado os propósitos delineados.