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Da cidadania medieval a uma moderna concepção de cidadania

A passagem do status medieval para a cidadania moderna se deu, segundo MARSHALL, por um processo de fusão geográfica (a substituição de instituições locais por instituições de âmbito nacional) e de separação no plano funcional (a substituição de instituições multifuncionais por instituições de caráter especializado), com o surgimento de instituições nacionais e especializadas, cujas prerrogativas individuais foram decompostas em tipos diferentes de direitos, cada um destes garantidos por um tipo especial de instituição. Pelo seu caráter sistemático, suas proposições causaram polêmicas na ciência política. SAES explora ainda as análises desenvolvidas por PATEMAN, que reconhece que a institucionalidade política peculiar à sociedade capitalista, combinada com a distribuição desigual de recursos políticos entre a massa, engendram condições desfavoráveis à participação.23

PATEMAN se utiliza das formulações de ROUSSEAU, MILL e COLE, e pondera que o treinamento e aprendizado para a participação na esfera macropolítica começam com a participação microesferas da vida social, sugerindo que a microparticipação política das massas pode dar início, no seio da sociedade capitalista, à transição para uma democracia participativa em escala global. No mais, a igualdade econômica seria condição para a participação de todos na

22 SAES, Décio. Cidadania e Capitalismo: uma crítica a concepção liberal de cidadania. Instituto de Estudos

Avançados. Abril. Caderno n. 8. São Paulo: USP, 2000. pp. 1-7.

23 Portanto, um salto qualitativo na participação política só poderia iniciar no seio da sociedade capitalista, com a

deflagração de um surto democrático na periferia do sistema político global, nas esferas econômicas e política local. Idem. pp. 41-43.

política, significando que a instauração da condição para a concretização da participação política da maioria social implica a superação do modelo capitalista da sociedade.24

No que diz respeito à interdependência entre os três conjuntos de direitos de cidadania apresentados por MARSHALL, CAVALCANTI observa que alguns autores contemporâneos25 têm apontado os riscos decorrentes em se privilegiar alguns aspectos da cidadania em detrimento de outros.26

Não obstante, os primeiros intérpretes de MARSHALL entenderam que ele preconizava a integração da classe trabalhadora na sociedade capitalista pela evolução da cidadania e consequente declínio e conflito de classes, como BENDIX e DAHRENDORF. Posteriormente, MARSHALL voltou a ser criticado, mas desta vez pela ideia de que os sistemas de classe e de cidadania são contrapostos, e de que a cidadania pode promover mais do que reduzir conflitos de classes.27 LIPSET, por exemplo, observa que MARSHALL fomentou a possibilidade de que o conflito é necessário à sociedade; e BARRY HINDESS considera MARSHALL um teórico da integração social.28

No âmbito dos debates apresentados, os aspectos concernentes ao trabalho permeiam o desenvolvimento da cidadania na perspectiva de uma busca por garantias e direitos. Nesse ínterim, um aspecto relevante é que o direito legal de formar associações combina o princípio plebiscitário com o funcional. Nos Estados em desenvolvimento da Europa ocidental, as associações privadas representam o princípio de representação com base em interesses comuns.

24 SAES, Décio. Cidadania e Capitalismo: uma crítica a concepção liberal de cidadania. Instituto de Estudos

Avançados. Abril. Caderno n. 8. São Paulo: USP, 2000. pp. 43-47.

25 Para ROBERTS (1997; 06), uma cidadania civil fraca pode prejudicar o desenvolvimento da cidadania política,

mesmo quando existe democracia formal. No mesmo sentido, ROBERTS aponta que MANN entende a possibilidade do desenvolvimento social da cidadania ser usado pelas elites para evitar a extensão das cidadanias civil e política. Neste mesmo sentido JELIN (1996; 45) observa que uma transição 'para a democracia deve fazer mais que desarticular as formas antidemocráticas de exercício do poder. Com efeito, TURNER acusou MARSHALL de evolucionista e etnocentrista, enquanto ROCHE classificou aquela posição (de MARSHALL) de a-política. Ambos os autores discordam da visão de MARSHALL do caso inglês e refutam a colocação dos direitos civis no começo: o 'Bill of Rights' teria sido fruto de um processo político na busca pelas liberdades individuais. (VIEIRA; 1997, 24). Nesta mesma linha, HABERMAS entende tratar-se de uma análise linear, que não acentua o papel dos direitos políticos na cidadania, colocando-os no mesmo nível dos demais. Em contrapartida à idéia de progresso linear apresentada por MARSHALL, HIRSCHMAN enfatiza as contra-investidas que levaram a alguns recuos dos programas progressistas. Dito de outra maneira, o desenvolvimento da cidadania teria sofrido retrocessos. Entrementes, BOBBIO (1996; 61) entende que é com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final (sob a ótica do príncipe) para o ponto de vista dos cidadãos. Com efeito, nos Estado de direito o indivíduo tem em face do Estado tem não só direitos privados mas também direitos públicos.

26 CAVALCANTI, Rosângela Batista. Cidadania e acesso à justiça: promotores de justiça da comunidade. São

Paulo: IDESP, 1999. pp. 22-27.

27 Ver GIDDENS; GOLDTHORPE; LOCKWOOD e TURNER. 28 BARBALET, J. M. A Cidadania. Lisboa: Estampa, 1989. pp. 25-26.

Nestes termos, o autor alega que as organizações baseadas em interesses econômicos comuns perpetuariam ou restabeleceriam princípios corporativos análogos àqueles do período medieval. Nesta linha, em seu argumento contra a sociedades de benefício mútuo, Le Chapelier expressa em seu discurso em 1791 perante a Assembleia Constituinte, que "as corporações em questão têm o objetivo confesso de obter assistência para os trabalhadores na mesma ocupação onde adoecem ou ficam desempregados".29

Sobre o eixo inclusão/exclusão se estrutura a identidade da cidadania moderna e, também, são fixadas as raízes da sua crise atual. Neste sentido, o contrato social se caracteriza como um pilar teórico fundamental da cidadania tal como a conhecemos, instaurando-se um tipo de obrigação política do indivíduo para com o Estado. Nesta obra, CARVALHAIS explora o conceito de cidadania pós-nacional, caracterizando-o como:

(...) um estatuto fundado num paradigma de relação entre a sociedade e o Estado, no qual todos os seus membros são igualmente instruídos de direitos de participação democrática e de comunicação plena, que os habitam em igualdade e liberdade a ser partes ativas nos processos de decisão que potencialmente os afetam. Tal equivale a defender a cidadania como um estatuto que atribui direitos políticos de expressão, reunião e associação numa base pós-nacional.30

A cidadania pós-nacional é, pois, “a que se compatibiliza com a idéia de Estado e de sociedade enquanto associação política, na qual a pluralidade se organiza, se solidariza e se mobiliza pela concretização de entendimentos alternativos de bem-comum.”31

Ainda, segundo BARBALET, a relação entre cidadania e classe social constitui tanto o centro da crítica marxista à cidadania burguesa como da sua análise mais recente da obra de MARSHALL.32 A cidadania, não obstante, manifesta-se enquanto participação numa comunidade ou como membro dela, em que diferentes comunidades políticas podem originar

29 No mais: "É do interesse da nação e dos funcionários públicos fornecer trabalho aos que dele necessitam para seu

sustento e socorrer os doentes (...) Não se deve permitir que os cidadãos em certas ocupações se reúnam na defesa de seus pretensos interesses comuns. Não se deve haver mais guildas no Estado, mas apenas o interesse individual de cada cidadão e o interesse geral. Não se permitirá a ninguém despertar em nenhum cidadão nenhuma espécie de interesse intermediário, nem apartá-lo do bem-estar público por intermédio de interesses corporativos". Para Bendix, a Declaração de Le Chapelier reflete o princípio enunciado por Rousseau, (para garantir um mínimo contra a pobreza, etc), respectivamente. BENDIX, Reinhard. Construção Nacional e Cidadania: estudos de nossa ordem social em mudança. São Paulo: Edusp, 1996. pp. 119-121.

30 CARVALHAIS, Isabel Estrada. Os Desafios da Cidadania Pós-Nacional. Porto: Ed. Afrontamento, 2004. p. 18. 31 Idem. p. 18.

diferentes formas de cidadania. No Estado democrático moderno, a base da cidadania é a capacidade de participação no exercício do poder político via processo eleitoral. Com efeito, a expansão da cidadania no estado moderno "é ao mesmo tempo a marca de contraste das suas realizações e a base de sua limitação." A generalização da cidadania moderna pela estrutura social significa a igualdade de todos perante a lei. Tais críticas (à cidadania democrática moderna) foram apresentadas nos anos 1840 por MARX nos seus estudos acerca da estrutura das Revoluções Americana e Francesa, que geraram a cidadania moderna.33

Não obstante, o germe da ideia de que a cidadania é composta de três partes pode ser encontrado numa série de conferências de HOBHOUSE na Columbia University americana em 1911 e posteriormente publicadas, referindo-se às desigualdades políticas acerca da moderna concepção de cidadania e, ainda, divergindo MARSHALL ao pensamento de HOBHOUSE e do pensamento liberal em geral, da ideia de que nem todos os direitos de cidadania são logicamente deriváveis dos direitos civis e em especial dos direitos de propriedade.34 No mais, é reconhecida a possível influência do pensamento de HOBHOUSE nas teorias de MARSHALL, principalmente pelo fato de ser docente de sociologia na London School of Economics, quando MARSHALL fora primeiramente como professor em 1926.

Antes de esboçar alguns aspectos35 da cidadania partindo de MARSHALL, BARBALET afirma que "a cidadania pode ser caracterizada como um status e como um conjunto de direitos. Esta associação de direitos e status não é acidental", eis que a importância política dos direitos deriva da natureza social do status. Tais anotações levam o autor a afirmar que "nem todos os direitos e nem sequer todos os direitos legais são direitos de cidadania." No que

33 BARBALET, J. M. A Cidadania. Lisboa: Ed. Estampa, 1989. p. 13. Nesta mesma linha, acerca da cidadania de

MARSHALL ressalta que: a cidadania é um status adstrito à condição de membro pleno da comunidade; quem possuir tal status goza de igualdade no que tange aos direitos e deveres que lhes são inerentes. Ibidem. pp. 17-19.

34 Idem. p. 20.

35 Dentre os aspectos apresentados por BARBALET, ressalta-se: a) em termos mais gerais apresenta que os direitos

são significativos porque atribuem capacidades especiais para as pessoas em virtude de um status legal ou convencional. Com efeito os direitos de uma pessoa advém de sua ligação a um status pois o status individual pode indicar suas capacidades. Neste aspecto, acredita BARBALET que seria um erro assumir que status e direitos só se consegue pela luta; b) outro ponto importante observado é que os direitos, portanto, definem para quem os aceita os limites essenciais da ordem social uma fronteira para além da qual a própria existência social está ameaçada. Este é um segundo aspecto da importância política dos direitos, consequência esta da natureza convencional do status; c) associada à idéia de que os direitos conferem um mínimo de qualificações e capacidades sociais está a noção de que violação de um direito é justificativa para o uso da força para corrigir determinada situação, pois este é o último recurso de uma sociedade. Com isto, tentou demonstrar o autor que os direitos conferem capacidades ou possibilidades e oportunidades como tributos do status ou da posição da sociedade, definindo uma fronteira cuja violação estará sujeita a sanções. BARBALET. Op. Cit. pp. 32-34.

concerne aos direitos de cidadania, estes impõe certas limitações à autoridade soberana do Estado.

Nesta perspectiva de ideias, GREAVES constata que os direitos de cidadania podem ser chamados de deveres do Estado para com seus membros. Assim, afirma que "nem todos os direitos que obrigam o Estado são ipso facto direitos de cidadania", mas "todos os direitos de cidadania partilham esta propriedade".36

Ponto igualmente importante a ser considerado nos estudos de MARSHALL sobre a cidadania é o que o autor denominou de direitos industriais. Para BARBALET, os direitos industriais são os direitos dos empregados poderem formar sindicatos para negociar coletivamente e fazer greve são tratados por MARSHALL como direitos civis. E é justamente esta caracterização dos direitos industriais que GIDDENS contesta, baseando sua argumentação na assunção de que os direitos devem ser distinguidos por sua tendência de classe. MARSHALL observa a cidadania industrial como um sistema secundário de cidadania baseado na instituição do sindicalismo, responsável pela negociação coletiva como meio de reivindicar certos direitos básicos de justiça social. Assim, os direitos políticos do século XIX são vistos como produto secundário dos direitos civis. 37

Partindo-se da perspectiva da evolução dos direitos, a cidadania democrática advém da evolução da industrialização, sendo recentemente destacado pela historiografia o papel da contestação de interesses e das lutas no alargamento dos direitos de cidadania até os grupos anteriormente excluídos. E conclui que o desenvolvimento da cidadania democrática ocorreu em contextos culturais, históricos e institucionais diversos, afirmando que o aparecimento, desenvolvimento e expansão dos direitos de cidadania refletem as capacidades e necessidades das forças de classe na sociedade capitalista.38

Neste aspecto, a cidadania relaciona-se ainda com os debates teóricos acerca da democracia, na medida em que a expansão do conceito de cidadania (integrando os direitos

36 Adverte o autor para os perigos em se partir do princípio de que os diversos direitos que compõem a cidadania

moderna são garantidos pelo Estado. Contudo, os direitos sociais e civis se fundamentam em princípios e bases diferentes e ainda pode existir alguma tensão entre eles. Este ponto descrito como tensão entre os diferentes tipos de cidadania levou Nigel Young a sugerir que o conceito de cidadania é em sua essência artificial na medida em que se exige uma articulação de elementos na unidade quando na realidade são contraditórios. Por sua vez, DAHRENDORF, num breve comentário a MARSHALL refere-se à expansão gradual da cidadania da esfera legal para a social e política, acrescentando que tal processo está inacabado, uma vez que podem ser descobertas novas dimensões da cidadania. Ibidem. pp. 36; 39-41.

37 BARBALET. Op. Cit. pp. 41-45. 38 Idem. pp. 52; 71.

econômicos, sociais e culturais), se relaciona com formas de organização que pressupõem a noção de democracia, nas quais se incluem a organização das Centrais Sindicais.

Assim, no tocante à democracia, podemos encarar os debates de maneira distinta. Na perspectiva teórica partindo do pensamento de WEBER (em que pesem as contribuições do pensamento marxista acerca da organização operaria), SHUMPETER39, DAHL40 e PATEMAN41 analisaram criticamente a questão da democracia, trabalhando a última autora com o conceito de democracia participativa.

Dentro dos debates teóricos que envolvem uma conceituação da democracia, encontramos autores que atualmente trabalham com uma noção da democracia sindical. Este aspecto mostra-se importante para o desenvolvimento do estudo, eis que fundamental para todo o trabalho pertinente ao debate da liberdade sindical, em especial aos debates sobre a democracia sindical.42