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Do mito à representação social

REPRESENTAÇÃO SOCIAL: ECLIPSE DO MITO

Para compreendermos o que é representação social é necessário, antes de mais nada revermos os contornos conceituais do termo representação.

Lefebvre (1983), em sua obra La presencia y la ausencia: contribuicion a la teoria de las

representaciones, afirma que para compreender o conceito de representação é necessário ir contra

os dogmas da tradição filosófica e introduzir a dialética das relações entre aparência e realidade, entre verdade e ilusão, uma vez que as representações, ao circularem entre as brechas das instituições sociais, do universo de signos e de símbolos, intervêm nas vivências e nas práticas, sem dominá-las, ampliando, deslocando e transpondo certas “realidades”.

Além disso, para esse autor a representação possui uma riqueza ímpar; ela não é eco, sombra ou reflexo, mas é acima de tudo algo que implica-explica a linguagem: “a linguagem é uma presença-ausência, presença evocada, ausência preenchida” (LEFEBVRE, 1983, p. 67).

De fato, a linguagem, construída e transmitida social e culturalmente, é atravessada por visões de mundo, por representações mais próximas ou mais distanciadas da realidade vivida.

Como não é possível nomear sem representar, as representações são provenientes das condições concretas de existência, são acontecimentos de palavra que não podem conceber-se sem levar em conta o social, os valores, as convenções aceitas. Por isso é que as representações são repletas de ideologias: “o modo de existência das representações somente se concebe levando em conta as condições de existência de tal ou qual grupo, povo ou classe” (LEFEBVRE, 1983, p. 60).

De acordo com a definição marxista, a ideologia tem uma função política incontestável e não se trata apenas de uma representação incompleta e mutilada do real, mas se trata,

relações e ocultando e dissimulando as contradições diversas nele presentes. Desse modo, é ideológica toda a representação que contribui mediata ou imediatamente para a reprodução das relações de produção.

Entretanto, segundo Lefebvre (1979), somente a análise dialética pode revelar a ideologia, uma vez que a mesma rasga e afasta os véus (aparências, representações) que encobrem a realidade, trazendo à luz do dia as ilusões e as mentiras e, ainda, desmascarando e dissociando as contradições emaranhadas no novelo de sua unidade.

Além das representações serem repletas de ideologia, outra característica delas é que as mesmas fazem parte da linguagem. No entanto, em relação a esse aspecto, Lefebvre (1983, p.24) nos alerta: “as representações não podem reduzir-se nem a seu veículo lingüístico nem a seus suportes sociais”.

Nesse sentido, é preciso considerar o vivido pautado no discurso, e vice-versa, posto que as representações são fatos de palavra (discurso) e de prática social:

As representações e suas tendências provêm dos sujeitos sem reduzir-se a uma subjetividade e têm uma objetividade sem reduzir-se a objetos sensíveis ou sociais, muito menos a coisas. Isso porque as representações não podem nem prescindir de um conteúdo (relação), nem deixar que esse conteúdo (suporte) atue sozinho. (LEFEBVRE, 1983, p. 95, grifos do autor)

Para uma compreensão maior sobre as representações e a relação destas com o conhecimento e a linguagem, Lefebvre (1983) enfatiza as tríades: vivido-percebido-concebido e

representante-representação-representado.

De acordo com este autor, as representações têm origem no vivido e devem ser estudadas interagindo com o concebido, ou seja, devem ser estudadas no jogo do imediato com o mediato38, uma vez que as representações se situam no movimento entre o representante e o representado. Como a representação encontra seu suporte na linguagem, não só pelo fato desta última possuir um caráter mediador, mas também por ser um traço cultural que nasce e se transforma na sociedade, é inegável o fato de que a idéia de representação seja algo intrigante, afinal vivemos

38

De acordo com Lefebvre (1979, p. 105) o imediato é o dado inicial, que dá a ilusão do concreto. Pode-se chamar de imediato todo conhecimento que não é obtido através de um processo. Na linguagem filosófica, todo conhecimento imediato tem o nome de “intuição”, isto é, as sensações dadas por um objeto. O imediato indica apenas a constatação da existência da coisa e não aquilo que a coisa é. O imediato é apenas o ponto de partida. O

em um mundo marcado por oposições e por uma luta incessante entre diferentes forças: “O movimento dialético entre o vivido e concebido nunca cessa” (LEFEBVRE, 1983, p. 70).

Com o passar do tempo algumas representações que vêm de longe, de sociedades anteriores, de mitologias, de religiões, vão sendo modificadas, desprendendo-se daquilo que a sociedade estabeleceu convencionalmente. Tais representações vão, desse modo, multiplicando- se e simulando o real.

Daí a necessidade, segundo Lefebvre (1979, p. 112) de “penetrar no real e superar o imediato – o sensível – a fim de atingir conhecimentos mediatos, através da inteligência e da razão”.

De fato, o conhecimento não pode parar nesse imediato (nas sensações, nas primeiras impressões). Ao contrário, tal conhecimento deve ir mais longe, na convicção de que, por detrás do imediato, há uma outra coisa que, ao mesmo tempo, se dissimula e se expressa nesse imediato. Assim, uma palavra, um gesto de alguém, pode parecer um detalhe insignificante. Mas, refletindo sobre ele, é possível ultrapassar o que é mera aparência e atingir aquilo que é essencial no sujeito em questão.

Nesse processo, Lefebvre (1983) também se refere à necessidade de buscarmos o sentido da palavra, não só pelo fato do mesmo ser inesgotável – por passar por transições, recorrer à memória individual e social e reenviar-nos ora ao passado histórico, ora à época presente – mas também pelo fato do mesmo ampliar as nossas possibilidades de escolha, promovendo um movimento que atravessa a sociedade e que permite que a realidade se modifique representando- se. Desse modo, o que está em jogo é o poder da palavra que nomeia e verbaliza com sua significação e sua concatenação, resultando num duplo processo de substituição pelo real e de representação:

Não obstante, a concatenação dos signos e significações não basta para explicar o discurso. Nele intervêm outros elementos que fazem o sentido, a saber, os valores e normas admitidas em tal ou qual sociedade, incorporados em palavras chaves, símbolos, imagens fortes, em suma em representações [...]. As representações fazem os sentidos que se superpõem às significações das palavras, mas não se reduzem a elas. (LEFEBVRE, 1983, p. 47)

prática e de um trabalho de entendimento que supera as sensações, as unifica racionalmente e lhes acrescenta recordações.

Isso quer dizer que a representação é produzida nesses complexos simbólicos, repletos de alterações do real, de máscaras ou de ligações profundas com o vivido. Por isso Lefebvre (1983) reconhece, nas representações, a possibilidade de mudança, de transformação.

O movimento incessante e simultâneo entre os três termos da tríade lebfreviana vivido-

percebido-concebido se dinamiza e produz impactos sobre a própria representação. Essa contínua

circularidade é a sua condição de produção. Como a história e a cultura se fazem a partir e através do modo humano de representar o mundo e de atuar nele, transformando-o, é nessa complexidade simbólica que as representações possibilitam a discussão com base em dados reais e imaginários. Porém, se o representante se distancia do representado, do vivido, a representação se autonomiza e se multiplica, podendo tornar-se falsa e enganadora em relação a esse representado, esmaecendo-o.

“Se captar o vivido, é abrir caminho à vida” (LEFEBVRE, 1973, p. 70, grifo do autor), ao contrário, ao menosprezar-se o vivido, comete-se o engano de estudar o concebido e tornar o saber como absoluto. Segundo Lefebvre (1973, p. 32), nesse caso, o vivido se dissipa como um nevoeiro, com as representações (ideológicas) que fazem parte do cotidiano.

Nesse processo, o conhecimento pode ser obstruído ou facilitado pelas representações. Se for aberto a transformações, o conhecimento necessita de liberdade do imaginário, afinal não há imaginação sem conhecimento assim como não há conhecimento sem imaginação.

Desse modo, a representação tem um suporte material e um conteúdo prático irredutível, oscilando entre real e imaginário39, entre ético e estético, entre conhecimento e ideologia. A representação nasce no imaginário e é instituída a partir de uma mistura de idéias de diferentes classes sociais, contendo elementos de dominação, de resistência e de valores morais, religiosos, políticos e ideológicos.