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A felicidade por um fio

PRELÚDIOS DA DESILUSÃO

No entanto, de acordo com a assistente social, quando tudo parecia que ia dar certo com relação ao processo de adoção, a história entre este casal e as crianças tornou-se complicada. O casal começou a ficar confuso, a apresentar problemas de instabilidade emocional e a trazer seus problemas para os profissionais envolvidos no processo de Ieda e Walmir. Por esse motivo, o casal foi proibido de continuar visitando as crianças, até se resolver. O pior de toda essa situação é que, como Walmir havia criado um vínculo muito forte com Isaías, o menino estava sentindo bastante a sua ausência a ponto de mudar o seu comportamento em virtude deste acontecimento:

Em certa ocasião, Walmir disse:

– Eu sonhei que o tio Isaías não veio buscá eu e a Ieda. Por que o tio Isaías não veio buscá eu? [Walmir – falando com voz de choro]

Toni procurou mudar o assunto e sugeriu:

– Vamo brincá de mamãe? Você é a mamãe e eu sô o filhinho? [Toni] Walmir interferiu:

– Só quem tem tio Isaías pode brincá. Se não tivé tio Isaías não pode brincá. [Walmir – mostrando um pequeno objeto quadrado, de plástico, que estava em sua mão]

– É o tio Isaías. Só que eu não gosto mais dele porque ele não vem mais me vê. Só gosto de você porque você vem me vê. [Walmir – falando para mim]

Neste momento, Sandro aproximou-se e, após tirar o chaveiro das mãos de Walmir, correu para a sala. Walmir se desesperou e começou a chorar. Ele sentou no banco da área externa, deitou a cabeça na mesa, gritando. Seu choro era tão angustiante que procurei me aproximar com o intuito de acalmá-lo. Walmir, com os olhos cheios de lágrimas, falou:

– O Sandro pegou o meu pai pra ele! Esse pai é meu! É só meu! É meu e da Ieda! Eu consegui primeiro! [Walmir – soluçando]

– Calma, Walmir! [pesquisadora – abraçando-o] O Sandro pegou só a foto! O pai continua sendo seu. Ele deve tá trabalhando essa hora. Ele não tá com o Sandro!

– Ele é meu pai! Não dexa ninguém levá meu pai! Eu não vô arrumá ôtro! [Walmir]

– Calma! Calma! [pesquisadora – passando a mão na cabeça de Walmir, enquanto o abraçava] Walmir foi se acalmando. Perguntei a Sandro, que havia voltado para área dos fundos, onde estava a foto do tio Isaías. Ele disse que havia entregue para a monitora Irene. Walmir saiu correndo, entrou na sala e voltou com a foto de Isaías na mão. No entanto, Danilo, que estava observando toda a situação, esperou Walmir se aproximar, tirou de sua mão o chaveiro com a foto de Isaías e jogou-o em uma poça d’água que havia se formado próximo ao playground. As crianças pararam e ficaram olhando a reação de Walmir ao ver o chaveiro mergulhar nas águas turvas. Como havia entrado água pelo encaixe do chaveiro e estragado parte da foto, Walmir pegou o chaveiro sujo de barro, com toda delicadeza, e veio em minha direção chorando:

– Meu pai! Meu pai! Tia, estragaro tudo meu pai! [Walmir]

Como as crianças da instituição também notaram a ausência de Isaías nos dias de visita e perceberam que ele não vinha mais ver Ieda e Walmir, elas próprias buscaram justificativas para tal fato. Estas justificativas estavam sempre relacionadas a algo insignificante que Walmir ou Ieda haviam feito ou que as crianças apenas imaginavam que os dois haviam feito. De qualquer forma, a cada dia que passava os irmãos se sentiam mais culpados, culpados por algo que, na verdade, não estava relacionado ao modo de agirem:

Davi, Karina e Walmir estavam na área dos fundos desenhando. Walmir disse que estava fazendo seu pai. Ele fez o seguinte desenho:

Figura 8 – Desenho de Walmir

– É meu pai, tia! É meu pai! [Walmir] – O tio Isaías? [pesquisadora]

– Não! O tio Isaías não é mais meu pai, porque ele nunca mais veio me vê. Esse é o ôtro pai. [Walmir]

– Tamém, esse moleque mijô no carro do tio Isaías! [André Luís] – Não mijei, não! [Walmir]

– Não, não! Claro que mijô! [André Luís] – Foi a Ieda, então, que mijô? [Roberto] – Foi. [Walmir]

– Ah, foi, sim! A culpa é sua que o tio Isaías não veio mais! [André Luís] – Mãe! Mãe! Faiz a barba do meu pai? [Walmir – falando para mim]

– Mãe! Esse moleque agora tá chamano a dona de mãe! Não dexa não, dona! Esse ET! [André Luís]

– O tio Isaías não tem barba. [Ieda – referindo-se ao desenho de Walmir] – Não é o tio Isaías! É o ôtro pai! [Walmir]

Estávamos na área dos fundos, conversando. As crianças disseram para mim: – Dona! Reza por ela, dona! Ela é muito safada. [Alberto – referindo-se à Ieda] – É, dona, essa menina é a maior maloquera! [Tales]

– Ela dá guaraná pros moleque e os moleques dá salgadinho, aí ela fica falando pros menino fazê aquelas coisa com ela. [Priscila]

– Tudo mentira! [Ieda]

– É verdade, Sheila! Pode perguntá pra tia! Por isso que ela ficô sem pai, sem o tio Isaías. [Patrícia]

Walmir, Ieda, Patrícia e Priscila estavam na área dos fundos desenhando. Como eu havia levado o gravador, Walmir pediu que eu gravasse a sua voz enquanto ele desenhava:

– Tia, grava uma coisa? É, é, é... uma coisa, que eu vô falá! Eu não vô tê mais pai. [Walmir] Patrícia, que estava ao nosso lado, aproximou-se e cochichou em meu ouvido para que Walmir não escutasse:

– Tia, o pai dele não veio mais porque ele ficô sabendo que a Ieda tava fazeno nhec, nhec com o Tales. [Patrícia]

Priscila escutou o que Patrícia havia dito e completou: – É, tia! Eles tavam fazeno fuc, fuc! [Priscila]

Ieda ficou olhando para mim, sem dizer nada. Patrícia completou:

– Agora eles tão sem pai de novo por culpa da Ieda, essa beiçola! [Patrícia]

Isaías ficou durante três meses sem aparecer na instituição. No entanto, logo depois, Ieda e Walmir finalmente foram adotados por Isaías e sua esposa.

Episódio 4

A Culpa

dia estava nublado e o cinza do céu estava tão distinto e notável, por compor-se de um matiz que ficava entre a luz da manhã e a sombra da noite, que foi impossível deixar de me envolver por esse meio-tom convidativo a momentos de contemplação. Por esse motivo, retardei o passo e fiquei por um instante imóvel na frente da instituição, pensando nas implicações de uma infância ignorada por uma sociedade que, para desenvolver seu modelo econômico, estava propiciando maiores desigualdades, acirrando as diferenças sociais e tornando mais evidente as relações de dominação e exploração.

Nesse momento, o barulho provocado pelos carros que passavam pela rua foi ficando cada vez mais remoto, mais abafado, como se os mesmos estivessem indo para as profundezas da terra. De fato, pude perceber que eu havia reconquistado o silêncio. No entanto, a que preço! Meus olhos começaram a rodar exauridamente e o ar foi ficando pesado. Eu queria ser razoável, mas me sentia apreensiva, afinal, até então, a compreensão não estava influindo no enredo de meu percurso de investigação.

Quando comecei a refletir sobre a possibilidade de existirem caminhos misteriosos e sólidos por baixo das mais frágeis muralhas ou do mais profundo fosso, assustei-me com uma risada anônima e, num espasmo, meu corpo amoleceu. Nesse momento, a emoção impediu que eu pronunciasse qualquer palavra. Então, uma voz branda se fez presente. Era Valquíria. Como de costume, ela estava à minha espera no portão da frente da instituição, só que desta vez, com um gato no colo. O pequeno animal também havia se assustado com o riso repentino de Valquíria e por esse motivo estava com o pêlo todo eriçado.

Logo que me viu, Valquíria apertou a face rosada contra as fendas do portão e anunciou às outras crianças que eu havia chegado. Tales57 e André Luís vieram correndo me receber e começaram a explicar ansiosos que na escola onde estudavam, iria ter um concurso de redação promovido por uma grande loja de eletrodomésticos situada no município de Campinas, e como o

texto deveria ser entregue ao professor no dia seguinte, eles gostariam que eu corrigisse os erros gramaticais que surgissem após a elaboração do mesmo.

Tales e André Luís disseram que estavam empolgados com o concurso, porque a televisão da casa havia sido roubada há alguns meses e o prêmio seria cem reais em dinheiro e uma televisão em cores para o aluno que fizesse uma redação sobre o que seria necessário para tornar o mundo melhor.

No momento em que comecei a ler os textos produzidos por Tales e André Luís, notei que, embora eles não tivessem trocado informações durante a elaboração dos mesmos, havia inúmeras semelhanças no que dizia respeito ao conteúdo.

No início do texto, ambos agradecem a Deus pela vida que Ele havia lhes dado. Em seguida, eles pedem perdão a Deus pelo que fizeram, embora não tivessem mencionado qual ato poderiam ter cometido. Tales comenta brevemente sobre os problemas do meio ambiente: as queimadas, a poluição, e diz que o homem está se destruindo. Depois, ele termina seu texto pedindo novamente perdão a Deus e fazendo referência a uma passagem bíblica: “Deus é meu pastor e nada me faltará. Deus me guiará”.

Já André Luís escreve, ao longo do texto, que é de “um orfanato” e que gostaria de ganhar a televisão por esse motivo. Após enfatizar que os homens não deveriam matar ou “abandonar as crianças”, André Luís, assim como Tales, finaliza o texto pedindo perdão a Deus por tudo o que havia feito em sua vida.

O que mais me chamou a atenção nos textos destes dois meninos foi o fato de ambos pedirem perdão a Deus por algo que fizeram. Minha curiosidade aumentou ainda mais no momento em que Alberto, neste mesmo dia, entregou-me uma folha de sulfite com a colagem de um pequeno texto extraído de um jornal informativo sobre conjuntivite, além de algumas poucas palavras escritas logo abaixo do texto impresso.

Uma história da minha vida

Minha família era muito pobre e meu irmão tacou uma pedra no pé da minha mãe e ela acertou nele e ele ligou para polícia e amanhã a polícia chegou e pegou eu e o Roberto. E o Dagoberto tava na casa da minha tia e cada um estava separado e viemos para aqui. Olhamos tudo e fiquei uns 6 anos e foi uma casa muito divertida.

Figura 9 – Colagem e produção gráfica de Alberto

Assim que Alberto me entregou o texto, eu disse:

– Que interessante! Também tem um texto sobre conjuntivite! Os sintomas, os cuidados pra evitar... Eu vou terminar de ler em casa. [pesquisadora]

– Não, dona! Eu sei que é de conjuntivite, mais eu colei esse olho não é por causa da conjuntivite. É por causa da lágrima que tá caindo do olho, porque é a história da minha vida! Aqui são as crianças da Casa do Menor [apontando para o desenho abaixo do coração]. Nóis tamo aqui porque meu irmão Dagoberto jogou uma pedra na minha mãe. A culpa é dele! [Alberto]

Estas observações levaram-me a querer descobrir porque as crianças se sentiam culpadas por estarem na instituição. Portanto, após ter em conta as produções escritas de Tales, André Luís e Alberto, só me restava mergulhar no drama de relações que envolvia a vida destes três meninos

para compreender melhor o porquê de eles exprimirem de forma irremediável uma culpabilidade tão avassaladora.