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Da retórica da limitação da soberania em prol da proteção dos recursos naturais

“LUGARES COMUNS” DO DIREITO INTERNACIONAL

2.4 OS EXEMPLOS DAS NOÇÕES DE SOLIDARIEDADE ECOLÓGICA E DE INGERÊNCIA ECOLÓGICA

2.4.1 Da retórica da limitação da soberania em prol da proteção dos recursos naturais

Ao direito cumpre a função precípua de consagrar simbolicamente, por um registro eterno e universal, o estado de relações de forças entre os grupos e as classes. Então, além da distinção entre funções e agentes sociais, “entre poder e seu detentor” (BOURDIEU, 2006, p. 199), o direito registra e legitima a relação estabelecida e materializada em determinados ganhos materiais (econômicos e políticos) e simbólicos atribuídos aos detentores (ou não detentores) de títulos182.

Tradicionalmente, pode-se observar que Estados hegemônicos foram aqueles que tiveram a capacidade de mobilizar seus esforços de gestão em direções bem definidas, como nos casos das pesquisas nos domínios da segurança, tecnologia de transporte e comunicação. No sentido de justificar e garantir a aplicabilidade dessas políticas, os Estados reivindicam historicamente o livre acesso (soberano!) a zonas de diversas ordens e escalas, como os espaços terrestre, marítimo, aéreo e extra- atmosférico. Há ainda certos espaços que escapam a essa apropriação nacional e são objeto de uma regulamentação internacional, como no caso do alto mar. Há também os espaços de estatuto misto, sobre os quais um Estado exerce competências específicas, que não são exclusivas e nem planetárias: os “regimes internacionais de espaço”.

De qualquer forma, independente da qualidade dessas regras empregadas nesses espaços, todas elas

[...] dependem largamente das relações de força internacionais, das prioridades defendidas pelas grandes potências, mas também das concepções jurídicas dominantes em cada época, bem como dos “interesses públicos” (proteção do meio ambiente, necessidade de pesquisa científica, exploração otimizada de recursos naturais, segurança dos meios de comunicação). (DAILLER; PELLET, 2002, p.1137. Grifo nosso)

Até a metade do século XX, raros foram os autores europeus que ousaram contraditar a crença difundida pelo pensamento hegemônico capitalista sobre a

182 A noção de ganhos simbólicos diz respeito a um conjunto de rituais sociais que conferem honra e reconhecimento a um determinado bem. É esse poder, quase mágico, que consagra a posse das outras três formas de capital (econômico, cultural e social), permitindo compreender que essas manifestações de capitais não sejam apenas exigências de controle social, mas também constitutivas de vantagens sociais com conseqüências efetivas (BONNEWITZ, 2003, p. 54). Assim, um “título de propriedade de um bem” só será valorizado como capital econômico, social e cultural, dotando aquele agente que o possui de determinadas vantagens em relação a outros, no âmbito de uma sociedade que cultue, além deste, um certo número de valores sócio-econômico e culturais correspondentes.

“inevitabilidade da modernização” e do “progresso civilizatório”. Já naquela época, apesar do aumento notório dos índices de degradação ambiental, como de poluição de águas comuns e emissão de gases e fumaça com efeitos transfronteiriços, a consciência preservacionista teria efeitos limitados. Regras pontuais, como o estabelecimento de condutas não-poluidoras, foram negociadas a partir de uma perspectiva estritamente econômica, ligadas à especulação de propriedades imobiliárias ou à preservação de estoques de animais.

A “Convenção para Regulamentação da Pesca da Baleia, Genebra/1931”, que serviria de modelo à “Convenção para a Regulamentação Anexa, Nova Iorque/1946”, é um típico exemplo de título simbólico, pois se fundamenta no consentimento, expresso ou tácito, dos países para manter as estruturas político-econômicas de exploração do recurso natural. Por isso, essa convenção apenas estabelece quotas para a captura de baleias, sem determinar um sistema efetivo de sanções segundo a nacionalidade dos navios baleeiros que viessem a descumpri-las. Note-se que a “Convenção de Nova Iorque/1946” foi submetida a várias emendadas, isto porque havia a finalidade de adequar a “Convenção de Genebra/1931” às particularidades da atividade econômica ainda em curso (SOARES, 2003, p.17).

As primeiras referências à compatibilização do exercício soberano de exploração de atividades econômicas ao “compromisso” de adotar medidas específicas de “indenização aos danos causados” e “prevenção a futuros prejuízos” podem ser extraídas da decisão arbitral internacional entre EUA e Canadá, no caso “Fundição Trail” (Estados Unidos contra Canadá, em 1941) 183.

Como afirma Benedetto Conforti (1991, p. 150), essa decisão tem importância relativa ao conteúdo das disposições do tratado que estabeleceu a constituição de um Tribunal para a solução do caso concreto, cuja matéria estava delimitada às circunstâncias de poluição do ar. Basicamente o Tribunal ad hoc tinha a competência para definir um valor compensatório após o ano de 1932 (“[...] what indemnity should be paid therefor?”) e para indicar a necessidade de adoção ou de manutenção de normas

183 Caso em que Estados Unidos e Canadá, com base num acordo bilateral de gestão de águas fronteiriças, acordam um tratado específico para a criação de um tribunal arbitral binacional para solucionar o conflito relativo à fumaça emitida pela Fundição Trail de origem canadense, já que soluções divergentes eram patrocinadas pelas respectivas jurisdições nacionais. Reclamava-se pelos prejuízos sofridos pela população do estado federado de Washington/EUA que exalava a fumaça tóxica originária da atividade econômica de fundição de cobre e zinco em solo canadense.

de prevenção, contra as emissões substancias de fumaça, pela Fundição (“[...] what measures or regime, if any, should be adopted or maintained by the trail smelter?”)184.

Outra decisão, que não permite descartar a noção exclusiva do uso dos recursos naturais, é a sentença do tribunal arbitral franco-espanhol no caso “Lago Lanoux (Espanha contra França, em 1956): “[...] o Estado à montante, seguindo a regra de boa- fé, tem a obrigação de levar em consideração os diferentes interesses presentes” (CAFLISCH,1989, p. 50). Essa sentença garante que a parte francesa, empreendedora do projeto de aproveitamento das águas para a produção de energia em seu território, mas com efeitos no abastecimento fluvial espanhol, “nunca está obrigada a suspender [a atividade], por causa de pendência, o exercício de sua competência, salvo compromisso de sua parte”(CAUBET,2006, p. 19).

Para Caubet, a regra em matéria de utilização de recursos fluviais pode ser desta forma sintetizada:

A liberdade do Estado empreendedor tem seu limite na natureza dos danos que ele provocar. [...] existe um costume internacional de notificação, quando se pode prever futuros prejuízos sensíveis como resultado do empreendimento. A eventualidade do prejuízo não outorga um direito de avaliação ao Estado à jusante nem a superveniência de qualquer prejuízo. Passa-se, assim, das condições nas quais um Estado pode projetar e iniciar obras para o caso distinto e posterior, no tempo, em que houver um prejuízo efetivo e significativo (CAUBET:2006, p. 19; Grifos nossos).

Assim, se o prejuízo for menor deverá ser suportado pela parte, caso contrário, o Estado poderá correr o risco de ver a sua responsabilidade internacional questionada. Quanto à necessidade de consulta prévia para a realização do empreendimento, a sentença conclui que ela poderá ser exigida se houver compromisso das partes.

Em suma, pode-se afirmar que as disputas submetidas aos órgãos judiciários em matéria ambiental são raras, e as suas decisões não permitem afirmar a existência de princípios próprios sobre a utilização de recursos naturais. No caso do uso da água, pode-se concluir que como ocorre em contextos variados, que não se permite generalizar uma solução, ou seja, o que serve para uma bacia fluvial, não necessariamente se aproveita para outra (CAUBET, 2006, p.19).

184 ÉTATS-UNIS D'AMÉRIQUE ET CANADA n. 3735 Accord visant le règlement définitif des difficultés provoquées par des réclamations relatives aux dégâts causés dans l'Etat de Washington par les fumées provenant de la fonderie de la « Consolidated Mining and Smelting Company », à Trail, Colombie britannique. Signé à Ottawa, le ï5 avril 1935. Société des Nations – Recueil des Traités (1935, p. 73) Disponível : http://untreaty.un.org/unts/60001_120000/18/27/00035304.pdf acesso em: 28/jul/2008.

Não restam dúvidas para o Direito Internacional Público que o Estado soberano deve ser entendido como sendo aquele que se encontra subordinado direta e imediatamente à ordem jurídica internacional. Pensar de forma contrária seria negar a sua própria existência jurídica. Ao mesmo tempo, quando um Estado viola uma norma internacional, isso gera responsabilidade de reparação ao Estado contra o qual este ato foi praticado, o que não importa em restrição necessária da soberania, porque o ato ilícito decorre de seu exercício.

Mas como grifa Christian Caubet (2006, p. 20), a possibilidade de engajar a responsabilidade internacional não responde à questão central que é a da viabilidade da figura jurídica da “gestão compartilhada dos recursos”.