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M UITOS FIÉIS SEM CATEDRAL : MUITOS LEITORES SEM PRIVILÉGIO SOCIAL FAZEM LITERATURA ?

3 FOLHETOS DE LEANDRO GOMES DE BARROS

3.2 M UITOS FIÉIS SEM CATEDRAL : MUITOS LEITORES SEM PRIVILÉGIO SOCIAL FAZEM LITERATURA ?

Em setembro de 1976, Carlos Drummond de Andrade publicou um artigo em que fazia menção à eleição realizada em 1913 pela revista Fon-Fon!. Essa seleção dava para Olavo Bilac o título de “príncipe dos poetas” (Apud VIANNA, 2016, p. 114). O artigo de Andrade foi escrito por ocasião da publicação do tomo II de Literatura popular em verso, livro pertencente a uma coleção sobre o gênero editado pela Fundação Casa de Rui Barbosa (1976). As finalidades do artigo parecem ser duas: divulgar a obra da FCRB e atuar como polemista. Nessa segunda função, o que nos questiona o poeta mineiro são os critérios subjetivos e objetivos para as declarações sobre o estatuto do literário:

Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173 elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista Fon-Fon!, mas vastamente popular no Norte do país, onde suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de “Ouvir Estrelas” (ANDRADE apud VIANNA, 2016, p. 114).

Alguns aspectos desse parágrafo podem ser ressaltados e analisados mais detalhadamente. Tomarei apenas duas ideias do Drummond-polemista para meu reuso: a geografia literária e a relação entre institucionalização e circulação literária.

A ignorância dos trinta e nove (39) eleitores de Bilac é atribuída à localização geográfica na qual se encontram: o Rio de Janeiro. Sabia Drummond que a então capital federal (1913) era o centro cultural do país. Assim como a maior parte dos

centros culturais, a posição econômica e política privilegiada confere a esse espaço uma força centrípeta do olhar. Ou seja, a tendência dos sujeitos é olhar de fora para o centro, e não o contrário. Sabia disso o mineiro Carlos Drummond de Andrade, assim como soubera também disso o cearense Franklin Távora. A outrora capital continua a ser local de prestígio de fala, razão pela qual vemos muitos artistas de diversas localidades do Brasil buscando no Rio de Janeiro sedimentar carreira e consolidar público. Hoje em dia, essa condição não é tão exclusiva, mas ainda há o prestígio do tempo de antes. Em sua História social do Jazz, o historiador britânico Eric Hobsbawm afirma:

A história das artes não é uma única história, mas, em cada país, pelo menos duas: aquela das artes enquanto praticadas e usufruídas pela minoria rica, desocupada ou educada, e aquela das artes praticadas ou usufruídas pela massa de pessoas comuns. Quando se lê “cultura” ou “arte” em um livro, se está falando da cultura da minoria e da arte de poucos. (HOBSBAWM, 2008, p. 37)

E quando se lê “Literatura”, igualmente, nos referimos àquela praticada por grupos privilegiados em nosso contexto social. Não fosse assim, a Literatura de folhetos não precisaria receber o epíteto distintivo “de folhetos” ou “de cordel”. A caracterização desse gênero é justamente uma forma de distingui-la daquela outra, chamada apenas “Literatura”. O uso de adjetivações está ligado à percepção de caracterização à margem dos grupos de privilégio: Literatura feminina, Literatura negra, Literatura gaúcha, Literatura amazonense etc. Olavo Bilac e José de Alencar são autores de Literatura, caracterizados no máximo como autores de Literatura brasileira. Mesmo que um deles tenha nascido no Rio de Janeiro e o outro no Ceará, e que tenham praticado gêneros distintos, não há nada que os distinga dentro do grupo de fala privilegiado no contexto econômico e social.

Dada a formação heterogênea de nosso país, as condições sociais e econômicas mais diversas e suas dinâmicas próprias de objetivação em fatos sociais distintos, o que há de se esperar é a multiplicidade de “Literaturas”, que se relacionam e materializam esteticamente essas diferenças econômicas, geográficas, históricas, de classe etc. No entanto, o registro histórico oficial está atrelado intimamente ao poder de classe e aos privilégios sociais da “minoria rica, desocupada ou educada” que constitui a elite econômica do país. E o Brasil é um país com concentração de renda brutal com privilégios para uma pequena parcela social. Segundo dados do

Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio - PNAD, em 2001, os 5% mais ricos do país detinham 46,7% da riqueza nacional, enquanto os 40% mais pobres tinham acesso a 9,9% (PNAD apud HOFFMANN, 2002, p.216). O que significa dizer que os sujeitos não privilegiados no país excedem em muito aqueles das camadas que detêm o poder econômico e valorização social. Em consequência disso, o que ocorre é a variedade de expressões culturais diversas, inclusive Literaturas. No entanto, essa pluralidade é muitas vezes vista como dissonância à norma. Silenciada, pois, pelo manto da “oficialidade” dos privilégios sociais e geográficos de fala.

Esse processo histórico e social de tornar invisível grande parte da população pode ser visto ao observarmos outras formas “oficializadas” de representação como a pintura e a música. Proponho alguns exemplos que podem esclarecer meu ponto de argumentação. É o que temos nos quadros Proclamação da República de Henrique Bernardelli (1890) ou de Benedito Calixto (1893), com o apartamento físico do povo do processo histórico representado. Ou, ainda, no apartamento sintático formalizado pelo hino nacional, composição de 1906 de Joaquim Osório de Duque Estrada, e que perdura até a presente data com o testemunho da independência do país sendo feito pelas margens do rio Ipiranga. O “brado heroico” atribuído ao povo é de um de seus governantes. As fórmulas intrincadas de economia, política e sintaxe são usadas na história do país para dar forma e legitimidade à capenga democracia que vivemos (ou nos assola?).

Não distante desses processos, ocorrem aqueles de legitimação de discursos: de reconhecimento ou apagamento de “valores artísticos” de determinadas obras, sujeitos e até expressões artísticas inteiras. Esses processos se fazem muitas vezes utilizando-se subterfúgios classificatórios validados muitas vezes apenas na própria historicidade do fazer artístico: literário, subliterário, popular, erudito, efêmero, clássico, regional, universal etc. O que são essas categorias se não aquilo que historicamente identificamos como pertencentes a elas?

É isso que o Drummond-polemista aponta em seu artigo anteriormente citado. Razão pela qual o poeta mineiro tentou restituir a dimensão da importância de Leandro Gomes de Barros para a Literatura brasileira. A obra de Leandro é em muitos aspectos a antípoda daquela de Bilac. É narrativa, e não lírica. É acessível linguisticamente, não atrelada ao preciosismo. Voltada à comunicação, não à própria realização. E, principalmente, admirada por parcela significativa da população brasileira, não apenas por pequenos círculos intelectuais.

Assim como Drummond, é preciso afirmar que Leandro faz Literatura, no entanto, não é coberto pelo manto dos processos econômicos e sociais que conferem certa “oficialidade” e prestígio à sua prática artística. O que não pode ser confundido, é claro, com a quantidade de público ou reconhecimento democrático, já que nesse quesito Leandro foi imbatível a seu tempo. São fieis de uma catedral à qual é negada legitimidade discursiva. Leandro, seu fundador, em sua vasta obra dá azo ao clamor legítimo e historicamente apagado de identidade e reconhecimento social e discursivo de largas parcelas da população nacional.

CONCLUSÃO

O que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados. (Graciliano Ramos no texto “Lampião” publicado em 1931 pela revista Novidade. Apud RAMOS, 2014, p.29) Os estudos feitos nessa tese das obras de Franklin Távora, Rodolfo Teófilo e Leandro Gomes de Barros suscitaram problematizações. Muitos desses questionamentos envolveram as obras, os autores e os contextos individualmente; outros, indo um pouco além da unidade, apontavam para a reflexão conjunta das relações culturais existentes entre os gêneros literários empregados, as condições econômicas e sociais da enunciação, as representações do cangaceiro e da valentia etc. Buscando olhar reflexivamente para a trajetória de estudo, pretendo, na conclusão do trabalho, traçar aspectos mais amplos desses problemas: pensando o conjunto das obras dos três autores e de determinadas concepções de Literatura e do discurso sobre Literatura. Esse caminho abrangerá, certamente, algumas posições teóricas já expressas no decorrer da minha escrita e outras proposições tradicionais nesse campo de estudo específico. Razão pela qual reproduzo as palavras de Antonio Candido: “sem querer contestá-los, – pois nessa matéria tudo depende do ponto de vista – espero mostrar a validade do meu.” (CANDIDO, 2013, p. 25)