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Cruzando olhares na História: a família em foco

DA CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA À CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA

ob o termo “criança abandonada” se esconde uma certa categoria de criança que não responde ao modelo de infância criado pela sociedade burguesa. Essa questão implica em pensarmos sobre qual é o significado da infância em nossa sociedade e o lugar que nela é reservado às crianças da classe trabalhadora, especificamente àquelas provenientes dos segmentos de mais baixo poder aquisitivo.

Se olharmos para trás e trilharmos os caminhos longínquos da História, veremos que em meio às formas de existência cotidiana, a criança sempre foi um espectador silencioso, uma vez que a voz dos adultos é que registrava, ou ocultava, de forma contundente, as impressões sobre a criança. Por outro lado, como tais impressões não são irredutíveis, mas se constroem socialmente, as mesmas foram se transformando ao longo de um processo histórico, através dos tempos27.

De acordo com Del Priore (2000, p. 14), como restou apenas o silêncio “audível” dos pequenos, autoridades e teóricos de diversas áreas do conhecimento passaram a escrutar a história da criança e as mutações de seus vínculos sociais e afetivos, com o intuito de repensar uma nova ética para a infância e a melhor inserção da criança na sociedade.

No cenário internacional, Philippe Ariès lançou os primeiros estudos sobre essa questão em Histoire des populations françaises: et le leurs attitudes devant la vie depuis le XVIIIe siecle. Neste livro, Ariès (1971) trouxe um capítulo completo sobre a criança e a família. Logo depois, no clássico História social da criança e da família, Ariès (1981) mostrou que no contexto medieval até o início da Idade Moderna, a criança não era vista como um ser que possuía especificidades diametralmente distintas da condição adulta. Esse trabalho ocupou a cena soberanamente e tornou-se uma espécie de precursor das histórias sociais da criança e da família, visto que o mesmo passou a ser uma referência constante para muitos autores que, em

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continuidade ou em direção oposta às teses de Ariès, procuravam trazer para dentro de suas próprias investigações o modo como determinada sociedade (re)criava as representações sobre a vida infantil.

Nesse trabalho, Ariès (1981), baseando-se no estudo iconográfico, discutiu as intrincadas relações entre o tema da infância e da família e as progressivas mudanças que ocorreram no que dizia respeito ao lugar ocupado por estas duas instâncias nas sociedades industriais européias:

Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda nas classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas, poucos anos depois de um desmame tardio – ou seja, aproximadamente, aos sete anos de idade. A partir desse momento, ingressavam imediatamente na grande comunidade dos homens, participando com seus amigos jovens ou velhos dos trabalhos e dos jogos de todos os dias. O movimento da vida coletiva arrastava numa mesma torrente as idades e as condições sociais, sem deixar a ninguém o tempo da solidão e da intimidade. Nessas existências densas e coletivas, não havia lugar para um setor privado. A família cumpria uma função – assegurava a transmissão da vida, dos bens e dos nomes – mas não penetrava muito longe da sensibilidade. (ARIÈS, 1981, p. 275)

Desse modo, na sociedade medieval, a criança muito pequena era considerada frágil somente até o momento em que conseguisse superar a fase crítica em que se inscrevia o alto nível de mortalidade que colocava em risco sua sobrevivência. Assim que cessasse esse período, a criança passava a se confundir com os adultos, diluindo-se em seu meio social através da realização de atividades, marcadas pela indeterminação da idade, que se estendiam desde os jogos e brincadeiras, até às profissões e às armas. Por essa razão, pode-se dizer que até por volta do século XII o sentimento de infância28 era inexistente.

Segundo Ferreira (2002, p. 169), a descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pôde ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI, uma vez que as crianças, de início, começaram a ser representadas em suas peculiaridades como figuras ornamentais e pitorescas que serviam para dar vida a um quadro, para depois, a partir do século XVII, apresentarem valor suficiente a ponto de serem representadas sozinhas ou no centro de uma composição familiar. No entanto, nesse período, a criança ainda era vista apenas por seu caráter incompleto, por um não-ser adulto, cujo comportamento frágil deveria ser, ao mesmo tempo, preservado e disciplinado.

Tendo essas idéias como princípio, surgiram dois tipos de sentimentos que demonstraram a sensibilização da sociedade em relação à infância. O primeiro deles emergiu no meio familiar, quando o adulto encontrou na criança, “por sua ingenuidade, gentileza e graça, uma fonte de distração, de admiração e de relaxamento” (ARIÈS, 1981, p. 158), e o segundo, o oposto a tal sentimento, proveio de uma fonte exterior à família, ou seja, de eclesiásticos, de moralistas e de educadores do século XVII, que estavam preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes e que consideravam insuportável a atenção excessiva dispensada às crianças por parte dos adultos.

Se, anteriormente, a formação das crianças ocorria pelo convívio com os adultos, agora as relações entre classes, entre estamentos e entre faixas etárias, eram modificadas em função dos novos códigos modernos, que alteravam os vetores das interações entre pais e filhos, entre crianças e parentesco e entre linhagem e tradição. Esse movimento deu origem à estrutura familiar nuclear burguesa, imaginada e organizada segundo os códigos da razão eclesiástica, compondo o triângulo pai-mãe-filhos e atendendo aos critérios da monogamia, da fidelidade, da reprodutividade e da consangüinidade.

A instância familiar, compreendida como célula primeira, passa a ser o local de abrigo, de reconhecimento, de refúgio, do amor conjugal entre pais e filhos, do cuidado intenso com a prole no sentido de protegê-la e educá-la de acordo com os princípios da moral, da higiene e dos bons costumes. Enfim, a instância familiar passa a ser um lugar de proteção e, sobretudo, de respeito à autoridade do pai, provedor e responsável pelo bem-estar da família.

Segundo Boto (2002, p. 22), tais aspectos fazem com que as relações sociais se agitem de tal forma, que as mesmas acabam resultando em alterações significativas nos padrões de sociabilidade.

Portanto, enquanto a família, para os homens da Idade Média, existia pela solidariedade e pela honra à linhagem, que se estendia a todos os descendentes de um mesmo ancestral, no século XVII, a família passa a ganhar uma representação diferenciada daquela preponderante até então, com tendências à indivisão do patrimônio, fazendo despontar uma sensibilidade nova e distinta para com a infância e para com as relações parentais.

Nos termos de Ariès (1981, p. 274), começou a ocorrer em toda a parte um movimento que reforçaria a intimidade da vida privada em detrimento das relações de vizinhança, de

amizades ou de tradições, levando-nos a crer que “o sentimento de família e a sociabilidade não eram compatíveis, e só se podiam desenvolver a custa um do outro”.

Entretanto, a família do século XVII ainda não era a família moderna, uma vez que esta distinguia-se daquela pela densidade social e pela enorme massa de sociabilidade comunitária que conservava. Somente a partir do século XVIII a família começou a constituir, de fato, um plexo de relações de dependência indissociáveis, mantendo a sociedade à distância e separando- se do mundo por um novo elo de liames sociais.

Segundo Donzelot (1986), tendo em conta que a família é ao mesmo tempo parte ativa imediata e parte submissa desse jogo movediço de vínculos, o problema estava, conforme nos chamou a atenção Ariès & Duby (1991, p. 16), em como se dava a passagem de um tipo de sociabilidade na qual o privado era separado do público a ponto de absorvê-lo e reduzí-lo.

Nessa trajetória, a criança passa a ocupar um lugar central na família e, conseqüentemente, não apenas o seu futuro, mas também a sua simples presença e existência tornam-se assunto sério e digno de preocupação.

Ante o exposto, é preciso considerar as clivagens de classe social quando se analisa esta questão. Segundo Donzelot (1986, p. 11), a moderna sensibilidade da família para com a criança surgiu primeiramente nas camadas burguesas e nobres do Antigo Regime e estendeu-se somente depois, através de círculos concêntricos, para todas as classes sociais, incluindo o proletariado do fim do século XIX, impondo-se às consciências.

Além disso, como o social é um domínio híbrido, sobretudo nas relações entre o público e o privado, aspectos históricos e culturais, sucessivos e simultâneos, agiram para formar um novo contorno, uma nova característica, fazendo com que as famílias da época, mesmo pertencentes às classes sociais simetricamente invertidas, ou seja, mesmo constituídas em torno de dois pólos nitidamente distintos e jogando com o binômio cidade-campo ou com a diferença “riqueza- pobreza”, sofressem mutações através de um viés, reorganizando os comportamentos dos membros que as compunham a partir de uma organização de família nuclear, centrada na privacidade e na educação das crianças.

De acordo com Saraceno (1988, p. 132), nesse novo modelo de família, a mulher passa a exprimir a atenção e a responsabilidade familiar para com as crianças, sendo identificada como mãe, não apenas no sentido biológico, mas também em termos afetivos e educativos. Desse

assimétricas e interdependentes, uma vez que o espaço que as circunscrevem é cada vez mais exclusivamente doméstico-familiar, também faz com que o modelo cultural da maternidade especifique e delimite os contornos do papel social e familiar das mulheres nas classes burguesas.

Em paralelo, a figura do pai também vai sendo construída. Apesar de tal construção ocorrer a partir de um processo menos explícito e com conteúdos mais indefinidos, pode-se dizer que a figura do pai procura manter as características de poder e autoridade social de organizações familiares anteriores. Portanto, a família que se constitui nos códigos dos estados burgueses, acaba sendo uma família fortemente centrada na figura autoritária e dominante do pai, mesmo porque a própria autoridade do pai de família é necessária, em última instância, para manter a estrutura autoritária da sociedade emergente.

Desse modo, de acordo com Macedo (1993, p. 64), embora esse modelo tivesse sido inicialmente restrito à burguesia, após o primeiro período de industrialização, tal modelo se disseminou como representação social da família e penetrou na classe operária emergente.

Nesse momento, é impossível deixar de mencionar Engels (1979), uma vez que este autor sustenta que o desenvolvimento das forças produtivas, próprio da era burguesa, além de ser a premissa para a cisão histórica entre a esfera pública e a esfera privada, ainda é responsável por fazer com que essa última se desenvolva simultaneamente com a propriedade e a família. Segundo Engels (1979), a contraposição entre o sujeito livre, possuidor de mercadorias, criador e fruidor de cultura, por um lado, e o cidadão público que goza de direitos precisos e exerce determinadas funções sociais, por outro permite à família burguesa, em sua fase ascendente, derrubar a rígida hierarquia da família feudal extensa, correspondente aos vários graus de hierarquia social.