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2 DA ATUAÇÃO DO BRASIL

2.5 Da proposta do Brasil sobre o Haiti

Dentre as 18 propostas introduzidas pelo Brasil em qualquer instância do Conselho de Direitos Humanos, uma que certamente se sobressaiu é a resolução que trata dos direitos humanos no Haiti após o terremoto que devastou parte do país em 12 de janeiro de 2010.

Com um total estimado de mais de 200 mil pessoas121 mortas ou

desaparecidas e centenas de milhares de feridos, 1,6 milhão de deslocados122, infraestrutura literalmente desmoronada, níveis de pobreza entre os maiores do mundo, altos patamares de violência e fragilidades institucionais123, se o Haiti antes pudesse ser considerado como um terreno fértil para violações de direitos humanos, após o terremoto essa terra já estava arada e plantada.

A situação após o terremoto exacerbou os problemas crônicos de direitos humanos do Haiti, incluindo violência contra mulheres e meninas, condições desumanas de detenção, e vulnerabilidade de crianças. A maior parte dos prisioneiros que escaparam da cadeia durante o terremoto permanecem foragidos. A já fraca e reduzida capacidade do Estado desde o desastre continua significativamente a minar sua capacidade de salvaguardar os direitos humanos

fundamentais.124

O CDH e, especialmente, o Brasil mostraram celeridade em lidar com a situação. Dez dias após e evento, o país propôs ao CDH a realização de uma sessão especial para discutir o apoio do Conselho ao processo de recuperação haitiano dentro de uma abordagem de direitos humanos.

O pedido pela realização da sessão foi respaldado por 36 outros países- membros do CDH e uma gama de outras nações observadoras, e dentro de cinco

                                                                                                                         

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Segundo jornal The New York Times, as estimativas variam de ao menos 200 mil, de acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e 316 mil, segundo o próprio governo do Haiti. Ref. Online 16.

122 Human Rights Watch. "World Report 2011", p. 248.

123 Human Rights Watch. "World Report 2011", p. 248 a 251.

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dias após a requisição, a reunião especial foi realizada nas dependências da ONU em Genebra.

O tempo de reação brasileiro demonstrou que o país continuava ativo no Conselho mesmo após uma intensa agenda no órgão nos anos anteriores; que ele permanecia alerta aos mecanismos e instruções institucionais do CDH; e que mantinha sua disposição de liderança e diálogo aberta não apenas nas sessões regulares, mas também nas especiais.

A proposta introduzida125 pelo Brasil foi bem recebida pelos membros do Conselho, e o texto foi co-patrocinado por nada menos do que 100 países. O respaldo foi traduzido também na aprovação da matéria, que foi adotada sem votos e sem propostas de emendas. Como notou Celso Amorim em discurso durante a sessão:

A realização desta sessão, em estreita coordenação com o Haiti e com o amplo apoio dos membros e dos observadores do Conselho de Direitos Humanos, demonstra nossa vontade coletiva de ajudar o Haiti neste

difícil momento de perda e dor.126

Além de ressaltar a proatividade e disposição da diplomacia brasileira, a introdução da proposta sobre o Haiti demonstrou um posicionamento novo do país no Conselho, indicando que o Brasil nem sempre busca se distanciar da introdução de temas específicos sobre países, diferindo um pouco de como foi marcada seu primeiro mandato no órgão.

Ora, uma proposta para promoção de direitos no Haiti serve muito bem ao Brasil, que é o líder militar da missão da ONU no país, a MINUSTAH, desde 2004 e tem todo interesse na estabilidade do país. Além disso, o conhecimento direto brasileiro da situação lhe confere respaldo sobre o tema.

Por isso, abordar a questão confluiria diretamente com os planos de avanço diplomático brasileiro no front de direitos humanos e poderia contribuir, senão para o sucesso militar da operação brasileira no país, pelo menos para

                                                                                                                         

125 Proposta do Brasil à 13ª sessão especial do CDH. ONU Doc A/HRC/S/13/2.

126 Discurso do ministro Celso Amorim na 13ª sessão especial do Conselho, em 27 de janeiro de

notar que o Brasil tem operado em mais esferas normativas para promover melhores no Haiti além da Assembleia Geral.

Mas o mais importante a ser ressalvado sobre a proposta brasileira do Haiti foi que ela não se distanciou dos princípios da diplomacia brasileira de não intervenção sobre outro país, apesar de não ser praxe o Brasil apresentar esse tipo de matérias específicas no Conselho. Pelo contrário, o texto brasileiro remete à mesma não interferência e promoção de direitos humanos quanto as suas matérias temáticas, mas desta vez sobre um país específico. Diz o próprio texto:

O Conselho de Direitos Humanos... Reafirma a soberania do Haiti e sua integridade e ressalta o papel do governo haitiano em estabelecer as prioridades nacionais para o processo de recuperação; Ressalta a importância de renovado e sustentável compromisso para se dirigir a desafios existentes e adicionais para promover e proteger todos os direitos humanos no Haiti, e encoraja o governo haitiano a continuar seus esforços para promover e proteger todos os direitos humanos no

país.127

Ou seja, a própria matéria que o Brasil introduziu, a fim de melhor direcionar e apoiar os direitos humanos naquele país, delega ao próprio país objeto de análise o papel central de decidir políticas.

Mas apesar de ressaltar a prevalência do governo do Haiti nos esforços de reafirmação dos direitos humanos no país, o texto também cobra "auxílio coordenado"128 da comunidade internacional para apoiar o governo haitiano nos esforços de direitos humanos, especialmente através de recursos, evidenciando o direcionamento do Brasil sobre o espírito de cooperação multilateral muito abordado pela diplomacia brasileira.

O Conselho de Direitos Humanos... encoraja as respostas pelo sistema da ONU e pela comunidade internacional como um todo para auxiliar o governo do Haiti a promover e proteger todos os direitos humanos no Haiti após o terremoto, como recursos que buscam fornecer dinheiro e

alimentos para os trabalhos.129

                                                                                                                         

127 Relatório da 13ª sessão especial do CDH. ONU Doc A/HRC/S/13/2.

128 Relatório da 13ª sessão especial do CDH. ONU Doc A/HRC/S/13/2.

129

Apesar de decisiva, a resolução manteve certa cautela em sua retórica. Em nenhuma parte do texto o Brasil convoca o Estado haitiano, nem outros países, a agir sobre problemas específicos. A astuta escolha de palavras na resolução, como "expressa preocupação", "ressalta a necessidade" e "enfatiza a

importância", busca a não combatividade e a não intervenção de um modo sutil

mas ainda assim preocupado.

Tome-se como exemplo o texto apresentado pelo Paquistão, em nome da Organização da Conferência Islâmica, na 1ª sessão especial do CDH, em proposta sobre a situação de direitos humanos em território palestino - que o Brasil, inclusive, votou a favor. No texto, a escolha forte de palavras faz exigências específicas para o Estado israelense e acusações de sérios problemas.

O Conselho de Direitos Humanos... exige que Israel, o poder de ocupação, encerre suas operações militares no Território Ocupado Palestino, cumpra escrupulosamente as provisões da lei humanitária internacional e da lei de direitos humanos, e se restrinja de impor

punição coletiva a civis palestinos.130

Na outra ponta, pode-se considerar também o exemplo de uma resolução dos Estados Unidos apresentada na 16a sessão especial do CDH, em 2006, a qual foi adotada, também, com voto favorável brasileiro. O texto dos EUA "inequivocadamente condena o uso de força letal contra manifestantes pacíficos por autoridades sírias" e "insta as autoridades da Síria a não mais realizarem quaisquer represálias contra pessoas que participaram de manifestações pacíficas"131.

Ora, o Brasil em sua proposta do Haiti não indicou violações específicas de direitos humanos no país, tampouco condenou ou exigiu quaisquer atitudes por parte do próprio Estado sob análise ou de outras nações. Isso foi notado, inclusive, por Amorim:

                                                                                                                         

130 Relatório da 1ª sessão especial do CDH. ONU Doc A/HRC/S-1/3.

131

A sessão de hoje também é um indicativo de que o Conselho de Direitos Humanos pode desenvolver uma cultura diversa. As Sessões Especiais deliberam, na maior parte das vezes, sobre violações graves aos direitos humanos e a necessidade correspondente de proteger as vítimas. Isso é uma obrigação da comunidade internacional com a qual estamos todos de acordo. Hoje, porém, estamos aqui não apenas para proteger, mas

também para promover os direitos humanos.132

Seja pelo fato de o Brasil ser parte interessada na questão, seja por o Haiti, pelo menos a priori, não ter demonstrado violações aos direitos humanos sistemáticas em grande escala - como no caso de genocídio, casos de tortura patentes ou recorrentes ou restrição aberta a liberdades - o Brasil, em seu texto, apenas expressou preocupação e apontou áreas nas quais o Haiti poderia melhorar e se endereçar. "A promoção de todos os direitos humanos - econômicos, políticos, civis, culturais e o direito ao desenvolvimento - deve ser igualmente integrada aos esforços de ajuda e de reconstrução do Haiti"133, afirmou Amorim em seu discurso.

Essa abordagem temática pediu por cuidados como "a situação vulnerável de crianças, mulheres, desabrigados, idosos, deficientes e feridos", além de "se dirigir a obstáculos adicionais por conta da devastação em áreas como acesso a alimentos, habitação adequada, acesso à saúde, água e saneamento, educação, trabalho e registro civil"134, provando um distanciamento de um texto mais forte e que apontava casos sensíveis.

Mas esse distanciamento demonstra também um excesso de cautela e de busca por aprovação que poderia dar um caráter inócuo à matéria.

Afinal, é bem mais fácil deliberar sobre temas genéricos do que pedir por uma ação direta contra tropas da própria ONU no Haiti. Assim, seria difícil o texto brasileiro condenar o caso no qual soldados uruguaios e paquistaneses das

forças da MINUSTAH135 foram enviados para seus países por estuprarem garotos

                                                                                                                         

132 Discurso do ministro Celso Amorim na 13ª sessão especial do Conselho, em 27 de janeiro de

2010. Ref. Online 17.

133

Discurso do ministro Celso Amorim na 13ª sessão especial do Conselho, em 27 de janeiro de 2010. Ref. Online 17.

134 Relatório da 13ª sessão especial do CDH. ONU Doc A/HRC/S/13/2.

135 "Soldados paquistaneses da ONU são condenados por abuso no Haiti". Reuters, 13 de março de 2012.

haitianos136, ou pedir pela investigação sobre a acusação de que soldados da força de paz poderiam ser a fonte de um surto de cólera no país, como

mencionado no relatório de 2012 da Human Rights Watch137.

Ao buscar uma abordagem temática dentro de uma proposta com características específicas, o país optou por um caminho menos confrontacional e de mais fácil aceitação, ao custo de deixar intocados temas mais espinhosos e mais urgentes.

Embora possa parecer contraditória essa abstenção em apontar casos específicos a serem tratados no Haiti, a exemplo do que fizeram Síria e EUA, ela delineia a atuação mais generalista neste caso e demonstra que, até mesmo quando busca ampliar o escopo de sua participação e abordar a situação de países, o Brasil ainda assim mantém sua postura essencial de, pelo menos no âmbito do CDH, não interferência e característica temática.

                                                                                                                         

136 Editorial do Human Rights Watch "Can U.N. help itself from underwriting human rights

abuses?", de 24 de julho de 2012. Ref. Online 18.

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