PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO-PUC-SP
ANTÔNIO SÉRGIO SPAGNUOLO FILHO
EM BUSCA DE UMA AGENDA TEMÁTICA:
O BRASIL NO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
ANTÔNIO SÉRGIO SPAGNUOLO FILHO
EM BUSCA DE UMA AGENDA TEMÁTICA:
O BRASIL NO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de Mestre no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, sob orientação da Profª Dra. Vera M. Chaia.
SÃO PAULO
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
Precisa ficar claro que chegou a hora de todos os Estados redefinirem a segurança global, colocando os direitos humanos no centro desse debate. Ao fazê-lo, cada nação deve exercer suas responsabilidades de maneira proporcional a seus meios. Só então os Estados responsáveis – e não meramente os mais fortes – serão capazes de oferecer uma estabilidade duradoura a nosso mundo.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de não agradecer aos meus pais, Flávia e Sérgio. De tão
bom grado e com tamanha frequência foram seus inestimáveis e necessários
auxílios neste meu percurso. E não me refiro apenas a este trabalho. Como dizer
a eles "obrigado", algo que nunca sequer pediram? Aliás, nunca me pediram
nada. Deram tudo. A minha gratidão a eles está além de qualquer coisa a ser dita.
Agora, aos agradecimentos...
À minha professora e orientadora Vera M. Chaia, pela sabedoria, disponibilidade -
até hoje não sei como ela arruma tempo - e amabilidade aparentemente
inesgotáveis, e que foi minha referência nessa jornada.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pois
sem a bolsa esse mestrado não seria possível.
A todos os excelentes professores da PUC-SP e aos exemplares alunos do
mestrado de Ciência Sociais, muitos dos quais nem o nome sei.
Aos meus bons amigos, que sabem quem são.
A minha família, especialmente as minhas irmãs Laura e Cláudia e meu irmão
Felipe. Aos meus finados avós João, Hercy e Nilton, e à minha resiliente - tomara
que por muitos anos a fio - avó Celeide. Aos meus padrinhos, Antonio e Marta, a
minha tia Célia e minhas primas Tatiana, Milena, Mariana e Márcio. As minhas
lindas afilhadas Milena e Luciana.
Por fim, à minha mulher, Carol, pela paciência, pela disposição e, principalmente,
RESUMO
A partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da República, em 2002, o Brasil tem adotado uma postura internacional mais ativa. Neste cenário, o país tem promovido a temática dos direitos humanos, e, inclusive, se mostrado assertivo em suas posições Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, embora também demonstrado abordagens mediadoras e conciliadoras. Cabe a esta pesquisa fazer um balanço da atuação do Brasil neste órgão, cada vez mais necessário para o debate global de direitos, através das posições adotadas pelo país e da confluência com suas estratégias de política externa, a fim de traçar um perfil entre discurso e prática na área de direitos humanos nas relações internacionais brasileiras.
ABSTRACT
With the election of Mr. Luiz Inácio Lula da Silva as president in 2002, Brazil began to pursue a more proactive international policy. In this context, Brazil has asserted itself on various issues at the United Nations Human Rights Council, an organ that is increasingly important to the global human rights debate. Brazil has also shown its willingness to act as a mediator at the council. The objective of this study is to review Brazilian diplomacy at the body, analyze the country's positions there, and compare them to Brazil's overall foreign policy strategy. In doing so, the study will evaluate the coherence between Brazil's rhetoric and practice in the human rights arena.
LISTA DE SIGLAS
ONU Organização das Nações Unidas
MINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti
CDH Conselho de Direitos Humanos
PIB Produto Interno Bruto
ONG Organização Não Governamental
ECOSOC Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
PANADM Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças
AI Amnesty International
HRW Human Rights Watch
RPU Revisão Periódica Universal
ACDH Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos
GRULAC Grupo de Estados Latino-Americanos e Caribenhos
NAM Movimento dos Países Não Alinhados
SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UN-HABITAT Programa das Nações Unidas Para Assentamentos Humanos
UNDPA Departamento de Assuntos Políticos das Nações Unidas
OEA Organização de Estados Americanos
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO……… 09
1 DOS DIREITOS HUMANOS MODERNOS... 16
1.1 Da ONU e dos Direitos Humanos... 16
1.2 Da Comissão ao Conselho de Direitos Humanos... 28
2 DA ATUAÇÃO DO BRASIL... 42
2.1 Do Brasil no sistema ONU de Direitos Humanos... 42
2.2 Do Brasil e o CDH... 45
2.3 Das sessões regulares... 52
2.4 Das sessões especiais... 59
2.5 Da proposta do Brasil sobre o Haiti... 63
2.6 Do Brasil na Revisão Periódica Universal (2008)... 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 89
INTRODUÇÃO
O Brasil embarcou em uma nova jornada no contexto dos direitos
humanos no âmbito internacional após 1988. Seguindo sua determinação de
"prevalência”1 desses direitos para a política exterior definida inclusive na
Constituição Federal instituída naquele ano, o país tem elevado paulatinamente
seus discursos externos em torno do tema e buscado o fortalecimento do diálogo
nas mesas internacionais.
Dentro da última década, o país apresentou uma conspícua trajetória nas
relações internacionais à medida que tenta se posicionar como um ator mundial
de alta relevância, projetando-se também como ator de peso fora da América
Latina. O trabalho nas relações internacionais brasileiras foi ganhando tom mais
enérgico quanto à asserção do Brasil como aspirante a potência mundial,
principalmente a partir do primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva2. Basta tomar como exemplo a intensa agenda diplomática que o
ex-presidente e seu alto escalão, liderado pelo então chanceler Celso Amorim,
adotaram a partir de 2003: a busca por um assento permanente no Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU); reivindicações mais firmes
na Rodada Doha de negociações comerciais e a posição de líder dos países
emergentes no G223; a liderança do G204, em 2008; o convite para se juntar ao
G8 na reunião de La Áquila, em julho de 2009. A lista não para aí.
Na agenda, pode-se incluir o importante reconhecimento militar junto à
comunidade internacional por liderar a força militar da Missão das Nações Unidas
para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) e a garantia de substancial
notoriedade internacional pelo desempenho e liderança no período da crise
econômica global começada em 2008. Além disso, o país logrou um importante
1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Ref. Online 1. 2
LIMA, Maria Regina Soares. La política exterior brasileña y los desafíos de la governanza global. Revista Foreign Affairs LatinoAmérica. Vol 9, n. 2. p. 27.
3 Grupo de 23 países emergentes criado em Cancun, México (1999), com o objetivo de discutir
questões agrícolas frente às nações industrializadas. Também conhecido como grupo dos 20.
amadurecimento nas relações dentro do BRIC5, no comércio exterior e na
produção industrial, agrícola e energética. E não se pode deixar de fora seu
tempo dentro da Comissão de Direitos Humanos da ONU nas últimas décadas,
nem seu constante interesse de participar ativamente do Conselho de Direitos
Humanos (CDH) das Nações Unidas.
Esse movimento de assertividade nas relações internacionais tem um valor
forte dentro da América Latina, onde frequentemente procura servir como
potência inconteste da região e muitas vezes como credor dessas nações, além
de ser a maior economia, em termos de Produto Interno Bruto (PIB), de toda a
região.6
Neste contexto de inserção, crescendo a relevância e participação do Brasil
na comunidade internacional, principalmente frente aos países emergentes,
crescem também sua visibilidade e responsabilidade no desenvolvimento desses
Estados aos olhos das principais potências mundiais e à comunidade mundial de
nações, reunida na ONU.7
Levando-se em conta uma visão racionalista do pensamento nas relações
internacionais8, as Nações Unidas ainda têm um duro caminho para chegar ao
mesmo patamar de poder político de alguns Estados, mas sua aceitação
internacional não pode ser reduzida a ponto de ser considerada um organismo
meramente humanitário, de manutenção de paz ou de desenvolvimento. Apesar
de diversos revezes9 a ONU ainda é um ator político internacional, palco de
debates importantes.
Sendo assim, o papel desempenhado pelo Brasil dentro dessa instituição
multilateral tem a tendência de contar, junto à diplomacia do País com outros
Estados, como um catalisador da política externa brasileira.
5
Acrônimo criado pelo economista Jim O’Neill para designar os quatro maiores países emergentes do mundo: Brasil, Rússia, China e Índia.
6 O Brasil tem o maior PIB da região, segundo dados no site do IBGE.
Ref. Online 2. 7
A ONU conta com 193 países-membros. 8
A visão racionalista admite diversos atores internacionais, enquanto reconhece o protagonismo dos Estados no sistema internacional. Williams Gonçalves, em “Relações Internacionais” (2002, p. 59).
9 Como o fracasso em convencer os Estados Unidos a não invadir o Iraque em 2003 apesar de o
Com a intensificação da participação do Brasil no cenário da política
externa e suas ambições, é imperativo reconhecer – e conhecer – a impedância
do posicionamento do País quanto aos direitos humanos, especialmente perante
a comunidade internacional. Apesar de esse posicionamento ter igual importância
nas políticas adotadas domesticamente, é nos fóruns internacionais que o país
tem a chance de se destacar nos temas de direitos e, assim, melhorar sua
atuação interna.
Isso porque, ao fim da bipolaridade da Guerra Fria, os direitos humanos
têm sido alçados cada vez mais como tema global, vistos não apenas como uma
aplicação nacional de direitos, mas sim como necessária para a estabilidade
mundial. Afirmou o embaixador Lindgren Alves (2003):
Sem dúvida, o fim da Guerra Fria foi fator determinante para a afirmação dos direitos humanos como tema global. Dadas às peculiaridades de tais direitos, necessariamente realizados dentro das jurisdições nacionais, era mais fácil, no mundo bipolar de confrontação ideológica entre comunismo e capitalismo, escamotear as violações detectadas internacionalmente com argumentos de que as denúncias, normalmente originadas do lado adversário, tinham por finalidade exclusiva desacreditar a imagem positiva que cada bloco oferecia a si mesmo. Com exceção dos casos mais gritantes, como o da África do Sul, os problemas de direitos humanos, conquanto denunciados, tendiam a ofuscar-se dentro das rivalidades estratégicas das duas superpotências. Hoje, com a realidade de cada situação emergindo de forma transparente aos olhos do mundo - inclusive pelos olhos da CNN -, é fácil verificar a gravidade da situação dos direitos individuais e coletivos em quase todo o planeta, e as ameaças que as violações maciças acarretam não somente para a paz social interna, mas também, muitas
vezes, para a estabilidade internacional.10
É justamente isso que esta pesquisa almeja: avaliar como o Brasil tem se
posicionado no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas, a fim de saber seu comportamento na mais alta instância de avaliação de
direitos da entidade, no contexto dessa realidade de direitos humanos como tema
global e parte das relações internacionais.
10 ALVES, José Augusto Lindgren.
Esse estudo trata de um tema recente, mas não é necessariamente novo.
Desde a criação do Conselho, foram realizados alguns artigos acadêmicos,
relatórios de Organizações Não governamentais e até uma dissertação de
conclusão de curso11 de graduação que buscaram discorrer sobre a atuação do
Brasil no CDH. Todos excelentes trabalhos, com análises contextualizadas e
embasadas, que trataram de casos como a posição do Brasil sobre os direitos
humanos em Darfur e Coreia do Norte, por exemplo. Mas essas pesquisas
mencionadas carecem, em grande parte, de uma análise comparativa mais
contundente do Brasil frente a outros países no CDH, e da contextualização da
abordagem brasileira dentro da estratégia de afirmação do país nesse organismo.
É bem possível realizar uma pesquisa geral contextualizada a partir da
compilação de acontecimentos. A ONG brasileira de direitos humanos Conectas,
por exemplo, faz um ótimo trabalho quanto a isso, tendo até incluído nas tabelas
de seus estudos anuais os países que apresentaram matérias. Mas esta pesquisa
considera que, para uma análise crítica eficaz, é necessário também uma
construção comparativa sistemática.
A explicação para isso é evidente: a comparação dá sentido ao dado. Em
um cenário meramente explicativo, digamos que uma pessoa, por exemplo, teve
seu salário elevado de R$500,00 para R$1.000,00, dobrando seus rendimentos.
Mas isso seria apenas um dado, que por si só não explica quase nada. Qual o
salário mínimo? Qual a média de renda da população? Qual a inflação? Isso é
muito ou é pouco dentro do contexto salarial? A comparação com outros
indicadores é fundamental para aplicar conhecimento a este dado.
Então, considere-se a mesma coisa para um país. Se o Brasil apresentou
17 matérias de 2006 a 2011 no CDH, menos de quatro por ano, então foi pouco,
certo? Errado. Impossível dizer sem saber quantas matérias foram adotadas no
geral e colocar este número frente aos de outros países. Alguém poderia
surpreender-se ao saber que o país ficou no quinto lugar no ranking dos países
que mais apresentaram propostas na instituição de direitos humanos da ONU.
11 TEÓFILO, Priscyla Barcelos.
A partir deste ponto, esta pesquisa pretendeu avançar em como foi a
atuação do Brasil no CDH quanto às matérias propostas, e o efeito delas no
âmbito geral do Conselho. Em um primeiro momento, pode parecer uma pesquisa
puramente quantitativa. Mas, ao desenrolar do trabalho, ver-se-á a
contextualização e orientação geral do Brasil dentro de um quadro específico do
sistema normativo das Nações Unidas para direitos humanos, assim como de
políticas internas e dos discursos do país sobre este tema nas relações
internacionais.
Os materiais de apoio aqui para esta finalidade serão os relatórios das
ONGs Human Rights Watch, Anistia Internacional e Conectas, entre outras, e
também de documentos do governo brasileiro, como do Itamaraty e da Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, além de documentos da
própria ONU, a fim de repercutir os posicionamentos do Brasil no CDH.
Há dois motivos para a escolha dessas ONGs. O primeiro é que elas são
reconhecidas internacionalmente na promoção de direitos humanos, e participam
ativamente dos fóruns internacionais. O segundo é que estas entidades fazem
críticas e análises específicas sobre a situação dos direitos humanos no Brasil e
sua atuação no CDH, inclusive colaborando com material para a Revisão
Periódica Universal. Segundo Mitoma (2008):
Muitos entre os mais dramáticos desenvolvimentos na vida internacional nas últimas décadas têm sido emergentes de uma vocal, comprometida e influente rede de organizações transnacionais não governamentais (ONGs) dedicadas ao desenvolvimento, difusão e realização de padrões universais de direitos humanos em todo o mundo. Em uma escala sem
precedentes, estas organizações buscaram construir uma
conscientização e consciência globais, enquanto também trabalharam
para transformar as condições e condutas locais.12
Não se pode entender esta como uma pesquisa sobre a situação dos
direitos humanos no Brasil nem do marco legal desses direitos, e qualquer
12 MITOMA, Glenn Tatsuya. Civil Society and International Human Rights: The Commission to
Study the Organization of Peace and the Origins of the UN Human Rights Regime. Human Rights
avaliação nesse sentido é de caráter explicativo e de contexto. Tampouco é
objetivo deste trabalho discutir o conceito de direitos humanos, e muito menos
traçar sua história crítica ou arcabouço no Direito Internacional. Também não faz
parte do trabalho discutir os valores e o papel da ONU, nem a atuação do Brasil
nela como um todo.
Esta pesquisa busca apontar, então, como a trajetória do Brasil no CDH o
tem ajudado a avançar os direitos humanos para a vanguarda das estratégias de
sua política externa, em sua busca por maior notoriedade internacional e papel de
liderança.
O caminho a ser seguido consiste em três etapas: 1. breve histórico da
concepção moderna de direitos humanos a partir da Declaração de 1948, e a
criação do Conselho de Direitos Humanos; 2. a representação internacional do
Brasil em direitos humanos, metodologia e análise quantitativa das medidas13 do
Brasil no CDH e desempenho do país em sua avaliação de direitos humanos no
CDH em 2008 e o de um caso específico; 3. as considerações finais a partir da
análise crítica da repercussão da atuação do Brasil no CDH.
A primeira etapa consiste em traçar um breve perfil histórico dos direitos
humanos modernos, como contextualização e explicação do conceito do que esta
pesquisa considera por direitos humanos, visando achar um ponto congruente
sobre como a comunidade internacional adota esses direitos e buscando
estabelecer uma definição globalmente aceita para o termo. Também será tratada
a transição da Comissão de Direitos Humanos que levou à criação do CDH, a fim
de se explicar a importância, os desafios e as ferramentas desta instituição, criada
em 2006.
Já a segunda etapa é amplamente baseada na análise quantitativa da
atuação brasileira no CDH, e também dependente de contexto sobre o Brasil e o
órgão. Uma leitura numérica da atividade brasileira, através da apresentação de
decisões e resoluções, votos e patrocínios não necessariamente define o tom
geral do crescimento da representatividade do país no cenário externo, mas as
13 Moções, pareceres, resoluções e todas as ferramentas para monitoramento e tomadas de
decisões tomadas dentro da instituição devem sim fornecer um panorama do
caminho seguido pelo Brasil ao longo da breve existência do CDH, o que reflete
diretamente em na posição – e representatividade – global do país sobre direitos
humanos. Além disso, a contagem e a apresentação dos posicionamentos e da
atividade brasileira servem para balizar a análise crítica desta pesquisa.
O estudo de caso específico tratará da proposta de resolução brasileira
sobre a situação pós-terremoto no Haiti, um caso fora da curva de sua atuação no
CDH que merece ser mencionado.
Por último, será realizada uma análise com o intuito de estabelecer um
balanço crítico da postura brasileira no CDH, seu direcionamento na política
externa e sua projeção no cenário internacional dentro dos direitos humanos.
Não será almejado um estudo mais diverso de casos por entender-se que
uma análise de cunho geral, como é a proposta desta pesquisa, servirá como
base para tais estudos subsequentes, a fim de lastreá-los com a exposição de
dados e de uma crítica generalizada. Alguns casos serão tratados pontualmente
com a finalidade de servirem de exemplos para respaldar a tese central dessa
pesquisa de que o Brasil busca, principalmente, uma agenda temática de direitos
humanos nas relações internacionais dentro do sistema da ONU.
Apesar de estudos sobre direitos humanos no Brasil e no mundo serem
constantes e bons, a falta de um estudo acadêmico aprofundado e específico
sobre o CDH, e também sobre a atuação do país nele, torna este trabalho um
tanto isolado de muito da produção acadêmica brasileira sobre direitos humanos
1 DOS DIREITOS HUMANOS MODERNOS
1.1 Da ONU e dos Direitos Humanos
Em 1946, um célebre comitê formado por figuras políticas e filosóficas de
nove países14 e encabeçado pela ex-primeira-dama norte-americana Eleanor
Roosevelt reunia-se pela primeira vez para deliberar sobre o texto do que mais
tarde seria a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em dezembro
de 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),
tornado-se um dos mais altos pilares da organização e de muitos discursos nas
retóricas das relações internacionais dos países que a compõe.15
O texto final elaborado pelo comitê e adotado pela Assembleia Geral
apresentou, assim, o que pode ser chamado de "concepção contemporânea de
direitos humanos".16 A Declaração trouxe ao debate global o direito básico das
pessoas e balizou-se como um padrão internacional sob o qual foram
identificados quais os direitos fundamentais gozados pelos indivíduos.
Fundamentais porque é compreendido, vistos os esforços da humanidade de se
perpetuar e de evitar catástrofes de força maior criadas pelo homem, que todo ser
humano tem o direito à vida e, tão importante quanto o próprio direito de nascer, à
dignidade a partir de seu nascimento.
Modernizavam-se os direitos humanos – um termo gramaticalmente
composto que alçou ao debate, tanto das relações internacionais quanto das
políticas internas de cada nação, o oximoro de ser, ao mesmo tempo,
notoriamente amplo (universal) e significativamente específico (do indivíduo).
14 Participaram do comitê de elaboração também: Charles Malik (Líbano); Alexandre Bogomolov
(União Soviética); Peng-shun Chang (China); René Cassin (França); Charles Dukes (Reino Unido); William Hodgson (Austrália); Hernan Santa Cruz (Chile) e John P. Humphrey (Canadá). Ref. Online 3.
15 GLENDON, Mary Ann
. A World Made New: Eleanor Roosevelt and the Declaration of Human Rights– 2001.
16 PIOVESAN, Flávia.
Compreendeu-se, à época de sua aprovação, que tal declaração tinha
como objetivo criar princípios básicos com a finalidade de evitar desastres
humanos como o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, a partir do
estabelecimento de diretrizes fundamentais sobre os direitos básicos do homem.
Um direcionamento que deveria se tornar tão incrustado no cerne de qualquer
base moral, política e constitucional dos Estados a ponto de ser minimamente
aceitável em todas as sociedades.
Essa modernização dos direitos passou a ser ampliada, então, a tudo o
que pudesse tornar a vida das pessoas mais digna. Como bem definido por
Moraes (1998), os direitos humanos correspondem a um:
(...) conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que se tem por finalidade básica o respeito de sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana.17
Como notou Lindgren Alves (2003), a Declaração, então, tratava mais
amplamente dos direitos civis e políticos, dos artigos 3º ao 21º, enquanto também
abordava, embora em menor escala, os direitos econômicos, sociais e culturais,
dos artigos 22º ao 28º.
A nova noção de direitos humanos passou a instituir um caráter, segundo
Piovesan (2011), "de universalidade e indivisibilidade" desses direitos. A
universalidade garantiria, assim, a noção de que o ser humano nasce com seus
direitos básicos independentemente de sua origem, enquanto a indivisibilidade se
caracteriza por abarcar direitos que são, a priori, relacionados entre eles, sejam
direitos políticos e civis ou sociais, econômicos e culturais, como ampliados por
outros pactos. Essa busca de dignidade do ser humano e para o ser humano,
desdobrou-se então para uma gama de direitos sem os quais seria inviável
conceber a completude direitos humanos atuais como apresentados na
Declaração. Taiar (2010) avança na questão:
17 MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral (1998). In: TAIAR, Rogério.
Os direitos humanos compõem-se dos direitos individuais fundamentais (vida, liberdade, igualdade, propriedade, segurança); dos direitos sociais (trabalho, saúde, educação, lazer e outros); dos direitos econômicos (consumidor, pleno emprego, meio ambiente); e dos direitos políticos (formas de realização da soberania popular). Estes grupos se complementam e integralizam de tal forma, que sem a existência de
todos eles, torna-se impossível a plenitude dos direitos humanos.18
Mas, para essa universalização dar certo, era necessária adesão. Adesão
de países para dentro do sistema da ONU e seus valores mais básicos e adesão
à condição internacional dos direitos.
A Carta da ONU serviu como ponto de partida para os avanços dos direitos
humanos no mundo, mas foi a Declaração que avançou como marco para a
elaboração de diversas ferramentas internacionais que buscam salvaguardar e
promover tais avanços ao ser humano, e que, como explica Piovesan (2011),
levaram a uma "formalização de um sistema internacional de proteção desses
direitos” 19. Assim, instituição da Declaração trouxe também o tema para a arena
do Direito Internacional.
A guerra suscitou, portanto, o duplo movimento de universalização e internacionalização da questão dos direitos humanos. Universalização, já que todos os povos e todos os governos passaram a aceitar a defesa dos direitos humanos como questão política central, refletida em todas as constituições nacionais. Internacionalização, porque passou-se a aceitar também que a defesa dos direitos humanos tem importante dimensão internacional, na condição do objeto de negociações diplomáticas, de instituições internacionais e do direitos internacional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi dada a público em 10 de dezembro de 1948 pela ONU, constitui a síntese desse duplo
movimento.20
Apesar de não constituir ela mesma nenhum tratado nem qualquer outro
tipo de mecanismo com poder vinculativo, a Declaração representou um marco
18
TAIAR, Rogério. Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo, MP, 2011. p. 29.
19 PIOVESAN, Flávia.
Direitos Humanos e Justiça Constitucional. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 41.
20 SILVA, Guilherme A. e GONÇALVES, Williams.
para a sociedade moderna e balizou a elaboração de muitas leis internas e
acordos internacionais21 dos países.
Dela originaram-se pactos importantes para o sistema internacional e que
mais tarde vieram a ser incorporados como ampliações da Declaração, mais
notoriamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, e o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos e Sociais, do mesmo ano.
Com efeito, a lista não parou por ai. Dezenas instrumentos, como
convenções, protocolos e regulamentos foram depois realizados em diversos
temas que trataram desde direitos das crianças até tortura, racismo, trabalho e
meio ambiente, entre diversos outros.
A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração confere lastro axiológico e unidade valorativa a esse campo do Direito, com ênfase na
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos
humanos.22
A Declaração, entretanto, não ficou restrita apenas ao âmbito internacional,
e também refletiu-se nos próprios princípios internos das nações globalmente.
Desta forma, atualmente a maioria das constituições nacionais do planeta se
apoiam nos valores pregados nessa carta em algum grau, principalmente por
conta de seu caráter "universalizante” 23.
O caminho para isso foi paulatinamente implementado. O desastre
causado pelo nazismo e pela Segunda Guerra Mundial deixou um grande trauma
mundial, principalmente na Europa, e a busca pela universalidade dos direitos foi
21 A Declaração sumariza "o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações,
com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade [...] se esforcem, através do ensino e da educação, em promover o respeito a esses direitos e liberdades e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, em assegurar seu reconhecimento e a sua observância universais e (Cont.) efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-membros quanto entre os povos dos territórios sob a sua jurisdição" (Cont.) Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em PIOVESAN, Flávia (Coord.). Código de Direito Internacional de Direitos
Humanos. São Paulo, DPJ, 2008, p. 15 e 16.
22 PIOVESAN, Flávia.
Direitos Humanos e Justiça Constitucional. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 41.
23
se tornando um tópico de peso na retórica das políticas externas, apesar de
algumas vezes conflitar com os interesses de grandes potências.
Os Princípios da Nuremberg24 deixaram a questão de violações da
dignidade humana em tempos de paz intocada. Também os fizeram os fundados da Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial. O Acordo da Liga não continha nenhuma menção dos direitos humanos, e o mesmo poderia ser verdade da Carta das Nações Unidas. À véspera da conferência de São Francisco de 1945, uma coisa estava clara: As Grandes Potências não iriam tomar a iniciativa em fazer os direitos humanos um tema central de seus arranjos do pós-guerra. Apenas não
era parte de seus interesses fazer isso.25
Glendon (2001) cita que, antes de a Carta da ONU estar completa,
representantes do Brasil, Canadá, Chile, Cuba, Egito, França, México e outros
países continuaram pressionando as grandes potências por um papel mais amplo
dos direitos humanos no documento.
Essa forte pressão de diversos países aliados aos Estados Unidos
culminou em um movimento político do governo norte-americano para tentar
engajar esses direitos de forma mais abrangente dentro da Carta da ONU. O
apoio dos EUA, diz Glendon, foi essencial para o crescimento dos direitos
humanos na esfera internacional, apesar das diversas colisões do gigante
norte-americano com o tema à época da elaboração da Carta da ONU, em 1945.
Quando a Carta da ONU foi finalmente finalizada, em 26 de junho do
mesmo ano, "os princípios dos direitos humanos estava costurados em seu texto
em diversos pontos”, analisou Glendon.26
24 Carta elaborada em 1945 pelos Aliados da 2a Guerra Mundial que declaravam que "realizar
uma guerra de agressão era um crime contra a sociedade internacional, e que perseguir, oprimir ou cometer violência contra indivíduos ou minorias sob fundamentos políticos, raciais ou religiosos em conexão com tal guerra, ou exterminar, escravizar, ou deportar populações civis era um crime
contra a humanidade". Apud GLENDON, Mary Ann. A World Made New: Eleanor Roosevelt and
the Declaration of Human Rights– 2001. locação 338 da versão do livro para Kindle-iPad. Tradução do autor
25 GLENDON, Mary Ann.
A World Made New: Eleanor Roosevelt and the Declaration of Human Rights– 2001
26 GLENDON, Mary Ann.
Assim, desde a criação da ONU, pela ratificação da Carta em 24 de
outubro, a “pauta” direitos humanos foi continuamente alçada para entre os
principais tópicos das relações internacionais dos países signatários, culminando
na aprovação da Declaração por ampla e indisputada maioria27, o que
representou um reconhecimento do caráter de universalização dos direitos
humanos entre os membros da ONU, e que subsequentemente foi ampliado aos
demais países que vieram a integrar a comunidade internacional. Segundo
Piovesan (2008):
A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita pelos Estados ao seus preceitos e a inexistência de qualquer voto contrário às suas disposições, conferem à Declaração Universal o significado de um
código e plataforma comum a serem seguidos pelos Estados. 28
Mas o que parecia a solução peremptória para os problemas relacionados
à implementação global dos direitos humanos não passou incólume à
interpretação própria dos países sobre esse tema e sobre a elaboração das
ferramentas necessárias para lidar com casos de violações sistemáticas em
países que reconhecem esses direitos na esfera internacional.
Reivindicações defensíveis de universalidade, seja conceitual ou substantiva, tratam sobre os direitos que temos como seres humanos. Se todos, ou até mesmo se alguém, goza desses direitos é outra questão. Em muitos países atualmente o Estado não apenas se recusa a implementar, mas grosseiramente e sistematicamente viola, a maior parte dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente. E em todos os países, significantes violações de pelo menos alguns direitos humanos ocorrem diariamente, embora quais direitos sejam violados, e
com qual severidade, varia dramaticamente.29
27
A Declaração foi aprovada por 48 países, enquanto 8 países se abstiveram de votar a carta, que não teve nenhuma objeção.
28 PIOVESAN, Flávia (Org).
Código de Direito Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, DPJ, 2008, p. 19.
29 DONNELLY, Jack. The Relative Universality of Human Rights. Human Rights Quarterly, Vol 29,
Apesar da ampla aceitação à Declaração em um primeiro momento, o
conceito de universalização encontrou resistência, e uma preocupação sempre
este no cerne das discussões de direitos humanos: a questão da soberania.
Essa preocupação é habilitada a partir do momento em que um Estado se
compromete com os princípios básicos da Declaração - cuja adesão mínima aos
princípios é fundamental para a aceitação dentro do sistema da ONU - e ainda
assim comete violações dentro de seu território que podem ser passíveis de
repreensões (morais, políticas e até mesmo militares). Donnelly (2007) explicita
bem essa questão:
O regime dos direitos humanos globais depende da implementação nacional dos direitos humanos internacionalmente reconhecíveis. A criação de normas foi internacionalizada. A aplicação efetiva de normas internacionais de direitos humanos, contudo, é deixada quase inteiramente para Estados soberanos. As poucas e limitadas exceções - mais notavelmente genocídio, crimes contra a humanidade, certos crimes de guerra e talvez tortura e execução arbitrária - apenas ressaltam a quase completa autoridade soberana de Estados para implementar direitos humanos em seus territórios como eles acham
melhor.30
Nesse contexto, a relativização dentro do tema de direitos humanos teve
um peso significativo. Os Estados Unidos, por exemplo, consideram esses direitos
primordialmente baseados nas liberdades individuais, civis e políticas31. Os
chineses, de outro lado, oficialmente consideram os direitos coletivos como maior
forma de direitos humanos, buscando “estabilidade e harmonia social sobre
liberdade individual”32.
Logo, os direitos humanos, de tão amplos que foram ao estabelecer o mais
primordial direito à vida, acabaram se enroscando na teia da interpretação cultural
de suas próprias definições. O comitê de 1947 não era ingênuo, contudo, e tais
problemas não foram ignorados. Como relatou a Sra. Roosevelt:
30
DONNELLY, Jack. The Relative Universality of Human Rights. Human Rights Quarterly, Vol 29,
N 2, May 2007, p. 281-306. Da Johns Hopkins University Press, p. 283. Tradução do Autor.
31 TRINDADE, José Damião de Lima.
História Social dos Direitos Humanos. 3ª Ed. São Paulo, Peirópolis, 2011, p. 194, 195 e 196. Tradução do Autor.
32 KRUMBEIN, Frédéric.
Dr. Chang era um pluralista e manteve galantemente a proposição de que há mais de um tipo de realidade final. A Declaração, disse ele, deve refletir mais do que simplesmente ideias Ocidentais e o Dr. Humprhey teria de ser eclético em sua abordagem. Seu comentário, embora direcionado ao Dr. Humprhey, fora realmente direcionado ao Dr. Malik, de quem arrancou uma pronta reação ao expor, com certa profundidade, sobre a filosofia de Tomás de Aquino. Dr. Humprhey se juntou entusiasticamente à discussão, e me lembro de que em certo ponto o Dr. Chang sugeriu que o Secretariado pudesse passar alguns meses
estudando os fundamentos do Confucionismo.33
Uma divergência na conceitualização prática dos direitos humanos diz
respeito às diferenças internas dos Estados quanto às liberdades política e civil34,
mais urgentes e imediatas, e quanto aos direitos social, econômico e cultural, os
quais muitos países até reconhecem a importância, mas preferem adotar uma
postura de adoção progressiva destes direitos, embora sem metas ou prazos, ao
contrário de outros que os consideram em suas Constituições como primordiais35
à dignidade humana.
Segundo Trindade (2002), enquanto tacitamente concordado que os
direitos civis e políticos seriam imediatos (“autoaplicáveis”), os direitos
econômicos, sociais e culturais deveriam ser implementados progressivamente
(programáticos). Como explicado pelo autor:
Ambos (os Pactos de direitos políticos e civis e de direitos sociais, econômicos e culturais) detalham e ampliam, nos seus respectivos campos, em textos longos, os direitos proclamados na Declaração de 1948. Mas, além de sua simples existência paralela já abrir portas para quem quisesse sustentar a eficácia jurídica entre eles – havia sido essa a intenção do bloco liderado pelos Estados Unidos –, certo dispositivo desses documentos parecia mesmo pôr em dúvida a indivisibilidade e
interdependência dos direitos humanos. O artigo 2o do Pacto dos Direitos
33 Trecho retirado do site oficial da ONU sobre a Declaração Universal de Direitos Humanos.
Ref. Online 4. Tradução do autor
34
Estes direitos são mais aceitos como o cerne dos direitos humanos e considerados direitos imediatos por grande parte dos Estados modernos. Em TRINDADE, José Damião de Lima. História Social dos Direitos Humanos. 3ª Ed. São Paulo, Peirópolis, 2011, p. 195.
35
Veja o caso do Brasil, que no artigo 4o de sua Carta de 1988 estabelece (i) independência nacional; (ii) prevalência dos direitos humanos; (iii) autodeterminação dos povos; (iv) não-intervenção; (v) igualdade entre os Estados; (vi) defesa da paz; (vii) solução pacífica dos conflitos; (viii) repúdio ao terrorismo e ao racismo; (ix) cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e (x) concessão de asilo político. Constituição da República Federativa do Brasil, Art.
Civis e Políticos enfatiza o compromisso dos Estados-partes de ‘... garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos neste pacto...’; ao passo que o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
também no artigo 2o alude ao compromisso dos Estados de ‘... adotar
medidas (...) que visem assegurar progressivamente...’ os direitos contemplados nesse instrumento. Impossível passar despercebida a diferença de densidade entre ambos os ‘compromissos’ – também como
fora o propósito do bloco ocidental.36
Desta forma, através de aceitação da Assembleia Geral, foi concordado
que os direitos civis e políticos seriam o alicerce da construção dos direitos
humanos apesar de visíveis divergências.
Considerando as ideias de Appiah37, Fachin (2006) nos diz que é
necessária, para um consenso sobre o tema, uma confluência de pensamentos
interssociais a fim de traçar pensamentos e definir caminhos que possam – e isso
fica apenas no reino da possibilidade – levar a políticas normativas.
A partir da ótica cosmopolita, todas as cidades possuem um conjunto de valores que lhes guia. Neste colóquio intercomunitário, cada sociedade demonstra às demais, por formas variadas, a ordem axiológica que lhes orienta, abrindo-se, assim, no sentido da cidadania global, para a busca
de respostas compartilhadas.38
É o mesmo caminho seguido por Piovesan (2011), ao tratar das
abordagens relativista (cada cultura tem seus valores) e universalista:
Na medida em que todas as culturas possuem concepções distintas de dignidade humana, mas são incompletas, haver-se-ia que aumentar a consciência dessas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto
36 TRINDADE, José Damião de Lima.
História Social dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo, Peirópolis, 2011, p. 194 e 195.
37
APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. Apud FACHIN,
Melina Girardi. Fundamentos dos Direitos Humanos: Teoria e Práxis na Cultura da Tolerância. Rio
de Janeiro, Renovar, 2009, p. 86.
38 FACHIN, Melina Girardi.
para um diálogo intercultural. A construção da concepção multicultural
dos direitos humanos decorreria desse diálogo intercultural.39
As divergências entre pontos de vista dos Estados, contudo, não foram
suficientes para afogar o tema, e toda a comunidade internacional reconhece
formalmente a existência dos direitos humanos tal como a Declaração explicitou.
Desconsiderar esta concordância, pelo menos no âmbito normativo internacional,
é desconsiderar que os Estados-membros da ONU ratificaram instrumentos que
delimitam esses direitos. Vale notar que discurso e prática caminham
paralelamente, mas isso não enfraquece mais o debate, e sim o incita.
Se for o caso, ou não, de serem aplicados na prática de cada país, trata-se
de outro cenário, o da Justiça Internacional, mas há bastante concordância
quanto a isso no discurso internacional dos países-membros da ONU. Isso
resulta, por exemplo, na participação de países conhecidamente violadores dos
direitos mais básicos nos mais altos fóruns internacionais sobre direitos humanos
e, em um nível mais básico, na ratificação da Carta das Nações Unidas.
Ora, a instância básica da soberania dá conta de o Estado governa a si
mesmo internamente sem a interferência de outro e situa-se em pé de igualdade
com os demais Estados. “O Estado é definido, normalmente, como a organização
da soberania, e esta, por sua vez, é compreendida no exato conceito possível de
Estado. Não existe Estado sem soberania ou com esta pela metade”.40
Assim, como seria possível um Estado soberano dentro de um sistema
como o das Nações Unidas, quando há a possibilidade de interferência sobre a
soberania absoluta desse mesmo Estado em nome dos direitos humanos?
Não há resposta simples, mas Taiar (2010) explica que soberania e direitos
humanos estão interligados no mundo contemporâneo. Ou seja, vista a obrigação
implicada pela nova ordem mundial – pela aceitação da comunidade internacional
aos princípios dos direitos humanos, do Direito Internacional e das próprias
39
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2011,
p. 46.
40 TAIAR, Rogério.
Constituições nacionais – o Estado é responsável pela proteção de seus cidadãos
e qualquer violação a essa proteção constitui, assim, uma violação à própria
soberania do Estado.
Nesse pensar, o direito internacional dos direitos humanos extrapola a ordem interna dos Estados e a ordem internacional das relações entre os Estados. Essas duas dimensões dos Estados são regidas pelo conceito de soberania, definida como o poder de decidir, embora de última instância, conforme a lei. Os direitos humanos, positivados nas Constituições nacionais, transforma-se em tema global (...) : a proteção dos direitos é dever de todo Estado em sua relação com a comunidade internacional, sendo que cada Estado tem, internamente, o interesse
jurídico de proteger os direitos humanos de seus cidadãos.41
Não por menos que os Estados, também a partir dos mecanismos e
acordos alcançados internacionalmente, se comprometem em seguir certos
direcionamentos, sendo inclusive responsabilizados quando omissos nesse dever,
segundo Piovesan.
Ao acolher o aparato internacional de proteção, bem como as obrigações internacionais dele decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional, no que se refere ao modo pelo qual os direitos fundamentais são respeitados em seus territórios. O Estado passa, assim, a consentir no controle e na fiscalização da comunidade internacional quando, em casos de violação a direitos fundamentais, a resposta das instituições nacionais se mostra insuficiente ou falha, ou,
por vezes, inexistente.42
Pode-se entender também que a soberania mantém seu caráter devido à
qualidade, nas palavras de Piovesan, "suplementar" da ação internacional, ou
seja, os direitos humanos primeiramente devem ser defendidos pelos próprios
Estados. Soma-se a isto o fato de qualquer ação internacional de aplicação de
leis estar amarrada a uma intrincada rede da política internacional e raramente
ser tomada de forma unilateral.
41 Idem, p.12.
42 PIOVESAN, Flavia.
Um dos instrumentos potenciais da ONU que poderiam ser utilizados para
se dirigir a problemas de direitos humanos, no âmbito de poder dentro das
Nações Unidas, é o Conselho de Segurança, composto por 15 países, sendo
cinco deles membros permanentes com poder de veto43.
Mas, além da sua própria agenda prioritária e por conta da necessidade de
consenso para atuação do Conselho de Segurança, visto que o poder de veto
subjuga todos os demais votos, outros mecanismos fizeram-se necessários a fim
de, se não atuar diretamente sobre determinado país - poder inerente a este
conselho - ao menos buscar analisar, investigar, avaliar e recomendar sobre os
direitos humanos.
A partir daí, a Comissão de Direitos Humanos e seu sucessor, o Conselho
de Direitos Humanos da ONU, buscaram servir como a principal plataforma e
fórum internacionais de respaldo e debate sobre o tema.
1.2 Da Comissão ao Conselho de Direitos Humanos
Primeiramente um grande marco para os direitos fundamentais no mundo,
a Comissão de Direitos Humanos da ONU perdeu fôlego, credibilidade e
reconhecimento público em seus últimos anos de vida. Mudança era vista como
necessária.
Criada em 1946 para ser a principal instância avaliadora das Nações
Unidas sobre direitos básicos do ser humano, sob a ilustre batuta de Eleanor
Roosevelt, 60 anos depois a Comissão deixaria de existir, criticada dentro e fora
da ONU por sua seletividade "especialmente na escolha de países para escrutínio
público”44. As críticas foram tão fortes e vieram de tantos lugares que em menos
de dois anos após a primeira sugestão oficial de uma reformulação dentro do
sistema das Nações Unidas, a Comissão cessou suas atividades, em um claro
reconhecimento de insustentabilidade.
O passado da Comissão não foi esquecido, mas tampouco foi suficiente
para sua continuação. Estabelecida a partir das diretrizes do artigo 6845 da Carta
das Nações Unidas, de 1945, sob a tutela da ECOSOC, a missão inicial da
entidade foi produzir um texto internacional sobre direitos humanos para
subsequente aprovação plenária pela Assembleia Geral da ONU, resultando na já
mencionada Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como notado por Short,
a importância da Comissão foi além de seu mandato:
A criação da Comissão assinalou o triunfo de todos aqueles peticionando para que padrões universais de direitos humanos fossem reconhecidos e aplicados por organismos no mundo todo. A Comissão foi concebida numa era marcada por altas expectativas, e inicialmente cumpriu sua incumbência de garantir a consolidação de novos padrões. Ainda que tenha caído em descrédito, a formação do órgão foi uma conquista enorme, fortalecendo a noção de que Estados são externamente
44
TERLINGEN, Yvonne. The Human Rights Council: A New Era in UN Human Rights Work?. Em Ethics & International Affairs, Vol 21.2 (Summer 2007). Tradução do Autor.
45 "O Conselho Econômico e Social deve estabelecer comissões nos campos sociais e
econômicos e para a promoção dos direitos humanos, dentre outras comissões como finalidade
do cumprimento de suas funções". Em SCOTT, Shirley V. (Ed). Internacional Law and Politics: Key
imputáveis pelo tratamento interno dado aos seus cidadãos.46
Em tempos recentes, especialmente a partir do começo da primeira década
do novo milênio, houve muitas indicações – apontadas por ONGs mundiais de
proteção aos direitos, representantes da sociedade civil, veículos de imprensa e
governos – de que a Comissão virara uma arena de interesses políticos ao invés
de um organismo cuja única parcialidade deveria ser a defesa dos direitos
humanos. Críticos afirmavam que a instituição não mais possuía capacidade
efetiva de tomar decisões e posicionamentos fortes a fim de avançar com a
proteção dos direitos humanos no mundo.
Em 2006, o então embaixador dos EUA na ONU, Jonh Bolton, foi duro ao
descrever que a Comissão representava um "mecanismo quebrado para
deliberação de decisões intergovernamentais sobre direitos humanos” 47. Lauren
(2007) apontou que, inclusive, o coro contra a situação da Comissão alcançou até
apoiadores do sistema ONU em muitas ocasiões, como a Stanley Foundation48 e
a Anistia Internacional.
Avaliações desfavoráveis sobre a Comissão, contudo, afluíam de forma
contundente de dentro da própria ONU. Em seu relatório "In Larger Freedom:
towards development, security and human rights for all” 49, de março de 2005, o então secretário-geral das Nações Unidas à época, Kofi Annan, foi enfático em
46
SHORT, Katherine. Da Comissão ao Conselho: a Organização das Nações Unidas conseguiu
ou não criar um organismo de direitos humanos confiável? 2008. Em Sur - Revista Internacional
de Direitos Humanos, p. 148. Tradução do Autor.
47 Apud LAUREN, Paul Gordon. To Preserve and Build on its Achievements and to Redress is
Shortcomings: The Journey from the Commission on Human Rights to the Human Rights Council.
2007. Em Human Rights Quarterly, publicado pela The John Hopkins University Press, p. 308.
Tradução do Autor.
48 Segundo Lauren, a fundação afirmou que "o sucesso de governos que abusam de direitos
humanos em utilizar assentos na comissão para repelir pressões por melhoras em suas próprias práticas é certamente um dos jogos mais cínicos na política internacional". LAUREN, Paul Gordon. To Preserve and Build on its Achievements and to Redress is Shortcomings: The Journey from the Commission on Human Rights to the Human Rights Council. Em Human Rights Quarterly,
publicado pela The John Hopkins University Press, 2007, p. 308.
49
apontar a situação de descrédito da entidade, apesar de seu passado
conhecidamente importante para o desenvolvimento, defesa e até mesmo
atualização do tema dos direitos humanos.
Mesmo assim (com os avanços50), a capacidade da Comissão de
realizar suas tarefas tem sido cada vez mais minada por cada vez menores credibilidade e profissionalismo. Em particular, Estados têm buscado ser membros da Comissão não para fortalecer os direitos humanos, mas para se protegerem de críticas ou de ter de criticar outros. Como resultado, o déficit de credibilidade se desenvolveu, o que lança uma sombra sobre a reputação do sistema das Nações Unidas
como um todo.51
Annan ressaltou a iminência de um renovado organismo de direitos
humanos, que representaria um "novo começo”52 para a avaliação do tema e com
uma estatura de "mais autoridade”53 para tomar decisões e recomendações, no
qual "aqueles eleitos pelo conselho devem se submeter aos mais altos padrões
de direitos humanos” 54.
Assim, a criação do Conselho de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas teve sua semente plantada no fim de 2004, quando o Painel de
Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças (PANADM)55, elaborou seu
relatório para o secretário-geral56. Um rearranjo para a Comissão foi então
sugerido. "A reforma desta entidade é, então, necessária para fazer com que o
sistema de direitos humanos tenha desempenho eficaz e garanta que melhor
cumpra com seu mandato e suas funções".57
50
Nota entre parênteses do autor. 51
In: Larger Freedom, p. 45. ONU Doc. A/59/2005. Tradução do Autor, p. 61.
52 Discurso do secretário-geral Kofi Annan em 7 de abril de 2005. Apud GHANEA, Nila (2006)
53 In: Larger Freedom, p. 45. ONU Doc. A/59/2005. Tradução do Autor, p. 61.
54
In: Larger Freedom, p. 45. ONU Doc. A/59/2005. Tradução do Autor, p. 46. 55
O painel foi criado por Annan para fazer avaliações com a finalidade de avaliar mecanismos de fortalecimento da ONU em diversas áreas, inclusive direitos humanos, e como preparação para seu relatório "In Larger Freedom", e fez recomendações bastante específicas em uma série de tópicos, incluindo sobre a reformulação da Comissão.
56
GHANEA, Nila. From UN Commission on Human Rights to UN Human Rights Council: One step
forwards or two steps sideways? International and Comparative Law Quarterly. British Institute od
International and Comparative Law, 2006.
57 "A more secure world: Our shared responsibility",
O Painel advogava a manutenção da Comissão e eventual formação do
Conselho, e sua recomendação, ao contrário do que aconteceu, era de que o
Conselho pudesse ser uma atualização da Comissão no longo prazo, não
subsidiário do ECOSOC, tornando-se, no lugar disso, um organismo autônomo,
com atuação mais próxima ao Conselho de Segurança da ONU, e com uma Carta
própria58.
A decisão de alçar um novo órgão, contudo, à condição de status de
organismo principal não foi bem recebida por muitos países em desenvolvimento,
como apontou Terlinger (2007)59, já que, como o Conselho de Segurança, tal
entidade poderia ter decisões vinculativas. O próprio Annan, então, a partir daí
recomendou que os estados-membros deveriam decidir sobre essa questão: de o
Conselho de Direitos Humanos ser um órgão principal da ONU ou uma entidade
subordinada à Assembleia Geral.
Negociações entre países-membros aconteceram intensamente antes da
reunião de líderes na Cúpula Global, realizada em 2005, em busca de um acordo
entre as partes. Discordâncias não faltaram. Diz Lauren (2007):
A maioria concordou que a Comissão de Direitos Humanos deveria ser substituída, mas amplamente discordaram sobre seu status sob a organização das Nações Unidas, seu tamanho e composição, sob se os registros de direitos humanos de um país devesse representar elegibilidade para filiação, se critérios regionais e geográficos deveria ser usados em determinar filiação, se as cinco potências permanentes deveriam automaticamente ter assento no Conselho, os procedimentos para eleger membros, o tempo de filiação, o escopo do mandato do novo órgão, os poderes que deveria possuir, e se e como seriam retidos procedimentos especiais e mecanismos para envolvimento ativo de
ONGs em quaisquer deliberações.60
58 "A more secure world: Our shared responsibility",
Relatório do Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças, p.89, item 284.
59
TERLINGEN, Yvonne. The Human Rights Council: A New Era in UN Human Rights Work?. Em Ethics & International Affairs, Vol 21.2 (Summer 2007).
60 LAUREN, Paul Gordon. "'To Preserve and Build on its Achievements and to Redress is
Shortcomings': The Journey from the Commission on Human Rights to the Human Rights Council".
2007. Em Human Rights Quarterly, publicado pela The John Hopkins University Press, p. 333.