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CAPÍTULO 1 O MITO DA VIRTUOSIDADE DA AVALIAÇÃO

1.2 DA PREMÊNCIA CONTÍNUA PARA A CONSTRUÇÃO DO MITO

À luz do marxismo a qualificação desse discurso pode ser tomada com base nos conceitos de essência e aparência. Assim, a aparência é a manifestação do mundo social (as convenções) sem que haja necessidade de se manifestar claramente (essência); é possível afirmar que a aparência não necessariamente é enganosa. Daí decorre de ambas se manifestarem tanto no mundo natural como no mundo social, mas há que se considerar que essa dicotomia no plano social muda toda uma realidade, uma vez que uma falsa ideia não significa que não seja dominante. Por exemplo: O comportamento de uma dada sociedade diante de uma falsa aparência, possivelmente é modificado se essa mesma sociedade tivesse acesso à essência. Monfardini (2010) apresenta um exemplo de forma bem didática:

[...] a mais-valia se apresenta sob formas mistificadas, como o lucro. E não poderia ser diferente, pois se a mesma se apresentasse tal como é como trabalho não pago, a sua base de existência não estaria assegurada. Em outras palavras, o lucro é uma das formas necessárias de manifestação da mais-valia: não só o lucro (aparência) depende da mais-valia (essência) para existir, mas o oposto também é verdadeiro, isto é, a mais-valia (essência) depende, para existir, de uma forma dissimulada de manifestação (p. 04).

O exemplo anterior denota a relação de dialeticidade entre os dois conceitos. A teoria marxista usou muito bem essa dicotomia para fundamentar a tese da mistificação da origem da riqueza, antecipada pela discussão em torno dos conceitos de valor e valor de troca, bem como o fetiche da mercadoria, que segundo o mesmo autor:

[...] a mistificação do modo de produção capitalista é um processo que tem duas implicações essenciais: (i) é condição de existência dessa sociedade, na medida em que categorias mistificadas são necessárias para colocar em ação os indivíduos no processo de produção; e (ii) torna objetivamente opacas as estruturas sociais vigentes, levando à necessidade de uma análise científica do modo de produção capitalista (2010, p. 01) (grifo meu).

A sentença grifada revela a necessidade que o modo de produção capitalista e consequentemente a sociedade capitalista demandam desse caráter mitificador (converter em mito) para sua própria reificação. Naquele momento histórico, Marx se referia a sociedades com baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, entretanto com base em Sorel (1992), por exemplo, o desenvolvimento econômico da sociedade não impediu que a sociedade capitalista abolisse de seu contexto o seu caráter mitificador, pelo contrário ela ainda precisa das categorias mitificadas para confirmar a própria necessidade de uma (re)avaliação permanente de seu caráter cientificista, é a própria contradição entre clareza e opacidade e que sustenta o mundo da pseudo concreticidade em Kosik (2009). Daí a observação de Monfardini (2012): “O conhecimento mistificado tem uma base objetiva, porque tem como fundamento um caráter misterioso daquele objeto que busca entender e esse objeto pode, também, induzir os homens a entendê-lo de um modo particular”.

Numa interpretação direta da análise do autor é possível afirmar que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) é uma forma dissimulada de manifestação do real. A política de avaliação do Brasil se apresenta sob a forma mitificada. Se, se apresentasse claramente como forma de culminância para atender os interesses de mercado (da classe dominante), não teria nenhuma representação na sociedade ou encontraria muita resistência por parte daqueles que não detêm o poder. O IDEB é uma forma necessária de manifestação não só da política de avaliação, mas do Estado Regulador/ Avaliador: não só o IDEB (aparência) depende desse modelo de política de avaliação (essência), mas o seu contrário também. Ou seja, o ato mitificador é socialmente necessário para a própria reprodução do modo de produção capitalista.

Na esteira da análise marxista e na tentativa de qualificar o discurso, é importante agregar ainda a importante contribuição bourdieuiana acerca das formas simbólicas de dominação.

Pierre Bourdieu se intitulava neomarxista e sua obra é marcada pelos estudos acerca dos mecanismos de dominação e a denúncia das desigualdades sociais na sociedade francesa, mas “seu aparato sistêmico-prático pode, através do estabelecimento de relações de homologia, ser trabalhado com eficácia para estudos de campos sociais brasileiros” (CATANI, 2011). Considerado contestador da meritocracia escolar e avesso a reducionismos, o autor contribuiu sobremaneira para a sociologia moderna, principalmente com os conceitos de campo e habitus, que aqui serão enfocados separadamente apenas por questões didáticas, uma vez que os mesmos do ponto de vista epistemológico constituem uma unidade sociológica11.

O conceito de campo é extremamente importante, enquanto uma perspectiva teórico- metodológica, para a discussão em voga por estar imbuído de luta e força em dados domínios da realidade social, sendo pautado em interesses específicos. Para Bourdieu (1989, p.179), campo é “um sistema de desvios de níveis diferentes e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos atos ou nos discursos que eles produzem, tem sentido senão relacionalmente, por meio do jogo das posições e das distinções”.

O campo é, portanto, o espaço de disputa (poder), onde se concentram os diferentes capitais (social, financeiro, simbólico) e com dinâmicas e leis próprias, compostas por agentes (individuais ou coletivos) e estruturas. A estrutura do campo vai depender da concentração desses capitais e é constituído pelo habitus, este enquanto matriz de comportamento, de juízos de valor apreendidos na sociedade.

A realidade social existe, por assim dizer, duas vezes, nas coisas e nos cérebros, nos campos e nos habitus, no exterior e no interior dos agentes. E, quando o habitus entra em relação com um mundo social do qual ele é o produto, sente-se como um peixe dentro d’água e o mundo lhe parece natural. (BOURDIEU apud BONNEWITZ, 2003, p. 85). (grifo meu). É dessa naturalidade, ou seja, da constituição desse mundo natural que se faz referência ao mito da virtuosidade da educação, é essa naturalização que incomoda, sendo preciso desnaturalizar, pois Bourdieu convida o pesquisador a realizar o movimento, onde a

11 É importante considerar que Bourdieu elaborou ao longo de sua vasta obra diversos conceitos sociológicos,

mas não há intenção aqui de referendá-los na sua totalidade, por considerar que os conceitos de campo e de habitus interessam mais a esse estudo em particular, à medida que a natureza de todo esse estudo demanda alguns recortes teóricos.

realidade social não está feita, está em pleno devir. À luz dessa perspectiva teórica e parafraseando o próprio autor, o objeto dessa investigação constitui ou pode ser entendido assim:

1- A Realidade social é representada pelo Estado Neoliberal/ Estado avaliador, que se