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2 OS BRILHANTES DE RODOLFO TEÓFILO

2.4 A VALENTIA E A ORDEM PÚBLICA

A carta de Jesuíno Brilhante ao presidente da província do Rio Grande do Norte nos oferece vislumbre da organização política local e da posição do afamado cangaceiro nessas disputas: “Dizendo-vos isso, não quero implorar clemência, pois sou o rei deste deserto, senhor absoluto destas paragens.” (TEÓFILO, 1905, p. 252). Não se fala aqui em poder paralelo do cangaceiro, já que são domínios distintos: a província ao presidente, o sertão a Jesuíno. A carta do cangaceiro é uma espécie de “ofício” de instâncias distintas e serve para acusar os agentes do governo de ladrões. A ação desses sujeitos só entra na esfera de interesse de Jesuíno porque suas más

práticas de desvio do socorro público estavam levando a população do sertão à miséria.

Se o Estado não é de todo ausente, o que observamos na construção da obra é a movimentação do embora insípido aparelho estatal no sentido de alcançar os interesses de alguns elementos das oligarquias locais. A comissão pública organizada para a perseguição dos Quebra-kilos foi instrumento de disputas privadas, das quais se incluem entre suas vítimas os parentes de Brilhante. Sobre essa comissão, o poder estatal e as disputas privadas, temos o seguinte trecho:

A fedentina do suor misturava-se ao cheiro desagradável da exalação pulmonar e ao hálito fétido das bocas mal asseadas e espalhava-se até as imediações da cadeia.

A comissão executiva visitava quase que diariamente o cárcere e voltava sempre satisfeita com o tratamento dispensado aos presos. Era mesmo que ela desejava que os tratassem.

O vigário, aquém de preferência procuravam os parentes das vítimas, como irmão em Cristo, respondia às súplicas dos aflitos, com as palavras do mestre: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Isto queria dizer que ele feria a quem o havia ferido, perseguindo os descendentes daqueles que haviam perseguido os seus ascendentes. O padre, com os olhos a faiscarem de cólera, lembrava os suplícios infligidos a seu bisavô pelo trisavô do preso, no tempo ainda de El-Rei nosso Senhor de Portugal. (Idem, p.37-38)

Ao contrário do que se espera, as visitas quase diárias da comissão executiva não são para averiguar e fiscalizar boas condições do encarceramento, mas para garantir as instalações e situações desumanas às quais estavam submetidos os presos. O trecho é sarcástico em relação à posição do clero naquela sociedade sertaneja. Em seu romance de estreia, A fome [1890], Teófilo já havia apontado para as práticas em nada cristãs do clero sertanejo na figura do vigário que desdenha dos necessitados por ter o poder de fazer a distribuição dos socorros públicos (TEÓFILO, 2011, p. 88-92). Agora, novamente em posse de atividade típica do Estado, outro membro da Igreja utiliza a posição política de vantagem para infringir mortificações e punições que guardam relação apenas com as disputas privadas entre famílias.

Não apenas, ao utilizar um suposto versículo bíblico como justificativa para suas ações, o padre mobiliza, orientado por seu interesse pessoal, todo o aparato ideológico religioso em seu interesse familiar, político e secular. Diga-se, inclusive, que o suposto versículo citado sequer está na Bíblia, sendo, talvez, uma apropriação popular da passagem do evangelho de Mateus: “Então, disse-lhe Jesus: Põe a tua

espada no seu lugar, porque todos os que tomarem espada, morrerão à espada.” (26: 52) O trecho, como se vê, não é um estímulo à vingança ou à violência. Ao contrário, é discurso pacifista. A corrupção do texto e de seus sentidos diz muito daquele que o profere. A análise feita por Maria Sylvia de Carvalho Franco para análise do caipira parece explicar confortavelmente essa postura nada evangélica do padre sertanejo:

A incidência regular e a institucionalização das manifestações de violência correram simultâneas com a acentuação normativa dos conteúdos de ruptura e tensão. A constante necessidade de afirmar- se e defender-se integralmente como pessoa, ou seja, a luta ingente na relação comunitária surge conjugada à constituição de um sistema de valores em que são altamente prezadas a bravura e a ousadia. Realmente, a ação violenta não é apenas legítima, ela é imperativa. De nenhum modo o preceito de oferecer a outra face encontra possibilidade de vigência no código que norteia a conduta do caipira. (FRANCO, 1974, p. 50-51)

A imprecisão para estabelecer a origem da contenda de famílias (“lembrava os suplícios infligidos a seu bisavô pelo trisavô do preso, no tempo ainda de El-Rei nosso Senhor de Portugal.”) evidencia apenas o fato de que o estabelecimento de uma racionalidade no processo histórico e social de violência é dispensável. Sobrepõem- se sobre isso a ousadia, a coragem e, na situação representada em análise, as possibilidades políticas e materiais de infringir sofrimento à parte contrária.

É pertinente observar que o padre que vemos no trecho citado aplicando as mais anticristãs punições em seus adversários é também aquele que primeiro insuflou publicamente a população contra a adoção do sistema decimal de medidas: “O vigário, fiel à sua promessa, condenou do púlpito o systema métrico decimal, mais por ter um y, do que pelo conhecimento que tinha dele.” (TEÓFILO, 1905, p. 18). O primeiro porta-voz da rebelião seria o seu grande carrasco? Seria uma grande incoerência se não observássemos a ausência de contiguidade entre esses dois elementos. A ruptura política entre a capital e o sertão cria um abismo entre essas práticas. Sujeitos, práticas e ordenamentos obedecem nessa realidade uma ordem muito particular. Essa estrutura pode ser percebida na profecia repetida por uma velha beata:

Dizia ela que Frei Vidal, por sua santíssima boca, havia anunciado que os malfazejos derribariam o trono em um ano de nove, e que o rei fugiria; mas que depois de cinco anos de guerra, fome e sangue, voltariam ao trono, que seria ocupado por um neto do rei deposto.

Todos tremiam com a profecia. Enxotar o rei! O rei cujo nome nem sabiam, mas que veneravam como um ente divino!... Tinham crescido ouvindo falar no rei como em um Deus; em seus contos, romances, poesias, essa entidade se apresentava simbolizando a força, o poder. (TEÓFILO, 1905, p. 10. Grifos no original)

A referência é a frei Vitale de Frascarolo, religioso italiano conhecido no sertão como frei Vital da Penha e que ficou famoso na virada para o século XIX por sua caridade e profecias (TEÓFILO, 2011, p. 174). Esse citado rei desconhecido para as beatas sertanejas incorpora os mais elevados valores sociais para aquela comunidade: “a força, o poder”. Há um abismo entre o soberano e aqueles súditos: espaço instransponível em que não apenas seu nome não penetra, mas sua palavra, sua ordem. Esse espaço não fica, no entanto, vazio. Nesse contexto, a valentia e o enfrentamento da ordem adversa são sempre instrumentos de sobrevivência e, até, de subversão: vale lembrar que em sua carta ao presidente da província Jesuíno Brilhante se autodesigna: “o rei deste deserto, senhor absoluto destas paragens.” (Idem, p.252). Linguisticamente o cangaceiro registra a inovação da ordem pública a partir da afirmação pessoal por meio da valentia e violência.