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Da “nova” referência à noção de “ingerência ecológica”

“LUGARES COMUNS” DO DIREITO INTERNACIONAL

2.4 OS EXEMPLOS DAS NOÇÕES DE SOLIDARIEDADE ECOLÓGICA E DE INGERÊNCIA ECOLÓGICA

2.4.4 Da “nova” referência à noção de “ingerência ecológica”

O caso do Acidente Nuclear de Tchernobyl também incitou um conjunto de “falsos debates” acerca do conteúdo, mais ou menos abrangente, de cada uma daquelas noções. Um exemplo desse tipo de debate, ajustado ao gosto atual, é o da noção de “direito (ou seria dever?) de ingerência ecológica”. Através de um conjunto de estratégias retóricas, que variam desde o apelo à noção de “ingerência humanitária” até a ratificação da premissa de que os “direitos ambientais representariam a [quinta] essência do espírito humano civilizado”, pré-construções e esquemas cognitivos são convalidados.

Neste sentido, a eterna remissão às “experiências iniciais”199 é capaz de reproduzir círculo perfeito de noções, que consolidam tanto certos autores (Kouchner e Bettati ou Kiss), quanto seus métodos e técnicas de aplicação (“noção de urgência” na ingerência humanitária)200:

Tomando o modelo do ‘direito de ingerência humanitária’ proposto e aplicado por Bernard Kouchner e Mario Bettati há a certeza de que se fala cada dia mais do direito de ingerência ecológica. [...] O contexto geral é

198 A empresa privada francesa Campeon Bernard (1920) concentra suas atividades em construções civis, obras de infra-estrutura, como estradas de ferro, pontes, rodovias e barragens. No pós-guerra, o grupo continuou assumindo contratos na área de engenharia civil e militar, incluindo a construção da usina nuclear de Marcoule. Atualmente é um dos maiores grupos de construção civil da Europa, encampada pela Compagnie Générale des Eaux em 1984, atualmente realiza seus contratos sob a denominação

Campenon Bernard-SGE. A Électricité de France (EDF)(1946) é a maior empresa de geração e distribuição de energia da França. Em 2004, foi transformada em sociedade anônima. Em 2003, ela produzia 22% da energia consumida na União Européia, proveniente em sua maioria de usinas nucleares (74,5%).

199 Para Kiss (1992:199), a relação essencial entre o direito do homem ao meio ambiente está situada na interdependência com o direito à vida. Neste sentido, “é muito clara” a relação existente entre esses direitos e os direitos humanos, tanto civis, quanto políticos (liberdade, igualdade, dignidade), econômicos, sociais e culturais (adequando condições de vida e bem-estar). Finalmente, e isto é novo na linguagem dos direitos humanos, é aberta a perspectiva de responsabilidade com as futuras gerações. O pensamento de Kiss, também influenciou os comentários de Tamiotti (1995, p.160) para quem seriam princípios legitimadores da “ingerência ecológica”: a) o direito do homem a um meio ambiente sadio; e b) a responsabilidade global do homem em cuidar do meio ambiente às gerações presentes e futuras.

200 Segundo Bettati, a “urgência” em socorrer as vítimas em perigo de vida, seja por razões de incapacidade técnica ou estrutural das autoridades locais, seja em razão da negligência deliberada das mesmas é pressuposto para a ingerência humanitária (1991b, p. 643).

favorável ao nascimento do princípio do dever de intervenção ecológica e deve-se notar um avanço marcante no domínio da assistência humanitária.O desenvolvimento recente de certas teorias em face das exigências humanitárias confirmam que o princípio da não-intervenção admite limites. [...] Alexandre Kiss afirma que ‘além da intervenção humanitária, a intervenção para proteger as riquezas naturais foi admitida’. A noção de urgência que recobre o grave perigo às vidas humanas [...] pode ser diretamente aplicada ao domínio do meio ambiente no que concerne aos riscos naturais ou tecnológicos. (CANS, 1992, p. 12-14)

Além dessa, outras técnicas de argumentação discursiva, mais ou menos sofisticadas201, podem ser encontradas. No trecho a seguir, merece destaque o “efeito sugestivo”, de que se vale o autor, para convencer o receptor do discurso sobre a “semelhança” entre a categoria de “fato ilícito” e “crime internacional”, desconsiderando qualquer gradação valorativa entre os mesmos

A procura de uma possibilidade de introduzir no domínio do direito do ambiente, doravante integrado no dos direitos do homem, o princípio de ingerência nas relações de cooperação entre Estados, leva-nos a propor uma reformulação dos princípios da Carta das Nações Unidas [...] A ingerência ecológica justifica-se em caso de riscos maiores gerados por fatos ilícitos contra o ambiente, fatos que podemos assimilar a crimes internacionais no caso de poluições transfronteiriças particularmente graves. (BACHELET, 1995, p. 81 e 87)

Conforme Bourdieu (2006, p. 43) esse “jogo de homologia” doutrinária serve apenas para a satisfação de um público ingênuo e inexperiente no que toca à matéria da responsabilidade internacional do Estado. Isso porque, qualquer levantamento normativo mais acurado é capaz de demonstrar que nem a Comissão de Direito Internacional (CDI) das Nações Unidas, encarregada de centralizar os debates sobre o tema, foi capaz de elaborar um conceito comum de “crime internacional” e preferiu optar pela tipificação vaga e ambígua da categoria dos “fatos ilícitos especialmente graves”202, aos quais se atribuiu uma responsabilidade agravada.

201Entre os argumentos mais sofisticados estão: a) a concepção de que o direito de ingerência ecológica, nas questões internas dos Estados, impõe-se como meio mais seguro de obter o respeito das normas suscetíveis de proteger, conservar e melhorar as condições de vida humana. Esse direito deve ser reconhecido como possibilidade de ação da comunidade internacional cada vez que um Estado descumpra uma obrigação convencionalmente pactuada, ou não responda pelo chamado “dever de vigilância”, identificado no caso Estreito de Corfu (Grã-Bretanha c. Albânia, em 09.abr.1949) como sendo o “dever de previsibilidade dos incidentes geradores dos danos” (BACHELET, 1995, p. 85-86). No mesmo sentido: b) “a aplicação do processo de ‘ingerência ecológica’ poderia responder à necessidade de pressão para uma mudança de atitude de um Estado que faltasse com o respeito das normas internacionais ambientais”(BOISSON DE CHAZOURNES, 1995:53).

202 Conforme Villalpando (2005, p.170), desde 1976, a Comissão de vem debatendo sobre um conjunto de definições relativas às noções de responsabilidade estatal e crime internacional. Este último teve menção específica no art. 19, item 3, do Projeto da CDI de 1976: 3. (...) um crime internacional pode resultar de : a) uma violação grave de uma obrigação internacional de importância essencial para a manutenção da paz e da segurança internacionais (...) d) uma violação grave de uma obrigação internacional de importância

Por último, o que se verifica em comum, entre todas essas estratégias de dominação simbólica, é a complexidade argumentativa. Esse é o caso do uso das “falácias da negação do antecedente e da afirmação do conseqüente” (CARRAHER, 1983, p. 67) observáveis no texto a seguir:

“O direito de ingerência ecológica tem pouca chance de ser ‘oficialmente’ reconhecido [1]. Por outro lado, o que lhe recobre em matéria humanitária, como ambiental, tem pouca chance de ser contestado [2]” (CANS, 1998, p. 243) (inserção

nossa).

Se à primeira vista, a exposição argumentativa conduz à conclusão de que “o direito da ingerência ecológica” tem poucas possibilidades de ser recepcionado como “norma internacional”. Na seqüência, verifica-se que esta negação do antecedente [1] não representa um argumento relevante diante do argumento conseqüente [2]. Dito de outra forma, o uso da chamada “lógica proposicional” permite concluir, a partir da sentença argumentativa [2], que é perfeitamente plausível que aquele “direito” venha a ser reconhecido pela sociedade, enquanto prática internacional.

Assim, é que, no caso concreto, o autor preferiu deixar de ressaltar os obstáculos à criação de uma “nova referência”, que teria preservado o “princípio da não- intervenção”, e salientou outros argumentos, que propõem a “ação interventora” nos assuntos internos do Estado. Esse modo de apresentar as idéias, sob uma roupagem técnico-jurídica, oculta um conjunto de “premissas de valor subjacente” (CARRAHER, 1983, p. 87), ou seja, princípios e práticas sociais adotados por um tipo de sociedade num determinado momento histórico do qual o autor é porta-voz.

Segundo Rossi (2003, p.55), a noção de “ingerência ecológica” é fruto de uma visão etnocêntrica das sociedades humanas e da relação do homem “civilizado” com a natureza e com os outros povos. Para o autor, os países “civilizados” 203 difundem e impõem concepções (sobre o “bom”, ou “mal”, direito), definições (sobre o que seja “ecologicamente correto”) e decisões (sobre o “direito de ingerência ecológica”) sócio-

essencial para a salvaguarda e a preservação do meio ambiente humano como aquelas decorrentes da poluição massiva da atmosfera ou dos mares. Vinte anos depois, a CDI adotará um conjunto de artigos (art. 51 a 53 do Capítulo IV da 2ª. Parte do Projeto 1996) relativos à responsabilidade por crimes internacionais pelos Estados. A mudança na relatoria para a 2ª. Leitura do Projeto/1996, a partir de 1998, revitalizou um conjunto de debates já relativamente ordenados sobre o fundamento da noção de crime internacional do Estado. Ao fim, como apontado na Res. 59/35, tal noção foi suprimida.

203 O autor utiliza o termo Ocidente dominante (Occident politiquement, économiquement et

jurídicas aos “outros”, “não-civilizados”204. Neste contexto, sempre desfavorável ao “outro”, a denúncia sobre a inadmissibilidade do “direito à intervenção”, não resiste à força da “evidência ecológica” sobre a necessidade social de assistência internacional.

As denominadas “políticas de ajuda”, por razões ambientais ou desenvolvimentistas, não somente naturalizam a relação social de dependência e dominação, mas, principalmente, fixam os parâmetros em que essas devam ocorrer. Elas exigem uma “tomada de consciência dos governos dos países e das comunidades locais” (ROSSI, 2003, p. 56) no sentido de aceitar a interferência de agências internacionais e organizações não-governamentais para a execução das suas práticas de “gestão”.

Como se pode verificar, todas essas “premissas subjacentes” estão presentes no caso do acidente nuclear em território ucraniano. A denominada “política de contenção” relativa aos riscos nucleares presentes e futuros, sob o comando e coordenação de agências internacionais, e participação das organizações não- governamentais205, englobou uma série de medidas. Entre elas podem ser citadas: a) a série de visitas às centrais nucleares ditas “de risco” em países estratégicos, à época, integrantes da “cortina de ferro”, como Ucrânia, Rússia, Bielorússia e Bulgária; b) a elaboração e a “gestão” de um programa de estudo sobre os riscos considerados “vivamente inquietantes... nos países da ex-URSS e da Europa do Leste” (CANS, 1998, p. 236); c) o “aporte financeiro” para “a eliminação de riscos” causados pelo uso de tecnologia nuclear206 russa a ser patrocinado pelo G7, Banco Mundial e Banco de Desenvolvimento Europeu.

204 O autor faz relação ao mundo tropical (monde tropical), mas para a análise do caso concreto preferiu- se utilizar a expressão mundo não-civilizado (ROSSI, 2003, p.55)

205Entre as agências internacionais estavam a Agência Internacional de Energia Atômica, a Comunidade Européia de Energia Atômica e a Organização Mundial da Saúde. Entre as ONGS, Greenpeace

Fondation Cousteau, Médicos do Mundo.

206 Segundo Chantal Cans (1998, p.237), as empresas ocidentais tinham como objetivo produzir e vender a energia nuclear para aqueles países em fase de abertura econômica, e, conseqüentemente, eliminar as concorrentes, chamadas ovelhas negras (brebis gauleuses), agências de energia russas.

CAPÍTULO 3

AS RELAÇÕES SOCIAIS E A “POLÍTICA DO DIREITO” NA