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Representações Do Cangaço: Entre Prosa Romanesca E Folheto Popular (1876 – 1918)

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE LITERATURA

DOUTORADO EM LITERATURA COMPARADA

Felipe Gonçalves Figueira

REPRESENTAÇÕES DO CANGAÇO: ENTRE PROSA ROMANESCA E FOLHETO POPULAR (1876 – 1918)

NITERÓI – RJ 2018

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FELIPE GONÇALVES FIGUEIRA

REPRESENTAÇÕES DO CANGAÇO: BANDITISMO RURAL NORDESTINO ENTRE PROSA ROMANESCA E FOLHETO POPULAR (1876 – 1918)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense, como requisito à obtenção do título de Doutor em Letras - Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Pascoal Farinaccio

Niterói – RJ 2018

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FELIPE GONÇALVES FIGUEIRA

REPRESENTAÇÕES DO CANGAÇO: BANDITISMO RURAL NORDESTINO ENTRE PROSA ROMANESCA E FOLHETO POPULAR (1876 – 1918)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense, como requisito à obtenção do título de Doutor em Letras - Literatura Comparada.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________ Prof. Dr. Pascoal Farinaccio (UFF)

Orientador

_____________________________________________________ Prof. Dr. André Dias (UFF)

_____________________________________________________ Prof. Drª. Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo (UERJ)

_____________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Azevedo Bezerra (USP/UFF)

_____________________________________________________ Prof. Dr. Victor Hugo Adler Pereira (UERJ)

Niterói 2018

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Dedico esse trabalho à memória da saudosa professora e amiga Carmen Maria Rangel.

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AGRADECIMENTOS

Aos funcionários, docentes e técnicos-administrativos, do Programa de Pós-Graduação de Estudos da Literatura e da Universidade Federal Fluminense por levarem à frente, com coragem e ânimo, o ensino público, gratuito e de qualidade. Espaços e pessoas importantes na minha formação, iniciada em seus bancos há mais de uma década.

Ao querido orientador Pascoal Farinaccio pela primeira acolhida da ideia, pelas imprescindíveis orientações e, muito além da academia, pelas lições de humanidade com que sempre lidou com minhas dificuldades, incertezas e apreensões. Não foram quatro anos fáceis – nem academicamente, nem pessoalmente – mas o grande respeito e enorme amabilidade com que sempre tratou de todas as questões foram imprescindíveis para que o caminho fosse trilhado. Agradeço muito.

Aos primeiros mestres que tive no caminho da pesquisa: Luís Filipe Ribeiro e Paulo Bezerra. São sempre os “terceiros do meu discurso”. As lições e a amizade de sempre são partes fundamentais da minha formação. Meu reconhecimento sempre.

À família, cuja enumeração dos membros não poderei fazer, pois Rafael e Karen transformaram essa lista em algo extensa. Na certeza de que sempre busco ser um melhor filho, neto, sobrinho, primo, como são o melhor para mim.

À companheira de jornadas e doutorados Alessandra, meu agradecimento às angústias compartilhadas, por ler os escritos e dizer com amabilidade quando sou ridículo, por todas as noites de abajour ligado, por me mostrar bons filmes; pelos planos em conjunto realizados, por aqueles ainda a se realizar e, especialmente, pelos que ainda estão por se sonhar.

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São os do Norte que vêm, Do sol do céu do sertão, No couro da minha cela,

No pelo do alazão. Trago o cantar do meu povo,

Seu sangue, sua coragem, De tantos anos sofridos, Aqui na minha bagagem.

[...]

Filho do sol do deserto, Sou dono do meu destino, Meu canto é rico e de ouro,

Que foi de Antônio Silvino. São os do Norte que vêm, Eu vim mostrar na cidade, No meu chapéu estrelado,

A estrela da liberdade. Trago a buzina de caça,

Com cravos de prata, Aqui e acolá, Não peço nada demais,

Eu sou cantador, O que eu quero é cantar.

E depois voltar, E depois voltar....

(Trecho da canção “São os do Norte que vêm”, música de Capiba e letra de Ariano Suassuna, apresentada por Claudionor Germano no II Festival Internacional da

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RESUMO

O cangaço é um fato social brasileiro que ocorreu até a segunda metade do século XX. Sua construção imagética se associa socialmente a determinada região do território nacional onde consubstanciaram-se as condições econômicas, sociais e naturais para seu surgimento. Na presente pesquisa, foram estudadas obras de Franklin Távora, Rodolfo Teófilo e Leandro Gomes de Barros cujos personagens principais das narrativas são cangaceiros, a saber, respectivamente: Cabeleira, Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino. Busca-se pensar quais elementos são relevantes para representação do cangaço nesses textos: os valores sociais envolvidos na construção desses personagens por esses autores; mecanismos estéticos usados para essa construção; relações entre as políticas locais e nacionais, ideologias estéticas e políticas, posição social do enunciador e dos enunciatários, meios de circulação dos textos; aspectos culturais impressos nas obras relidos a partir da subjetividade dos autores. A escolha desses autores se justifica pela importância seminal de seus escritos, contemporâneos ao cangaço enquanto fato social e, também, pela variedade das circunstâncias de enunciação e recepção das obras, permitindo desenhar um quadro geral do assunto. Para essa tarefa, em um primeiro momento são elencados os valores culturais atribuídos largamente ao cangaço, cuja presença nas obras estudadas se busca averiguar, bem como, observar sua transposição para o discurso literário. Em seguida os textos dos autores são estudados. Concluindo, então, com uma reflexão mais geral a partir das análises específicas. São relevantes para a pesquisa as proposições de Análise do Discurso fundamentadas no pensamento de Mikhail Bakhtin.

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RESUMEN

El cangaço es un hecho social brasileño que ocurrió hasta la segunda mitad del siglo XX. Su construcción imagética se relaciona socialmente a determinada región del territorio nacional se consubstanciaron las condiciones económicas, sociales y naturales para su surgimiento. En la presente investigación se estudiaron obras de Franklin Távora, Rodolfo Teófilo y Leandro Gomes de Barros, cuyos personajes principales de las narrativas son cangaceiros, a saber, respectivamente: Cabeleira, Jesuíno Brilhante y António Silvino. Se pretende pensar qué elementos son relevantes para la representación del cangaço en estos textos: los valores sociales involucrados en la construcción de estos personajes por estos autores; mecanismos estéticos utilizados para esta construcción; relaciones entre las políticas locales y nacionales, ideologías estéticas y políticas, posición social del enunciador y de los enunciatarios, medios de circulación de los textos; aspectos culturales impresos en las obras releídos a partir de la subjetividad de los autores. La elección de estos autores se justifica por la importancia seminal de sus escritos, contemporáneos al canganço en cuanto hecho social y, también, por la variedad de las circunstancias de enunciación y recepción de las obras, permitiendo dibujar un cuadro general del asunto. Para esa tarea, en un primer momento se presentan los valores culturales atribuidos ampliamente al cangaço, cuya presencia en las obras estudiadas se busca averiguar. Se pretende, además, observar la transposición de estos valores para el discurso literario. A continuación, se estudian los textos de los autores. Concluyendo, por fin, con un reflexión más general a partir de las análisis específicas. Son relevantes para la investigación las proposiciones de Análisis del Discurso fundamentadas en el pensamiento de Mikhail Bakhtin.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO

OBJETO DE ESTUDO E ALGUMAS PROBLEMATIZAÇÕES; P.1 OBJETO E DELIMITAÇÃO DO CORPUS; P.15

OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA, P.16

1 O CABELEIRA DE FRANKLIN TÁVORA, p.18 1.1OCABELEIRA E O CANCIONEIRO POPULAR, P.20 1.2JOSÉ GOMES ENTRE VÍCIOS E VIRTUDES, P.31 1.3O ESCUDO ÉTICO, P.42

1.4AUSÊNCIA DO PODER PÚBLICO, P.47

1.5O CÂNONE LITERÁRIO NÃO É UMA CATEDRAL, P.55

2 OS BRILHANTES DE RODOLFO TEÓFILO, p. 67

2.1OS BRILHANTES E A IDEOLOGIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS, P.79 2.2JESUÍNO BRILHANTE: ENTRE DOENÇA E VIRTUDES, P 85

2.3O ESCUDO ÉTICO DE JESUÍNO BRILHANTE, P.90 2.4A VALENTIA E A ORDEM PÚBLICA, P.95

2.5DESERTAS CATEDRAIS: ROMANCES SEM LEITORES FAZEM LITERATURA?, P.98

3 FOLHETOS DE LEANDRO GOMES DE BARROS, p.104

3.1ANTÔNIO SILVINO NA OBRA DE LEANDRO GOMES DE BARROS, P.124

3.1.1ANTÔNIO SILVINO CONTA SUAS FAÇANHAS: O NARRADOR PERSONAGEM, P.132 3.1.1.1 A formação do cangaceiro e suas contingências sociais, p. 132

3.1.1.2 A comicidade das histórias narradas por Antônio Silvino, p. 141 3.1.1.3 Religiosidade sem igreja, p. 145

3.1.1.4 O governador do sertão propõe acordo, p. 149

3.1.2ANTÔNIO SILVINO É PERSONAGEM: NARRADOR OBSERVADOR, P.151

3.1.2.1 Antônio Silvino em reclusão, p. 153 3.1.2.2 Duas formas para uma história, p. 164

3.1.2.3 A valentia vista pelo narrador observador, p 172

3.2 MUITOS FIÉIS SEM CATEDRAL: MUITOS LEITORES SEM PRIVILÉGIO SOCIAL FAZEM LITERATURA?P.184

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CONCLUSÃO, p. 188

AS ORDENS DOS DISCURSOS E OS DISCURSOS DENTRO DAS ORDENS, P.188 OS LUGARES DOS DISCURSOS E OS DISCURSOS DOS LUGARES, P.196 UM PROBLEMA DE LITERATURA E LITERATURA COMO UM PROBLEMA, P.207

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INTRODUÇÃO

OBJETO DE ESTUDO E ALGUMAS PROBLEMATIZAÇÕES;

O heroísmo tem nos sertões, para todo sempre perdidas, tragédias espantosas. (Euclides da Cunha) Desde o fim dos últimos grupos de cangaceiros já se passaram mais de seis décadas. O assunto, no entanto, permanece instigando, fomentando discussões, histórias fabulosas e reais, aguçando a imaginação do povo brasileiro.

O cangaço é um fato social surgido, desenvolvido e extinto na região brasileira que hoje designamos como Nordeste. Segundo estudiosos, somente nesse lugar reuniam-se as condições humanas, geofísicas e econômico-sociais necessárias para sua ascensão. O homem sertanejo foi gestado sob severas adversidades: a força física e a violência generalizada foram fatores determinantes para os primeiros tempos de colonização no sertão. Seus empregos eram necessários à sobrevivência daquele grupo humano que se aventurava aos limites do semiárido, achacado por indígenas e animais bravios. O domínio humano sobre as adversidades dos primeiros momentos não extinguiu, no entanto, a violência da vida do homem sertanejo. Ao contrário, este a internalizou:

Com o controle posterior desses fatores adversos, ela vai sendo liberada da canalização primitiva que se continha na relação colonizador-indígena ou colonizador-animal selvagem, para situar-se já agora numa relação em que o colonizador antagoniza o próprio colonizador. (MELLO, 2011, p.64)

O longo processo cruento de luta do colonizador contra os fatores adversos, tanto humanos quanto naturais, marca definitivamente a formação de seus indivíduos, é constituinte de uma determinada identidade sertaneja. Assim, quanto mais cruento e demorado for esse processo, mais duradouros se mostrarão, via de regra, os hábitos violentos nas fases posteriores, mesmo que sejam hábitos não mais condicionados pela realidade imediata.

A letárgica ausência do Estado brasileiro é outro fator determinante neste sentido de constituição do homem e da sociedade sertaneja. A personificação

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de funções essenciais do Estado pelas elites políticas e econômicas locais fez com que fossem exercidas de modo privado ações que modernamente pertencem à esfera do público, em especial a punição do ato criminoso, que se apresentou durante muito tempo no sertão brasileiro marcado pela prática da vingança privada. O exercício do direito pelas próprias mãos foi gerador de brigas sanguinolentas entre famílias. Esses embates privados perpassaram gerações e contribuíram bastante para a generalização da violência e da morte nesta região do país.

O ciclo do gado e a conquista das regiões do sertão são caracterizados por um caldo cultural no qual a violência e a força física são apanágios para a sobrevivência face aos fatores adversos naturais e humanos. Tendo em vista as características deste contexto, é fácil compreender o destaque social e a reverência desfrutada neste universo pela figura do valentão:

Aquele homem que enganchava a granadeira e, viajando léguas, ia desafrontar um amigo, parente ou mesmo um estranho que tivesse sofrido algum constrangimento ou humilhação. Para tanto sendo suficiente que o desvalido lhe invocasse o nome, pondo-se ao amparo das suas armas justiceiras. (MELLO, 2011, p. 65)

Em folheto do ano de 2009, o poeta e artista plástico Jorge Victtor nos oferece descrição também relevante:

O valentão corre feiras E festas amedrontando

Qualquer barulho ergue o queixo E vai logo aproximando

Com os dois punhos cerrados De raiva vem espumando. Os sertões pernambucanos Contam histórias famosas de Ângelo Umbuzeiro

Façanhas prodigiosas Cripriano de Queiroz E o Adolfo Velho Rosas. (VICTTOR, 2009, p.5-6)

Nesse folheto de Victtor, valentão é representado como um cavaleiro errante que “corre feiras e festas” buscando confusões para tomar parte. No exercício desta atividade, permanecem vivos na memória coletiva do povo

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alguns nomes que ganharam fama devido a suas façanhas pelos sertões de Pernambuco.

No espetáculo popular de Mamulengos, gênero de teatro popular no qual são utilizados bonecos ou fantoches, é muito comum a figura do valentão como uma de suas personagens centrais. Nessas apresentações, feitas com muito improviso na maioria das vezes, ocorrem regularmente cenas de brigas nas quais o valentão faz valer sua fama e agride aqueles que se apresentam como adversários ou obstáculos em seu caminho. O teatrólogo e estudioso popular Hermilo Borba Filho transcreve em seu livro Espetáculos populares do Nordeste a apresentação do mamulengueiro Otacílio Pereira. O referido espetáculo tem enredo bem simples. A personagem principal é o valentão negro Benedito, e toda ação se passa em um baile: outras personagens tentam fazer com que o ritmo musical que a banda toca mude, mas Benedito se opõe, acabando tudo em pancadaria. É uma das características do espetáculo popular nordestino do Mamulengo essa celebração do valentão e da sua valentia. Ilustro com um trecho do espetáculo esse destaque da valentia na obra de arte popular:

Porrote – Me diga uma coisa, o negro Benedito esteve por aqui? Tocador – Teve.

Porrote – Teve por aqui? Dizem que ele é um negro muito brabo. Tocador – Valentão que só o diabo! E você, quem é?

(BORBA FILHO, 2007, p. 106)

A representação do valentão e da valentia como um valor social relevante para o sertanejo não é registrada apenas na arte popular. Tendo chegado ao Brasil aproximadamente em 1809, Henry Koster foi senhor de engenho e acompanhou de perto a constituição dessas dinâmicas sociais. Em seu livro de memórias Viagens ao Nordeste do Brasil [1816]1, fez registro de suas

impressões:

Esses valentões eram homens de todos os níveis, cujo serviço consistia em procurar oportunidade para lutar. Frequentavam as festas e feiras e seu objetivo era tornarem-se tão célebres pela coragem que bastasse saber de sua presença para amedrontar as pessoas que intentassem promover brigas. Consideravam-se com o privilégio de vingar as injúrias próprias e dos amigos, não

1 Apresentarei entre colchetes o ano de publicação original de algumas obras por haver interesse no

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permitindo que houvesse barulho em que não fossem interessados. (KOSTER,1978, p. 254)

A imagem do valentão vista pelo comerciante português do século XIX é quase quixotesca. É possível perceber que a violência neste caso não se escoa na banalidade, mas é sustentada por determinada fundamentação ética: além da simples possibilidade de estar interessado em todo barulho que surja, essa propensão à violência liga-se à necessidade de vingança privada, daí a grande reverência social ao tipo neste contexto histórico específico em que o Estado de direito está ausente.

Busco confirmar a minha análise com os seguintes versos do século XIX de Manoel Clementino Leite:

Desde o princípio do mundo Que há homem valentão Um Golias, um Davi,

Um Carlos Magno, um Roldão, Um Oliveira, um Jaob,

Um Josué, um Sansão.

(LEITE, apud MELLO, 2011, p. 67)

Ao emparelhar o valentão a figuras bíblicas importantes como Davi ou Sansão, o poeta situa o valor social desse tipo humano sertanejo na elevada hierarquia mítica das personagens da tradição cristã. Há uma elevação da figura, que já era perceptível na leitura do trecho de Koster citado anteriormente. A valentia é um valor de grande importância na constituição da sociedade sertaneja, está relacionada à possibilidade de vingança de afrontas sofridas e reestruturação de determinada ordem em uma sociedade da qual o Estado apresentava-se completamente ausente. Da caneta do poeta Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), tomo e transcrevo a seguinte passagem acerca da situação de violência e ausência do Estado de Direito:

Estando no Norte em Vigência a lei do mais forte Quem dessa forma humilhasse O valente homem do Norte Com sua mão assinava Sua sentença de morte (SILVA, [s/d], p.6)

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O que os versos populares representam com arte, Frederico Pernambucano de Mello analisa a partir da sociologia:

A violência como elemento presente na caracterização do ciclo do gado nem sempre assume aspecto de desvalor. Frequentemente vamos encontra-la legitimada pela concordância com os ditames da moral sertaneja, chegando a muitos casos a merecer louvores entusiásticos na gesta do próprio ciclo. É o que se passa, por exemplo, com a violência empregada na satisfação de um ideal de vingança, em que o gesto de desafronta é visto como um direito e até mesmo um dever do afrontado, de sua família e de amigos mais chegados. (MELLO, 2011, p. 63)

Em um contexto social no qual a imposição das próprias razões é a medida coativa mais eficiente, aquele que não tem a capacidade de se vingar da afronta sofrida acaba sendo “moralmente morto”. Cito novamente o texto de Jorge Victtor:

No sertão quem não se vinga Está morto moralmente E o sangue nordestino Sendo muito efervescente Faz justiça com as mãos Na forma de chumbo quente. (VICTTOR, 2009, p. 3)

A vingança, endêmica e cíclica, está diretamente atrelada justamente à ausência continuada por muito tempo do Estado de Direito e ao valor social dado à valentia. Daí a elevação social da figura do valentão, aquele que tem condições de efetivamente “dar cabo aos desafetos”.

A partir do protótipo do valentão, outros tipos sociais mais complexos surgiram condicionados e tensionados pelos fatores sociais e econômicos desenvolvidos no Nordeste brasileiro. Considero que seja possível classificá-los como: capanga, jagunço e cangaceiro. A seguir, farei uma pequena explanação da diferença entre esses tipos. Interessa-me demonstrar que o cangaço não é uma dinâmica social isolada e pertence a determinado sistema social.

A atividade caracterizadora dos capangas é a segurança pessoal dos senhores da aristocracia rural. A função de guarda-costas fez com que essa

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figura pertencesse ao círculo de relações próximas à família dos senhores: essa estreiteza criada pelo vínculo de confiança, fez com que o guarda-costas muitas vezes desfrutasse de uma liberdade tal que sua presença dentro da casa do senhor fosse percebida com naturalidade pela sociedade sertaneja, a ponto de sua personalidade confundir-se com a figura imponente do patrão, conforme percebemos nas linhas das excelentes crônicas de Mário Sette, escritas no início do século XX:

Foram muito do Recife de ontem. Sê-lo-ão ainda do de hoje, mas sem relevo e a importância, quiçá o prestígio, de dantes. Uma classe. E respeitada, garantida, difícil de acabar, mercê dos préstimos que possuía, máxime no capítulo da política. Os chefões da época os amparavam. Eram os “capangas”. Quem não se lembra da aura de fama dos capangas? Apontavam-se o do doutor fulano, o do coronel beltrano, o do major cicrano. Bolir um deles seria cutucar com os esteios do mundo velho. Viria tudo abaixo. Uma facada sorrateira, num virar de beco, era o menos que acontecia. (SETTE, 1938, p.97)

Os versos do cordelista em atividade Jorge Victtor dão conta também da caracterização do capanga:

O cabra como o capanga Para o chefe ou patrão São seus anjos da guarda Forrados de munição

Como sombra acompanhando Seus passos com precisão. (VICTTOR, 2009, p. 06)

Há a descrição de muitos capangas nas páginas da literatura brasileira, especialmente naquela cujos autores são caracterizados como “geração de 1930”. Dentre outras, ilustro o que estou apresentando com uma passagem de São Bernardo [1934], de autoria do alagoano Graciliano Ramos:

Boa alma, Casimiro Lopes. Nunca vi ninguém mais simples. Estou convencido de que não guarda lembrança do mal que pratica. Toda a gente o julga uma fera. Exagero. A ferocidade aparece nele raramente. Não compreende nada, exprime-se mal e é crédulo como um selvagem. (RAMOS, 1985, p. 136)

Nessa passagem, o dono de terras Paulo Honório descreve seu capanga Casimiro Lopes. A ferocidade, a simplicidade e a fidelidade ao chefe são

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características que fazem de Casimiro Lopes o capanga ideal, como um bon sauvage sertanejo arredado aos domínios civilizatórios do seu chefe, a fazenda São Bernardo. E, apagado sob a sombra do padrão, confunde-se com ele, como um duplo seu.

Se o capanga é caracterizado pelo laço estreito com os senhores da aristocracia rural, em suas funções de guarda-costas e braço armado, por outro lado o jagunço exerce essa segunda dimensão apenas. O jagunço é caracterizado por realizar seus trabalhos violentos por empreitada paga. Tomo de empréstimo as linhas de Jorge Victtor:

Jagunço faz o serviço

Sopra as mãos limpando o mal Põe a pistola no coldre

E de forma natural Apresenta-se pra outro Trabalho profissional. (VICTTOR, 2009, p. 06)

Como podemos ver, se o tipo do capanga é caracterizado por uma natureza quase de servidão, o jagunço tem a marca do capitalismo. O jagunço e seu contratante celebravam acordo em que, pela morte de algum sujeito ou qualquer outra ação de violência, pagava-se determinada quantia estipulada em dinheiro, terras, joias ou mercadorias. Cito a esclarecedora definição de Frederico Pernambucano de Mello:

A diferença que se pode estabelecer entre o cabra e o jagunço é que a atuação criminal do primeiro segue a sorte do chefe. Se este está em paz, o cabra cuida de botar uma roça ou se entrega a outra qualquer tarefa pacífica, embora se conserve sempre em alerta, com o potencial guerreiro em estado de latência. Com o jagunço, passa-se diferente. Ele é um profissional que escolheu o ofício das armas como meio de vida e não deseja fazer outra coisa. Encerrada a questão em que esteve envolvido, despede-se do patrão – normalmente um fazendeiro ou chefe político – e vai oferecer as armas a quem estiver em litígio (MELLO, 2011, p. 73-74)

A ligação personalíssima entre seu chefe e o capanga não é observada na natureza do jagunço. Muitas vezes o capanga é morador das terras daquele que protege, seu compadre, amigo ou parente. Não estando em luta, os capangas podem dedicar-se à produção agrícola ou ao trato do gado. O jagunço,

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de outra forma, tem a vida errante em direção às brigas, estando ao lado daquele que lhe oferecer vantagens pecuniárias. É o destino do jagunço Antônio das Mortes, interpretado por Marício Valle, que acompanhamos em seu último serviço em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), filme de Glauber Rocha.

A organização capitalista da atividade de jagunços foi tamanha nos sertões nordestinos que Antônio Clementino de Carvalho, conhecido como Quelé de Santo André, fazendeiro do município de Belmonte, em Pernambuco, constituiu um grande contingente de jagunços a seu comando, fornecendo mãos guerreiras para as disputas de regiões próximas, em um sistema verdadeiramente empresarial.

Tendo analisado esses dois tipos sociais que constituem os braços armados da violência sertaneja à disposição direta dos senhores de terras e lideranças políticas locais, passo a analisar o cangaço e seus homens, os cangaceiros.

Heróis ou vilões? São categorias ideologicamente marcadas que perpassam as discussões sobre o cangaço, sejam elas travadas em esquinas, bares, mesas acadêmicas ou páginas de literatura. Para entendermos o cangaço, permanecem relevantes as proposições de Rui Facó:

Porque não é só no monopólio da propriedade fundiária que reside a matriz do cangaço; é em todo o atraso econômico, no isolamento do meio rural, no imobilismo social, na ausência de iniciativas outras que não fossem as do latifúndio – e as deste eram quase nenhuma. (FACÓ, 2011, p. 53)

Para que tivesse ocorrido o cangaço, era necessário o protótipo do homem valente sertanejo, forjado a sol e a lutas contra os fatores naturais adversos, indígenas e de outros sertanejos. No entanto, o engajamento no cangaço, sua fama e expansão, só se tornaram possíveis em um contexto social e econômico em que outras opções não estavam disponíveis. Assim, o grande atraso econômico da região, suas dinâmicas sociais arcaicas, as adversidades naturais e humanas e a ausência de outros modelos de vida possíveis são o motor que dá partida ao processo de construção do fato social do cangaço. É certo que não foram apenas os despossuídos que ingressaram nas fileiras do cangaço. Consta, por exemplo, que houvesse filhos de famílias remediadas no

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cangaço. No entanto, não me refiro aos casos particulares, mas à estrutura social necessária para o surgimento do fenômeno social.

Muitos estudiosos veem a gênese operacional do cangaço na história de Jesuíno Brilhante. Nascido no ano de 1844 em Patu, no Rio Grande do Norte, Jesuíno Alves de Mello Calado teve uma vida curta. Durante seus trinta e cinco anos de existência, esteve envolvido em brigas contra pessoas de relevância econômica e política. Entre seus biógrafos, estudiosos do cangaço, artistas populares e de Literatura socialmente prestigiada há unanimidade em descrever e representar esse cangaceiro como homem de postura ética e rigidez moral, que impunha a seus comandados um verdadeiro código de cavalheirismo. Mello transcreve a seguinte fala de Jesuíno Brilhante: “Quem entra para este grupo não toca no alheio e aprende a respeitar a casa das famílias honestas.” (MELLO, 2011, p.163) Em versos, Medeiros Braga canta a fama de Brilhante:

Jesuíno era um homem De muita dignidade,

Nem mesmo contra o inimigo Fazia perversidade,

Ai de quem desrespeitasse A ética, moralidade.

Voltado para os mais fracos, Lutou tanto de escudeiro Que até foi considerado Por seus atos de guerreiro Como sendo Robin Hood Do nordeste brasileiro.

(MEDEIROS BRAGA, 2011, p. 2)

É bastante comum essa imagem constituída de Jesuíno Brilhante correspondendo a um herói social, que tira dos mais abastados em favor dos pobres. Medeiros Braga descreve Jesuíno em paralelo à figura de Robin Hood, a imagem resultante é a de um herói nacional e sertanejo, com lastro nas questões sociais. Em Fogo morto [1943], de José Lins do Rego, as ações do chefe de cangaço Antônio Silvino estão ambiguamente impregnadas dessa imagem heroica e de justiça social do cangaço:

O povo estava à porta da loja, esperando os acontecimentos. As luzes do sobrado do prefeito enchiam a casa, como em noite de festa. Depois, o capitão Antônio Silvino baixou para o comércio,

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abriu as portas largas, e mandou que todos entrassem. Ia dar tudo que era do comendador aos pobres. Foi uma festa. (REGO, 1991, p. 183)

Fatos como esse teriam constituído o imaginário da população, conforme podemos perceber nas falas e ações de Mestre José Amaro em relação ao grupo de Antônio Silvino, no citado trecho da obra de Lins do Rego. Em uma população oprimida socialmente por uma classe que explorava seu trabalho árduo em troca de pouco além da subsistência, para a qual a valentia era um valor social superior à manutenção de determinada ordem legalista, as ações dos cangaceiros de enfrentamento dos poderosos e distribuição das riquezas guardadas eram suficientes para criar uma empatia popular com esses homens guerreiros. É importante atentar que os grupos não carregavam bandeira ideológica nenhuma e essas ações não representavam diretamente uma postura de embate formal entre classes sociais, sendo proposições neste sentido interpretações feitas posteriormente por alguns estudiosos das práxis do cangaço.

Em relação a Jesuíno Brilhante, há outro elemento em sua biografia que, para a população sertaneja, era de extremo valor: sua ação é motivada pela vingança a uma afronta sofrida por sua família. São versos de Medeiros Braga:

Seu inferno teve início No dia em que seu irmão Foi surrado em plena rua De Patu, alto sertão, Que já vinha na vigília De um membro da família Conhecida por Limão. Isso para uma família Se modesta ou importante É um fato detestável Vergonhoso e humilhante E bem mais, principalmente, Para a época e um parente Da família dos Brilhante. Matar um cachorro alheio Ou dar na cara de alguém É descumprir uma lei Dos sertanejos de bem; É por em risco uma vida, Pois, a vingança sumida Pode surgir sobre alguém.

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(MEDEIROS BRAGA, 2011, p. 07)

Medeiros Braga dá comprimento à medida que Câmara Cascudo já havia registrado em Vaqueiros e cantadores [1937] quando escreveu:

Para que a valentia justifique ainda melhora aura popular na poética é preciso a existência do fator moral. Todos os cangaceiros são dados inicialmente como vitimas da injustiça. Seus pais foram mortos e a justiça não puniu os responsáveis. A não-existência desse elemento arreda da popularidade o nome do valente. Seria um criminoso sem simpatia. (CASCUDO, 1984, p. 161)

A partir da percepção de que a vingança contra uma afronta sofrida justificava, naquele contexto social, que o ofendido investisse suas ações nas fileiras do cangaço, Frederico Pernambucano de Mello constrói a teoria do "escudo ético". Segundo percebeu Mello, ter sofrido alguma afronta ou simplesmente alegar ter sofrido uma afronta seria capaz, nesta sociedade sertaneja, de constituir uma blindagem ética para o cangaceiro, isentando-o de culpabilidade em suas ações, visto que essas seriam justificadas pela perseguida vingança. O caso do cangaceiro Lampião é exemplar para a compreensão da importância do escudo ético. Cito trecho do grande cronista das coisas do sertão, Luis Cristóvão dos Santos, em seu Brasil de chapéu de couro [1956]:

Ainda criança, ouvi nos sertões, as histórias que situavam Lampião como um injustiçado, naqueles mundos onde a lei e a civilização ainda não haviam chegado. Contavam, por exemplo, que assassinaram o velho José Ferreira, pai de Lampião, no município alagoano de Mata Grande. E que o filho procurara o juiz e a polícia, pedindo a punição do culpado.

O crime, porém, ficou impune. Então, Virgulino pendurou o buranhém com que tangia a burrama, e, em companhia dos parentes, deu de garra a um mosquetão, ingressado na vida do cangaço, ao lado do famoso bandoleiro Sebastião Pereira, para vingar a morte do pai e fazer a justiça que lhe negaram.

Não sei até onde vai a verdade e começa a fantasia, naquelas histórias que os meus ouvidos meninos escutaram, na infância passada na vila de Custódia. (SANTOS, 1958, p. 36-37. Grifos no original)

A partir das histórias que circulavam pelas vilas e cidades do sertão, constituiu-se o escudo ético de Lampião, que, segundo lemos no trecho da

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crônica, teria entrado para o cangaço por necessitar vingar a morte de seu pai. No entanto, apesar de ter constituído grupo muito bem armado e com mais de uma centena de homens, não consta que Lampião tenha levado a cabo sua vingança. Essa aparente contradição é solucionada pela teoria de Frederico Pernambucano de Mello, que nos alerta para o fato de que a vingança extinguiria consigo o escudo ético de Lampião, desprotegendo-o das possíveis reprimendas éticas da sociedade sertaneja.

A ideia sobre esse tipo de escudo, que justificaria a ação dos cangaceiros, é uma grande contribuição da Frederico Pernambucano de Mello aos estudos sobre o cangaço. A influência desse instrumento de exclusão de culpabilidade é tão penetrante nos discursos sociais no Nordeste brasileiro que Ariano Suassuna, em seu Auto da Compadecida [1955/1956], traz esse argumento para a boca do próprio Manuel na cena do julgamento divino:

– Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você não entende nada dos planos de Deus. Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos. Podem ir para ali. Severino e o Cangaceiro abraçam os companheiros e saem para o céu. (SUASSUNA, 1972, p. 180)

Nesta cena, após a intervenção misericordiosa de nossa Senhora, a Compadecida, Manuel absolve o chefe do grupo e um dos cangaceiros. A alegação suficiente para isso é de que ambos teriam enlouquecido após a morte de suas famílias pela polícia. Esse argumento está de pleno acordo com a teoria do escudo ético: a morte dos pais pela polícia garante o isolamento ético necessário para que os crimes cometidos não mereçam a punição do envio das suas almas ao inferno, ou seja, eles não podem ser culpados por suas ações. E essa argumentação é desenvolvida por uma das figuras mais elevadas da hierarquia católica – nossa Senhora –, o que demonstra a elevação deste mesmo discurso dentro do imaginário coletivo popular.

Nem sempre, no entanto, a representação estética dos cangaceiros obedece à matriz elevada apresentada até aqui. Percebemos, em muitas obras, que a ação beligerante dos cangaceiros é marcada pelo signo da violência pura, banal e imoral. Em A chegada de Lampião ao inferno, um clássico da poesia

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popular de José Pacheco, essa outra perspectiva em relação ao cangaço fica bastante clara. Cito um trecho:

O vigia foi e disse A Satanás, no salão: – Saiba vossa senhoria Que aí chegou Lampião, Dizendo que quer entrar E eu vim lhe perguntar Se dou ingresso ou não? – Não senhor, Satanás disse, Vá dizer que vá embora Só me chega gente ruim? Eu ando muito caipora Estou até com vontade De botar mais da metade Dos que têm aqui pra fora! Lampião é um bandido Ladrão da honestidade Só vem desmoralizar A minha propriedade

Mesmo eu não vou procurar Sarna para me coçar

Sem haver necessidade. (PACHECO, 2008, p. 03-04)

O texto citado é bastante relevante e pode ser contraposto à passagem transcrita de O auto da Compadecida. Se na obra de Ariano Suassuna era a própria Maria quem argumentava pela absolvição dos cangaceiros, no folheto de José Pacheco é Satanás em pessoa quem apresenta objeções à chegada de Lampião ao inferno. Nessa comparação, percebemos um rebaixamento da imagem do cangaceiro: sequer o inferno apresenta-se como local adequado para sua chegada. Ainda no trecho citado, vemos a descrição desabonadora feita também por Satanás da moral do cangaceiro: “ladrão da honestidade”. Segundo este, a presença de Lampião seria desmoralizadora do inferno, ou seja, rebaixaria o que é considerado, na hierarquia católica, o mais rebaixado dos espaços de transcendência espiritual.

Há outro famoso texto de José Pacheco intitulado O grande debate de Lampião e São Pedro. Utilizarei a seguinte passagem da obra para acrescentar elementos à reflexão que faço:

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– Você não entra, atrevido! São Pedro lhe disse assim: – Ingresso a quem é ruim Nesta porta é proibido Não sabes que sois bandido Roubador de vida humana Alma ferina e tirana

Coração cruel e perverso!! Como queres um ingresso Nesta mansão soberana [?] – É certo que fui bandido Perverso, estrompa, voraz Porém, quem foi não é mais É mesmo que não ter sido Mesmo eu sou garantido Por um provérbio que tenho Escrito sobre um desenho Por pessoas elevadas

O qual diz – águas passadas Não dão volta a meu engenho. (PACHECO, 2005, p. 06)

Nesta outra obra de Pacheco, a tentativa de entrada de Lampião é no céu. Em diálogo com o cangaceiro, São Pedro o informa de que aquele não é o seu local. Para justificar essa posição, aponta características do cangaceiro: “Roubador de vida humana”, “Alma ferina e tirana” e “Coração cruel e perverso”. Em resposta à objeção do Santo, é Lampião quem se admite “bandido perverso, estrompa, voraz.” A aparente sinceridade na autodescrição de Lampião esvai-se como valor ético positivo, quando percebemos que vem atrelada à astúcia argumentativa para impor seu desejo à ordem do santo.

Em ambos os folhetos de José Pacheco, cada um em um dos polos espaciais da hierarquia mítica católica, o cangaceiro é pessoa não querida. São afirmados os atos de violência e uma personalidade ligada à agressão e à perversidade, além de uma perceptível lábia ladina na argumentação retórica.

A descrição do cangaceiro nesses dois textos de José Pacheco está distante daquela imagem de cavaleiro da ética, da figura quixotesca, e caminha em sentido ao ladrão ordinário, ao homem delinquente de Césare Lombroso.

Enquanto objeto do discurso artístico, o cangaço chega às letras dos versos populares ou linhas de romance pintado com as tintas de diversas cores. Para alguns, os cangaceiros são tingidos com o verde de cavaleiros da

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esperança. Na obra de outros escritores, os cabras e seus líderes são representados em sanguinário vermelho.

OBJETO E DELIMITAÇÃO DO CORPUS

Conforme assinalado até aqui, o meu objeto de interesse são as representações do cangaço em Literatura brasileira. Uma pequena análise nas obras mais conhecidas irá demonstrar a elevada quantidade de textos possíveis para a pesquisa.

Ao relacionar os romances, em um primeiro momento e sem aprofundar as fontes bibliográficas, poderia citar: O Cabeleira de Franklin Távora; Os Brilhantes de Rodolfo Teófilo; O auto da Compadecida e O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta de Ariano Suassuna; todo o ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego, além de Cangaceiros; as obras de Francisco Dantas. A lista é apenas ilustrativa e serve para demonstrar a necessidade de um recorte do objeto de pesquisa.

Em relação à Literatura de folhetos, a lista é ainda mais ampla. As duas maiores bibliotecas do gênero Brasil, segundo tenho conhecimento, pertencem à Casa de Rui Barbosa e à Academia Brasileira de Literatura de Cordel. A estimativa de acervo da ABLC é de aproximadamente trezentas obras em que o cangaço é tratado, segundo informações informais de Gonçalo Ferreira da Silva. Havendo tamanha diversidade de obras, o estudo recorta as obras e autores que inicialmente trataram do tema. Espero que um dos valores desse trabalho seja debruçar-se sobre a gênese constitutiva do discurso e do imaginário popular e literário sobre o cangaceiro na sociedade brasileira. A escolha é feita tendo em vista a possibilidade de trazer para discussão textos importantes, como Os Brilhantes (1895) de Rodolfo Teófilo

Em relação aos folhetos, a análise recai sobre os textos daquele que é conhecido como pai do gênero: Leandro Gomes de Barros (1865- 1918). Ao reler as influências literárias e culturais europeias e compor, a partir dessas matrizes, um gênero literário renovado e nacional, o autor paraibano não criou apenas uma empresa: fez escola. Razão pela qual conhecer Leandro Gomes de Barros é praticamente uma obrigação para todos aqueles que se aventurem na produção e estudo dos folhetos. Seus versos, ditos e inúmeras vezes repetidos nas feiras

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em diversas regiões do Brasil, constituem-se como elementos imprescindíveis na formação cultural nordestina e do país. Foi, segundo Câmara Cascudo, o poeta popular mais lido: “primeiro sem segundo”, conforme conhecido em seu tempo. Carlos Drummond de Andrade, em artigo publicado em coluna do Jornal do Brasil em 9 de setembro de 1976, afirmou ser Leandro o “rei da poesia do sertão e do Brasil” (ANDRADE apud VIANNA, 2014, p.114. Fac-símile). A afirmação do poeta mineiro permite que vislumbremos o alcance da obra de Leandro: constitui elemento cultural marcante da cultura popular nordestina, e alcança, também, as camadas de prestígio cultural dos grandes centros urbanos.

Qualquer trabalho que pretenda pensar as representações estéticas do cangaço não pode deixar de lado o pioneiro: Franklin Távora, autor de O Cabeleira [1876]. Embora já haja muitas análises sobre a referida obra, é imprescindível a presença desse texto em um estudo que busca alcançar a gênese estética das representações sobre o cangaço.

Do ponto de vista social, acadêmico e teórico há relevância no estudo. Por um lado, a proposta resgata e sistematiza obras cuja pouca reverberação nos corredores universitários acabam gerado pouca reflexão sobre seus discursos e a variedade estética nacional: exemplos disso são o poeta popular Leandro Gomes de Barros e o romancista Rodolfo Teófilo. Além disso, o próprio cangaço demanda mais debate científico do que aquele que vem sendo dispensado nacionalmente, dada a sua importância para a constituição do imaginário e do modo de ser do sertanejo e do brasileiro em geral.

OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA

O objetivo geral do trabalho é perceber como os cangaceiros são representados nos textos literários de gêneros socialmente prestigiados e na Literatura de folhetos, num recorte temporal que vai desde 1876 (publicação de O Cabeleira) até 1918 (falecimento de Leandro Gomes de Barros).

A estrutura do trabalho está dividida em capítulos a partir das leituras das obras. Assim, a unidade estrutural da tese é mantida pelo repetido empenho analítico: estudo da obra, reflexões sobre as influências ideológicas que marcam a composição estética, levando também em conta a valentia como valor social nordestino e a ausência do Estado e, também, a ideia do escudo ético. Com isso,

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busca-se avançar temporalmente na configuração das representações literárias, mantendo uma mesma perspectiva interpretativa a partir dos recortes analíticos. Desta forma somam-se os estudos para ensejar um olhar que se quer sistêmico, procurando entender a composição do discurso literário sobre o cangaceiro, além dos discursos que são feitos sobre essas obras e sobre o cangaço em si a partir desses textos.

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1 O CABELEIRA DE FRANKLIN TÁVORA

O amor é como a flor Que no coração espinha O cangaço uma desgraça Como uma erva daninha Nesta terra caatingueira Vou falar de Cabeleira, O amor de Luisinha.

(trecho do folheto O bandido Cabeleira, o amor de Luisinha de Zé Antônio, texto vencedor do Prêmio Nacional de Literatura de Cordel em 2006)

Composto em 1876, O Cabeleira é o quarto romance de Franklin Távora. Sua sétima obra literária, se forem consideradas as publicações de contos e textos dramáticos.

A obra é iniciada com um texto em forma epistolar assinado por “Franklin Távora”. É dirigida a um “meu amigo que mora em Genebra”. Ao final do romance há outra carta envolvendo os mesmos remetente e destinatário. A primeira carta serve como espécie de prefácio, explicando as razões daquela obra e o que pretende seu autor. A última faz as vezes de considerações finais, explicações de termos regionais, respostas adiantadas às pressupostas polemizações etc.

Segundo o autor, a obra pertence a um projeto mais amplo – nunca concretizado por Távora – de um ciclo de romances históricos:

Inicio esta série de composições literárias, para não dizer estudos históricos, com o Cabeleira, que pertence a Pernambuco, objeto de legítimo orgulho para ti, e de profunda admiração para todos os que têm a fortuna de conhecer essa refulgente estrela da constelação brasileira. Tais estudos, meu amigo, não se limitarão somente aos tipos notáveis e aos costumes da grande e gloriosa província, onde tiveste o berço. (TÁVORA, 2013, p.12. Grifos meus)

A natureza daquilo que Távora considera como “composições literárias que podem ser consideradas estudos históricos” será analisada mais à frente. Importa, nesse momento, apenas ressaltar que a intencionalidade histórica da obra está atrelada intimamente a determinado desejo de composição de uma literatura nacional:

No Cabeleira ofereço-te um tímido ensaio do romance histórico, segundo eu entendo este gênero da literatura. À crítica

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pernambucana, mais do que a outra qualquer, cabe dizer se o meu desejo não foi iludido; e a ela, seja qual for a sua sentença, curvarei a cabeça sem replicar.

As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra.

A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.

A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão.

Por infelicidade do Norte, porém, dentre os muitos filhos seus que figuram com grande brilho nas letras pátrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edifício literário dessa parte do império que, por sua natureza magnificente e primorosa, por sua história tão rica de feitos heroicos, por seus usos, tradições e poesia popular há de ter cedo ou tarde uma biblioteca especialmente sua. (TÁVORA, 2013, p 15)

A escolha do romance histórico – segundo concepção do gênero de Távora – está ligada à intencionalidade política de composição de uma Literatura nacional. Para o autor, embora tenha menos indivíduos voltados à composição do marco literário brasileiro do que o “Sul”, o “Norte” seria o local de excelência para a Literatura nacional, já que a região estaria menos alterada e influenciada pelas práticas culturais dos países estrangeiros.

Retomar o passado é, assim, retomar a fonte das características dessa nacionalidade brasileira.

A matéria da composição de Távora são os fatos e os personagens da história pernambucana, passados há mais de cem anos do ato de escritura. Tradicionalmente, uma pesquisa genealógica e em tomos de história seria a estratégia adequada para compor o substrato histórico das páginas do romance. No entanto, a personagem escolhida por Távora não pertence à elevação social das classes aristocráticas e dirigentes, mas à ralé. A perpetuação da figura histórica de Cabeleira está ligada a uma intrincada rede de valores sociais dessa região brasileira naquela época e ao cancioneiro popular.

É justamente a Literatura popular a fonte de Távora. Cito trecho da carta de encerramento da obra:

Por mais extraordinário que pareça — ele na realidade não se mede pelos moldes vulgares e conhecidos — o Cabeleira não é uma ficção, não é um sonho, existiu, e acabou como aqui se diz.

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Foi objeto de muitas trovas matutas e sertanejas, de episódios dramáticos e anedotas acinte engendradas para amedrontar a basófios importunos, e pôr em fugida fanfarrões arrogantes. Esta parte, por assim dizermos, cômica da vida do notabilíssimo bandido, será assunto de outro livro.

Se entrasse neste, desdiria da sua ideia capital, filosófica, social, e obrigar-me-ia a proporções que não imaginei para o meu trabalho por me parecerem excessivas nos que afinam pela craveira dele.

Não obstante terem sido numerosas as trovas de que foram assunto sua vida e morte, e haver eu metido as minhas melhores forças por conseguir todas elas, ou pelo menos tantas quantas bastassem para dar, com uma notícia mais larga do célebre valentão, uma amostra por onde pudesse ser devidamente aferida a musa popular do Norte há um século, não pude obter mais do que as que entremeei no texto (TÁVORA, 2013, p. 159).

Mais do que ilustrar sua obra com referências à cultura popular, Távora dialoga com o cancioneiro popular com o objetivo de recolher matéria para seu romance. Nesse sentido, podemos dizer que o autor é incrivelmente romanesco, ao explicitar esse método. Alencar, por exemplo, em lugar de dialogar com suas fontes populares, molda a seu interesse literário vários dados e informações, chegando a criar elementos culturais – como a introdução de significados em língua indígena que simplesmente não existiam. Na atitude de José de Alencar há uma valoração implícita entre sua obra literária e os elementos culturais apreendidos e remoldados. Por outro lado, Távora cuida da recolha das trovas orais e as copia dentro da obra sem alterá-las. Sua criação literária, assim, parte desses artefatos culturais autênticos na construção de seu romance.

1.1OCABELEIRA E O CANCIONEIRO POPULAR

Em sua obra intitulada Folk-lore pernambucano [1908], o estudioso de cultura popular Francisco Augusto Pereira da Costa faz registro de algumas quadras populares que tratam da figura histórica do Cabeleira. Além do registro literário, Pereira da Costa traz narrativas de fundo histórico e reflexões ricas para o começo do estudo a que me proponho.

Pereira da Costa registra que no “período do governo de José Cesar infestaram a capitania alguns grupos de malfeitores, levando o crime e o terror a toda parte” (PEREIRA DA COSTA, 1974, p. 161). José Gomes teria sido, segundo relato do autor pernambucano, um destes malfeitores, atuando sob a alcunha de Cabeleira.

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“Cabeleira era um mameluco, filho de um outro, chamado Joaquim Gomes, homem perverso coberto de crimes e maldições, e nasceu na freguesia da Glória de Goitá, que então pertencia ao termo de Santo Antão, hoje Vitória.” (idem).

É pertinente reparar que na construção social e histórica dos discursos que envolvem a trajetória de Cabeleira há sempre um determinado matiz negativo que envolve – e praticamente determina - a função de Joaquim Gomes na formação de Cabeleira. Pereira da Costa, embora conhecedor dos traquejos da pesquisa historiográfica que já se fazia no Brasil com certo fulgor na virada do século XIX para o XX, deixa determinadas projeções subjetivas perpassarem sua obra: afirmar que Joaquim Gomes era “perverso e coberto de crimes” é possível baseando-se em sua folha criminal. Mas em qual hipótese é possível afirmar tratar-se de homem “amaldiçoado”? Há nesse ponto uma valoração enorme e que marca a construção das narrativas que envolvem Cabeleira, tanto a do cancioneiro popular quanto aquela que Franklin Távora verterá para a forma de romance. Pereira da Costa é assertivo ao afirmar que “educado sob as vistas e exemplos de seu pai, Cabeleira seguiu suas pegadas e tornou-se tão mau e tão perverso quanto ele” (idem, p.161). É o que sugere a trova recolhida:

Meu pai me pediu Por sua bênção,

Que eu não fosse fraco, Fosse valentão.

(PEREIRA DA COSTA, 1974, p. 161)

Na apresentação do estudioso de folclore temos algumas pistas da construção social e da percepção geral sobre a formação de Cabeleira. Se, por um lado, era da natureza maléfica e “amaldiçoada” de Joaquim Gomes a vida de crimes, por outro, para José Gomes, trata-se mais de uma questão envolvida na criação. A valentia – valor social pungente para o Nordeste brasileiro dessa época e cujo estudo retomarei sistematicamente nessa tese – apresenta-se como elemento determinante na visão de mundo de Joaquim e na formação de José Gomes.

Baseando-se na trova popular, Pereira da Costa afirma que “ao contrário, porém, descobre-se que a mãe de Cabeleira era uma senhora virtuosa, inteiramente estranha aos crimes de seu marido e seu filho, e que a este sempre aconselhara seguir o caminho da honra e do dever.” (PEREIRA DA COSTA, 1974, p. 161-162). O registro das seguintes quadras faz-se presente no estudo do folclorista:

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Minha mãe pediu-me Por sua benção Que eu não matasse Menino pagão. Minha mãe pediu-me Por seu coração,

Que eu fosse bom homem Não matasse, não.

Minha mãe me deu Contas p’ra eu rezar; Meu pai deu-me faca Para eu matar. Eu matei um, Meu pai não gostou; Eu matei dois, Meu pai me ajudou.

(PEREIRA DA COSTA, 1974, p. 162)

O trecho é bastante revelador. Do ponto de vista formal, a flexão do verbo em primeira pessoa pode sugestionar uma simpatia entre o elemento popular e Cabeleira. Esse recurso aproxima o Cabeleira daquele que proclama por sua própria voz esses versos.

Destaca-se dessas quadras, também, uma oposição fundamental entre os vícios – consubstanciados na ação de Joaquim Gomes – e as virtudes suplicadas pela mãe de Cabeleira a seu filho. Essa oposição é estrutural não só no cancioneiro popular, mais informa também a composição de Franklin Távora.

É pertinente observar que nos trechos colhidos por Pereira da Costa há indícios utilizados por Franklin Távora para a composição de seu romance. Exemplo disso é a solicitação expressa da mãe de Cabeleira para que seu filho não matasse meninos pagãos. No capítulo II do romance de Franklin Távora encontramos os seguintes trechos selecionados:

Não acabava quando ei-la, que aponta movida por dois meninos que, tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado dela para brincarem como costumavam sempre que davam com alguma canoa sem dono. Pobres crianças!

[...]

Um tiro cobarde, cruel, assassino atroou os ares. Sangue copioso e quente gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do inocentinho, crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de

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Cabeleira veio dar-lhe novo testemunho, de sua perícia na arte de atirar contra seu semelhante. (TÁVORA, 2013, p. 34. Grifos meus) Franklin Távora faz remissão direta a determinados versos do cancioneiro popular em seu romance, mas uma análise acurada revela que o diálogo do romancista com os versos populares é muito mais profícuo. O autor pernambucano busca em muitos momentos localizar sua narrativa no tempo histórico, demonstrando grande desejo de compor de acordo com valores e parâmetros históricos restritos. No entanto, além do molde histórico da narrativa, os entrechos de grande tensão apresentam estreita relação com o cancioneiro e com toda a carga semântica construída pelo discurso artístico popular.

Há, nas representações da vida de Cabeleira e na construção discursiva feita em volta desse fato histórico, intrincadas percepções sociais e construções éticas do sertanejo nordestino que são fundamentais para a compreensão de alguns trechos do cancioneiro, que são quase paradoxais. Se anteriormente o registro em primeira pessoa poderia gerar determinada aproximação, vemos outra peça do cancioneiro na qual se afirma:

Fecha a porta, gente Cabeleira aí vem. Matando mulheres, Meninos também. Fecha a porta, gente, Cabeleira aí vem, Fujam todos dele, Que alma não tem. Fecha a porta, gente, Fecha bem com o pau, Ao depois não digam, Cabeleira é mau.

Cabeleira aí vem; Ele não vem só, Vem seu pai também.

(PEREIRA DA COSTA, 1974, 163)

Para o leitor atual, o romance de Franklin Távora pode parecer com uma casa construída por diversos arquitetos que tinham concepções diversas do projeto. Muitas vezes seu ritmo é rápido, outras é distendido em demasia; em alguns momentos é detalhista, em outros apresenta fatos sem qualquer explicação. A leitura dos

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fragmentos de obras populares recolhidos por Pereira da Costa pode revelar determinadas circunstâncias sociais da produção da obra de Távora que expliquem algumas das distorções perceptíveis. É certo que Távora pertencia à elite local, e assim sendo suas descrições desse grupo social são bem mais aparelhadas de fatos e eventos. Quanto a Cabeleira e toda a pobreza dos sertões abalada por suas ações, as fontes de Távora são apenas os versos de domínio público. Ou seja, a ação do romancista consistiu em grande parte em verter para um determinado gênero aquilo que era do conhecimento popular, tratando de consubstanciar as lacunas das histórias populares com a imaginação aos moldes dos valores estéticos de seu tempo e de sua classe social.

Sobre a distorção gerada pela posição social do autor, é fácil percebê-la ao tratar de duas mulheres representadas na obra: a) Luísa, amada de Cabeleira e b) Leonor, esposa do capitão-mor Cristóvão de Holanda Cavalcanti. Na primeira participação de Luísa já adulta vemos:

Luisinha era uma menina branca, órfã, de índole benigna e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viúva recolheu-a em sua casa à conta de filha, e começou logo a. ter para ela maternal solicitude. Luisinha era digna deste amparo, não só pelos predicados sobreditos, senão também pelos seus encantos naturais que a todos cativavam com justa razão.

Florinda, a viúva, deu à menina a educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou muito que Luisinha soube fiar, coser costuras chãs, fazer bicos e rendas, respeitar os mais velhos e encomendar-se a Deus. (TÁVORA, 2013, p. 52)

Se houver alguma beleza na descrição de Luisinha, essa só pode estar na austeridade da formação da moça, conforme nos apresenta o narrador de Távora. O fato bem destacado de ser a “menina branca” contrasta com o já informado fato de Cabeleira e seu pai serem mamelucos. Daí uma oposição entre as virtudes sociais e os vícios estarem também distribuídos socialmente a partir da coloração da pele dos sujeitos: uma marcação discursiva circunstancial da posição de fala do enunciador.

Outrossim, a descrição de Dona Leonor é bastante diversa:

Via-se na varanda Dona Leonor, mulher do capitão-mor. Seus belos olhos estavam voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão e burburinho. Entre os anéis dos seus negros cabelos brilhavam ricas flores de ouro e coral, semelhantes a malmequeres e pitangas. Um

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vestido de seda azul, com ramos de rosas brancas que lhe subiam da fímbria à cintura, deixava adivinhar as formas admiravelmente corretas da nobre senhora, cuja gentileza impunha a todos preito com que se não daria mal uma princesa. A seu lado mostravam-se outras senhoras pertencentes às primeiras famílias da vila. (TÁVORA, 2013, p. 145)

A diferença entre a dicção salta aos olhos. Na descrição de Luísa prevalecem dados relativos à formação, fatos e circunstâncias de cunho objetivo. Já em relação à mulher do capitão-mor a subjetividade desenha traços de uma bela e atrativa mulher. Os detalhes para a bela fisionomia de Leonor contrastam com a os rudes traços atribuídos à Luísa. A diferença potencializa-se ainda mais quando levamos em consideração que Luísa atua como uma heroína dentro do romance e Leonor, no fundo, serve mais para justificar o libelo contra a pena de morte que é o Capítulo XVIII do romance.

Assim como o cancioneiro popular parece aproximar-se da figura de Cabeleira ao enunciar algumas de suas obras na primeira pessoa do singular, Távora deixa a marca de posição social dentro da arquitetura composicional da obra. No fim, o autor observa o mundo de determinada posição dentro dele. Quando fala daquilo que conhece, por ter vivenciado em suas relações sociais em oposição àquilo que soube pela narrativa dos artistas populares, explicita-se uma assimetria do imaginário expresso em marcas evidentemente discrepantes, como a assinalada sobre as duas mulheres.

Sobre a captura de José Gomes, Pereira da Costa traz mais uma trova popular em discurso direto:

Vem cá Cabeleira, Anda me contar Como te prenderam No canavial

Meu pai me chamou: – Zé Gomes vem cá; Como tens passado No canavial? Mortinho de fome, Sequinho de sede, Só me sustentava Em caninha verde. Três dias passei

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Que comer não tinha Mais que rato assado, Puro sem farinha. Eu me vi cercado De cabos, tenentes, Cada um pé de cana Era um pé de gente. Vem cá José Gomes Anda me contar, Como te prenderam No canavial.

(PEREIRA DA COSTA, 1974, p. 164-165)

Távora remete diretamente em seu romance a uma versão da trova acima citada (TÀVORA, 2013, p. 141, capítulo XVI). O desenvolvimento narrativo do entrecho da prisão de Cabeleira dura, no romance, aproximadamente quatro páginas (140 a 143) – em minha versão do romance impresso. É a mesma quantidade de páginas utilizada para apresentar o bispo D. Tomás da Encarnação Costa e Lima e seus hábitos de caridade (págs. 35 a 38). A apresentação do bispo serve, dentro da arquitetura do romance, para demonstrar que o dinheiro roubado por Cabeleira e seu bando era o mesmo utilizado pelo religioso em seu auxílio caridoso aos pobres. Mostra, assim, a baixeza moral de José Gomes e seu bando, pois, ao roubar do bispo, roubam dos pobres. É outro exemplo das assimetrias estéticas que perpassam o romance.

Para o leitor atual, as citações do cancioneiro popular feitas por Távora podem parecer estratagemas de ilustração à obra. No entanto, é preciso pensarmos que o intuito do autor era compor um romance histórico – conforme a espécie de carta que serve de prefácio à obra:

Inicio esta série de composições literárias, para não dizer estudos históricos, com o Cabeleira, que pertence a Pernambuco, objeto de legítimo orgulho para ti, e de profunda admiração para todos os que têm a fortuna de conhecer essa refulgente estrela da constelação brasileira. Tais estudos, meu amigo, não se limitarão somente aos tipos notáveis e aos costumes da grande e gloriosa província, onde tiveste o berço. (TÁVORA, 2013, p.12)

Sendo assim, as referências à poesia popular servem não como ilustração, mas confirmação daquilo que é narrado. São as fontes históricas utilizadas por Távora, e

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por não pertencerem a documento escrito, mas ao conhecimento popular por circulação oral, a transcrição é uma forma de dar fidedignidade do relato à fonte.

Távora vive e produz sua obra em uma fase de grande efervescência para a literatura e as artes em geral não só no Brasil como no mundo inteiro. O autor pertence, assim como Machado de Assis, a uma geração de ruptura com os modelos da estética e ideologia românticas e construção de novas alternativas à composição artística. Sobre o assunto, assim referiu-se um crítico:

Na geração que inicia sua produção novelística por volta de 1870 – Franklin Távora, Taunay e Machado de Assis – a assimilação de novas tendências é mais perceptível, embora ainda se realize de forma incompleta, conflitiva. A visão do mundo subjacente à obra dos três escritores permanece romântica. O traço inovador será, conforme verificaremos nas ideias de Franklin Távora, a ênfase crescente na observação da realidade como fator primacial da criação romanesca corrigindo a hipertrofia que o conceito de imaginação sofrera na estética romântica. (PINHEIRO, L. F. Maciel apud AGUIAR, 2005, p. 322. Grifos no original)

Quanto à tensão entre imaginação e observação no fazer artístico, Távora já afirmara seu posicionamento anos antes da escrita de O Cabeleira em suas famosas cartas polemizadoras da obra de José de Alencar. Sob o pseudônimo de Semprônio afirmou:

O grande merecimento de Cooper consiste em ser verdadeiro; porque não teve a quem imitar senão à natureza; é um paisagista completo e fidelíssimo. Não escrevia um livro sequer, talvez, fechado em seu gabinete. Vê primeiro, observa, apanha todos os matizes da natureza, estuda as sensações do eu e do não eu, o estremecimento da folhagem, o ruído das águas, o colorido do todo; e tudo transmite com exatidão daguerreotípica. (TÁVORA, 2011, p. 51)

Uma meticulosa análise das Cartas a Cincinato [1871/1872] compostas por Távora revela que o termo imaginação recebe por parte do autor uma acepção negativa, como quase sinônimo de arbitrariedade. A aplicação do termo imaginação à obra de determinado autor – no caso, José de Alencar – tem como objetivo uma forma de censura.

É certo que no posicionamento de Távora perpassa uma repulsa ao patriarcado de José de Alencar na literatura brasileira da época. Vejamos:

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É o chefe da literatura brasileira, um gênio talvez, porque cria a torto e a direito, seja o que for, não importa o quê; cria visões, cria deformidades, cria uma linguagem nova; cria vocábulos, velhos, encanecidos! (TÁVORA, 2011, p. 134)

No entanto, isso não anula determinado passo rumo a uma ruptura com o romantismo enquanto convenção literária e, até, um esboço preliminar do que seria a escola realista. Embora o autor também tenha se distanciado dessa corrente ao afirmar:

Parecendo-me, porém, que o romance tem influência civilizadora; que moraliza, educa, forma o sentimento pelas lições e pelas advertências; que até certo ponto acompanha o teatro em suas vistas de conquista do ideal social – prefiro o romance íntimo, histórico, de costumes, e até o realista, ainda que este me não pareça característico dos tempos que correm.

Em uma palavra prefiro o romance verossímil, possível, quero "o homem junto das coisas", definição da arte por Bacon (TÁVORA, 2011, p. 114).

A propositura oscilante, ainda por se descobrir de Távora é bastante informativa sobre a situação de ruptura estética que se operava naquele momento histórico. No caso do autor cearense, em suas cartas polêmicas direcionadas a Alencar, é relevante frisar, também, que Távora apresenta grande admiração por Audubon (Távora, 2011, p.73), importante naturalista de origem francesa especializado na ilustração de aves. Ou seja, flerta abertamente com uma mudança de perspectiva fortemente influenciada pelo discurso cientificista ascendente que já animava a geração surgida na década de 1870. Segundo Antônio Cândido:

representam o início da fase final do romantismo, quando já se ia aspirando a um incremento da observação e a superação do estilo poético na ficção. [...] As suas considerações constituem o primeiro sinal, no Brasil, de apelo ao sentido documentário das obras que versam a realidade presente (CANDIDO, 2013, p. 678-679)

Interessa nessa polêmica refletir sobre a observação em circunstâncias de composição de um romance histórico sobre uma personagem que é viva apenas no discurso popular, em suas trovas e anedotas. Esse é, inclusive, um aspecto do gênero romanesco percebido não como desdobramento do épico, mas como gênero literário

Referências

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