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D ESERTAS CATEDRAIS : ROMANCES SEM LEITORES FAZEM LITERATURA ?

2 OS BRILHANTES DE RODOLFO TEÓFILO

2.5 D ESERTAS CATEDRAIS : ROMANCES SEM LEITORES FAZEM LITERATURA ?

Rodolfo Teófilo foi, como ele mesmo afirmava, em tudo cearense. Diria eu algo mais: devoto à sua terra. Essa devoção pode ser percebida na maneira com que o autor lutou contra doenças que assolavam a sua população, em especial a varíola; denunciou os males da seca e da fome; fez da sua literatura libelo contra a má política local; desenvolveu atividades político-intelectuais, como a Padaria Espiritual. Devoto na busca por fazer contribuições significativas àquele lugar em diversos aspectos sociais. Razões essas pelas quais penso que, ao refletirmos sobre a posição de Teófilo em face a uma ideia de “Literatura nacional”, precisamos ter em mente seu lugar de enunciação não só como condicionante material imediata, mas também como elemento que marca – e poderia dizer também limita – sua circulação e sua recepção. Em 1915 foi lançado um opúsculo com o ensaio do poeta simbolista Nestor Victor em que o autor analisa “Três romancistas do Norte” (VICTOR, 1915): o que me importa pensar é a permanência dessa condição marginal (“do Norte”) na reflexão e na circulação de determinado autor não alcançando em nenhum momento o prestígio que outros sujeitos da mesma região receberam (autores correntes na reflexão sobre

Literatura “brasileira”: os também cearenses José de Alencar, Franklin Távora, e Adolfo Caminha, por exemplo). Essa tensão entre o regional e o nacional é perceptível no caminho inverso da dedução, já que os autores citados não são associados a uma suposta ou propensa estética circunscrita “ao Norte”, mas à Literatura “brasileira”, embora tenham algumas obras cuja ação tem o sertão como pano de fundo. Esse parece ser o ponto de fricção pertinente para a reflexão: alguns sertões compõem a Literatura “brasileira”, outros são característicos “do Norte”.

É preciso ter em vista que o estabelecimento de uma história ou uma cronologia de fatos relevantes para uma Literatura é sempre uma seleção de fatos que vão permitir que se conte de modo encadeado e ordenado o momento atual como um resultado lógico. Essa seleção é, portanto, condicionada à noção dos sujeitos envolvidos sobre o que é a própria Literatura presente. O estudioso não olha para trás para entender o que é a história de uma Literatura. De modo diverso, olha para procurar justificar a própria visão histórica da Literatura. E toda visão subjetiva atual carrega em si os movimentos políticos, estéticos e sociais do passado. Está, portanto, condicionada a elementos que são supra subjetivos. É, em suma, elemento de identidade do historiador literário e da sociedade na qual se insere enquanto sujeito pensante de sua própria coletividade. Nesse sentido, é relevante refletir junto com Moacir dos Anjos, para quem:

identidades culturais não são construções atemporais dotadas de um núcleo imutável de crenças e valores que singularizam, desde e para sempre, um lugar entre outros quaisquer. São, antes, resultado de processos de expressão humana (discursiva e performativa) por meio dos quais são estabelecidas e continuamente reelaboradas distinções entre grupos diversos cujos percursos de vida se tocam. (ANJOS, 2017, p. 45)

É importante deixar claro que não estou advogando pela necessidade de reestabelecimento de uma nova historiografia literária que contemple a obra de Rodolfo Teófilo. Não é essa a função do analista, evidentemente. O que gostaria de evidenciar é que tanto a permanência quanto o esquecimento de nomes e obras estão ligados a questões estéticas, mas não apenas. E esse espaço que vai além do caráter estético é efetivamente meu lugar de reflexão nesse momento. Retomando o quadro construído no capítulo anterior para o mapeamento de citações de Franklin Távora, teremos a seguinte distribuição quando pesquisamos por Rodolfo Teófilo.

Tabela 2. Referências às obras de Rodolfo Teófilo em alguns manuais de história da Literatura

Autor Obra Ref.

BOSI, Alfredo História Concisa da Literatura Brasileira 5 CANDIDO, Antônio Formação da Literatura Brasileira 0 CASTELLO, Aderaldo A Literatura Brasileira, 2 vols 10 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia Prosa de ficção - de 1870 a 1920 4 MOISES, Masaud História da Literatura Brasileira, 2 vols 10 VERÍSSIMO, José História da Literatura Brasileira 0

É visível uma diminuição na frequência das análises, citações ou meras menções ao nome de Teófilo. O que não se deve necessariamente e apenas à má avaliação de sua obra, pois, se bem observado, os estudiosos apresentam restrições em qualidade semelhante tanto a Teófilo quanto a Távora.

Retomo o estudo de Lúcia Miguel-Pereira sobre a prosa de ficção entre 1870 e 1920. Para a autora, Teófilo “encontrou no pedantismo o seu defeito dominante.” (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p.135). Concluindo, ainda, que “a despeito de algumas qualidades, decorrentes dos assuntos do que do valor literário, seus livros são ilegíveis.” (Idem, p. 136). Quanto aos assuntos tratados por Teófilo e que Miguel- Pereira vê como sua qualidade predominante, é relevante apontar que o autor – se não foi o primeiro – foi pioneiro na representação da situação dos homens que enfrentam a seca e os retirantes, a migração do sertanejo para trabalhar na extração amazonense de borracha, a organização de grupos cangaceiros e, até mesmo, na descrição detalhista e impregnada de cientificismo de um ato sexual com um cadáver na novela Violação (1898).

São os desdobramentos pouco vistos desse ineditismo que ainda parecem demandar um pouco mais de atenção: basta pensar que no romance A fome [1890] há a narração da migração da família de um antes abastado fazendeiro de nome Manoel de Freitas com sua família, núcleo composto pelo marido, a mulher Josefa, a filha mais velha Carolina e os dois meninos mais novos cujos nomes não são informados ao leitor. Há inúmeras coincidências com Vidas secas (1938) de Graciliano Ramos, que tangem desde a própria seca e migração até a composição da família (se considerarmos Baleia como um semelhante aos retirantes) e o fato de os dois meninos menores não serem nomeados. Não é possível esquecer que, como informou Adolfo

Caminha, o romance A fome foi recebido com “palmas estrondosas” a seu tempo (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p.135). A recepção e a importância da obra Rodolfo Teófilo podem ser percebidas até na negação da influência de sua obra, segundo José Murilo de Carvalho, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ao comentar a produção de Rachel de Queiroz:

Parece-me que Rachel, sem dúvida, recriava literariamente a realidade. Ao escrever O quinze, buscou explicitamente afastar-se da crueza naturalista de Rodolfo Teófilo, autor de A fome, romance publicado em 1890, inspirado na seca de 1877-1880. Na obra de Rodolfo Teófilo, segundo ela péssimo romancista, havia cadáver demais, urubu demais. Queria mostrar uma seca mais clean, mais light. Uma seca light, talvez esteja aí uma chave para entender a ficção de Rachel. (CARVALHO, 2017)5

A análise de Alfredo Bosi se assemelha um pouco à de Lúcia Miguel-Pereira, embora guarde significativas diferenças. Para esse estudioso, a obra de Teófilo é constituída por “livros atulhados do jargão científico do tempo, mas que valem como retorno literário ao pesadelo da seca e da imigração.” (BOSI, 2006, p. 207). Essa característica está associada, conforme espero ter demonstrado anteriormente, à realização de uma proposta estética de seu tempo, pela transposição do conhecimento científico às obras literárias. Teófilo se distingue de outros autores de seu tempo pela intensidade e forma dessa transposição, que ocorria de maneira quase direta em muitos momentos. No entanto, é importante ressaltar, não se trata de descuido estético do autor, mas de uma ação intencional e planejada: há um plano literário nessa escolha. Nesse sentido, a obra de Teófilo é um registro não só de uma proposição estética, mas de realizações extremas dessa proposição, de experimentações que buscavam diluir por completo as fronteiras formais entre o linguajar artístico e aquele do cientista.

Não sendo pela forma que Teófilo vislumbraria seu espaço em nossa “história literária” nem pela a renovação de seus leitores, é de se perguntar se o pioneirismo no trato de alguns temas não garantiria tal registro. No plano do conteúdo, se não foi o primeiro a representar esteticamente temas “espinhosos” para a sociedade, foi um dos iniciadores e, certamente, daqueles mais vorazes nas críticas sociais: a hipocrisia

5 CARVALHO, José Murilo. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, proferido em 10 de setembro de

2004. Disponível em <http://www.academia.org.br/academicos/jose-murilo-de-carvalho/discurso-de-posse>. Acesso em: 25 dez. 2017.

do clero envolvido em disputas políticas locais, violência no campo por questões de família, uso da máquina pública como instrumento para as vinganças privadas no sertão, uso de recursos públicos para o socorro dos retirantes para interesses particulares, o tratamento desumano prestado aos retirantes em Fortaleza, a falsa promessa de enriquecimento com a exploração da borracha e a situação degradante dos “paroaras”, organização e funcionamento de um grupo de cangaceiros, e, até mesmo, a narração de uma violação sexual de uma mulher morta por prisioneiros responsáveis pelo sepultamento de vítimas da epidemia cólera-morbo, tema de uma de suas obras. Três de suas obras constituem o que seja provavelmente o primeiro “ciclo da seca”: A fome [1890], Os Brilhantes [1895], O paroara [1899].

Se compararmos o autor a F1ranklin Távora perceberemos que o espaço de circulação das obras talvez possa ter influenciado bastante a diferença entre a perpetuação de seus textos. Enquanto Teófilo tornou-se um “lembrado e esquecido” autor da literatura cearense (COLARES, 1975), Távora se imortalizou patrono da cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras. A circulação da obra de Teófilo restringiu-se bastante ao Ceará e demais estados do chamado “Norte”. Por outro lado, Távora “estreou pela segunda vez” ao publicar na capital do país seu O Cabeleira, conforme já apontei no capítulo anterior. Se o reconhecimento posterior do escritor não tinha – na virada do século XIX para XX – em tudo relação com o local de produção e circulação de sua obra, podemos ao menos afirmar que a corte como local de prestígio pode ter influenciado o reconhecimento de muitos autores, como é o caso de Távora, que assina a carta-prefácio do romance O Cabeleira na orla de Botafogo. E é o caso de outros escritores relacionados com o “Norte”: não é possível esquecer que o cortiço do maranhense Aluísio de Azevedo se localizava no Rio de Janeiro, ou que as notícias de Euclides da Cunha que descrevem os embates ferozes nos sertões nordestinos foram publicadas em jornal da capital, ou, ainda, que obras como O gaúcho e O sertanejo do cearense José de Alencar foram recebidas pelo público com entusiasmo pelo “exotismo” das paisagens e das pessoas.

Outrossim, ainda na comparação entre Távora e Teófilo, a orientação temporal das narrativas desses escritores é elemento indispensável para percebermos o abismo que há entre ambos. A narração de O Cabeleira envolve ações ocorridas muito antes do tempo de produção da obra: século XVIII. No entanto, o autor tem acurado cuidado na descrição laudatória dos sujeitos “elevados” de outrora, cujos descendentes mantêm relações de poder no tempo da escritura. Em Os Brilhantes,

ao contrário, os fatos narrados se passaram há aproximadamente duas décadas do momento de escrita do autor. Teófilo faz críticas contundentes à organização econômica e social de seu tempo, apontando para as práticas de corrupção bastante generalizadas naquele meio e o agir degradante e desumano dos grupos de poder.

Para concluir o raciocínio, é preciso dizer que Rodolfo Teófilo é um autor mal registrado na historiografia literária. Atualmente sua obra tem poucos leitores e reduzido impacto na crítica especializada. Indo além da perspectiva estética, o que evidencia o estudo comparado da obra de Teófilo é que os parâmetros extraliterários para o esquecimento ou reconhecimento artístico de autores e textos são de difícil compreensão. No entanto, e é esse o ponto central da reflexão que faço: as dimensões econômica, política, geográfica e social que circunscrevem a recepção e a perpetuação historiográfica das obras a partir dos estudos literários talvez contribuam pouco para a compreensão das obras em si e muito mais para nos percebermos como os sujeitos que as leem; e sobre os processos estéticos e éticos envolvidos nos processos coletivos-sociais e individuais-intelectuais – tanto do público comum quanto daquele especializado – relativos às construções da ideia e da identificação de uma Literatura nacional. Afinal, trata-se de um processo discursivo envolvendo a seleção de inúmeros elementos (obras e autores) e variantes (condições sócio-discursivas) que se faz em um olhar retrospectivo, mas com os pés no presente (em suas possibilidades e limitações de horizonte) para se justificar exatamente esse ponto de vista (que é individual enquanto realização, mas sendo concomitantemente resultado de uma perspectiva histórica coletiva).