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Da sujeição da decisão de contratar ao dever de fundamentação previsto no

Nas palavras do Professor Miguel Raimundo, acima transcritas, “A decisão de

contratar deve ser suficientemente densa para deixar perceber o que se quer e porque se quer (…)”60 contratar. Ora, pois bem, uma outra questão que deve ser analisada neste trabalho consiste exatamente na necessidade, ou falta dela, de a decisão de contratar revelar “porque se quer” contratar.

Da análise conjugada do artigo 36.º com o normativo ínsito no artigo 38.º, conseguimos concluir que, em regra, a entidade que emana a decisão de contratar será a mesma que terá a competência e a responsabilidade para proferir a decisão de autorizar a despesa61 bem como a decisão de escolha do procedimento de formação de contratos, que tanto poderão ser proferidas num só ato decisório como apresentadas separadamente62.

Em paralelo, o artigo 38.º do Código dos Contratos Públicos dispõe que “A decisão

de escolha do procedimento de formação de contratos, de acordo com as regras fixadas no presente Código, deve ser fundamentada e cabe ao órgão competente para a decisão de contratar” – aqui com sublinhados nossos.

Ora, quando analisamos o artigo 36.º, n.º1, em conjugação com o artigo 38.º do CCP, nomeadamente se o fizermos por via de uma interpretação a contratio sensu deste, tenderíamos a concluir que, se o dever de fundamentação ficou expressamente previsto para a decisão de escolha do procedimento, o legislador,

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Cfr. Ob. Cit. pp. 773.

61A competência para tomar a decisão de contratar pode ser delegada, nos termos do disposto no artigo

109.º do CCP.

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À luz do novo CPA, um contrato que venha a ser celebrado sem que a respetiva decisão e a autorização da respetiva despesa tenham sido emitidas pela entidade para isso legalmente competente, é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 161.º do CPA.

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ao não prever o mesmo para a decisão de contratar, estaria claramente a revelar que a decisão de contratar não está sujeita a qualquer dever de fundamentação. Com efeito, com a análise da redação da lei, a partir da qual já denunciámos a intenção falhada de autonomizar a decisão de contratar, a omissão da previsão de um dever de “conteúdo mínimo obrigatório” para a decisão de contratar, bem como a falta de previsão da obrigatoriedade legal da sua publicação autónoma, e agora o facto de nos parecer que a decisão de contratar se mostra isenta do cumprimento do dever fundamentação, poderíamos ser levados a alterar a posição acima revelada e, nesse sentido, a considerar que a decisão de contratar prevista no artigo 36.º, n.º 1, do CCP, tem apenas uma característica de ato administrativo, ou seja, é uma decisão.

Na ótica de Jorge Andrade da Silva, a imposição expressa de um dever de fundamentação63, no que respeita à escolha do tipo de procedimento de adjudicação, mostra-se de “utilidade duvidosa” uma vez que “iniciando-se o

procedimento com a decisão de contratar, esta decisão, como resulta do n.º 1 do artigo 36.º, é um ato administrativo externo, que pode afetar- e visa mesmo afetar - a esfera jurídica de terceiros” 64 e que, nessa medida, tanto a decisão de contratar como a de escolha do procedimento estariam sujeitas a essa obrigação de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 152.º do CPA (artigo 124.º da antiga redação do Código de Procedimento Administrativo).

Da nossa perspetiva, o problema não tem solução assim tão fácil. É verdade que na falta de disposição expressa no CCP, importa recorrer ao CPA, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 1, e 2.º, n.º 1, do CPA. Contudo, não é assim tão linear a aplicação automática do dever de fundamentação previsto no artigo 152.º à decisão de contratar como pretende fazer parecer o citado Professor. Vejamos. Antes de mais, importa deixar sublinhado que “O dever de fundamentação constitui

uma das mais relevantes garantias dos particulares, facilitando o controlo da legalidade dos actos e, no caso de actos praticados no uso de poderes discricionários, pode mesmo mostrar-se imprescindível para que a fiscalização contenciosa possa

63O dever de fundamentação dos atos administrativos encontra-se ínsito no artigo 152.º do Código de

Procedimento Administrativo, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro.

64Cfr. JORGE ANDRADE DA SILVA, Código dos Contratos Públicos Anotado e Comentado, 2015, 5.ª

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ocorrer”65. Nesta sede, e no que respeita especificamente ao conceito de dever de

fundamentação, o Professor José Carlos Vieira de Andrade dá o seu útil contributo ao esclarecer-nos que aquele “obriga a que o órgão administrativo indique as razões

de facto e de direito que o determinaram a praticar aquele acto, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedimento interno de formação da vontade decisória”66.

Ora, determina o artigo 152.º do CPA que “1 - Para além dos casos em que a lei

especialmente o exija, devem ser fundamentados os atos adminstrativos que, total ou parcialmente:

a) Neguem, extingam, restrinjam ou afetem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, ou imponham ou agravem deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções;

b) Decidam reclamação ou recurso;

c) Decidam em contrário de pretensão ou oposição formulada por interessado, ou de parecer, informação ou proposta oficial;

d) Decidam de modo diferente da prática habitualmente seguida na resolução de casos semelhantes, ou na interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou preceitos legais;

e) Impliquem declaração de nulidade, anulação, revogação, modificação ou suspensão de ato administrativo anterior.

2 – Salvo disposição da lei em contrário, não carecem de ser fundamentados os atos homologação de deliberações tomadas por júris, bem como as ordens dadas pelos superiores hierárquicos aos seus subalternos em matéria de serviço e com a forma legal”.

A par da norma administrativa transcrita, releva fazer menção ao disposto no artigo 268.º, n.º 3, da CRP, no qual é determinado que “Os atos administrativos

estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”.

65Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL e Outros, Código do Procedimento Administrativo – Anotado – Com

Legislação Complementar, Almedina, 4.ª Edição, 2003, p.229.

66Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos,

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Da análise dos normativos transcritos, parece-nos, por um lado, que o CPA foi mais longe que a própria CRP no que tange ao dever de fundamentação e, por outro lado, que a única alínea eventualmente aplicável à decisão de contratar é exatamente a alínea a) do artigo 152.º do CPA.

Cumpre agora saber em que situações se poderá acusar as decisões de contratar de negar, extinguir, restringir ou afetar, por qualquer modo, direitos ou interesses legalmente protegidos, ou impor ou agravar deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções67.

Neste contexto, o Professor Miguel Raimundo considera que a decisão de contratar efetivamente “pode ofender posições jurídicas activas de terceiros (por exemplo, se

isso violar um direito de exclusivo legal ou contratualmente conferido a um dado agente económico)”68.

Ora, neste campo, já Tiago Duarte, na defesa da necessidade da fundamentação autónoma e da recorribilidade da decisão de contratar, tinha tido oportunidade de analisar alguns casos de jurisprudência, no âmbito dos quais esta temática foi abordada. No que nos interessa, faça-se referência ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de março de 1994, no Processo n.º 32 928, no qual ser regista, com agrado diga-se, que uma “deliberação camarária [decisão de

contratar] que determinou a adjudicação em hasta pública, da concessão de um loja num mercada municipal, que estava já atribuída ao Recorrente por anterior concessão válida, lesou o seu direito, pelo que, apesar de a abertura de um concurso ser normalmente um acto preparatório, deveria ser, neste caso, a referida deliberação considerada como imediatamente recorrível”69

67Quanto a esta questão, faça-se referência à curiosa descrição que os Professores Carlos Fernandes

Cadilha e António Cadilha fazem do procedimento de contratação pública, uma vez que consideram que “o desenrolar destes procedimentos pressupõe a prática, pela entidade adjudicante, de uma pluralidade variável de atos jurídicos – que nem uma imaginação fértil poderá antever na sua totalidade – que, não acarretando desde logo a constituição de uma relação jurídico-administrativa substantiva (que só será fruto da conclusão do contrato), tem a virtualidade de satisfazer ou lesar interesses legítimos de todos os particulares que participam, como correntes, nesses procedimentos” - Cfr. CARLOS FERNANDES CADILHA e ANTÓNIO CADILHA, O Contencioso Pré-Contratual e o Regime da Invalidade dos Contratos Públicos” – Perspetivas face à Diretiva 2007/66/CE (Segunda Diretiva «Meios Contenciosos»), 2013, Almedina, p.31.

68Cfr. MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, A Formação dos Contratos Públicos – Uma Concorrência Ajustada ao

Interesse Público, AAFDL, 1.ª Edição, 2013, p. 781.

69Cfr. TIAGO DUARTE, A decisão de contratar no Código dos Contratos Públicos: da idade do armário à

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O referido autor acrescenta (e bem) que “a decisão de contratar terá de ser

igualmente objecto de fundamentação adequada, desde logo quando determine o afastamento de determinados particulares, negando-lhes ou restringindo-lhes o direito de participarem no procedimento pré-contratual em causa. Com efeito, não é pelo facto de o art. 38.º do Código dos Contratos Públicos se referir apenas expressamente à necessidade de fundamentação da decisão de escolha do procedimento que se consideram afastadas as exigências de fundamentação dos actos administrativos previstas na Constituição e no Código do Procedimento Administrativo”70

Depois de um pouco mais de ponderação do que a de Jorge Andrade da Silva e ainda que concordantes tanto com a sua posição como com a sufragada por Tiago Duarte, somos da opinião de que se mostra desnecessário enumerar mais exemplos para que se chegue à conclusão que vários são os potenciais casos em que a decisão de contratar “nega, extingue, restringe ou afeta por qualquer modo

direitos ou interesses legalmente protegidos, ou impõe ou agrava deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções”.

Problema diferente existe quando, em função da ausência de publicidade da decisão de contratar ou da publicidade conjunta com a decisão de escolha do procedimento, somos confrontados com dificuldades em definir se é a decisão de contratar que se subsume na tal alínea a) do artigo 152.º do CPA ou se é a decisão de escolha de procedimento, o que, quanto a esta, seria irrelevante visto que ela configura um dos “casos em que a lei especialmente o exija”.

Em todo o caso, do nosso humilde ponto de vista, somos tendentes a considerar que toda e qualquer decisão de contratar levará sempre à subsunção da mesma num caso da alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º, maxime se tomarmos na devida consideração o facto da decisão de contratar ser o ato que dá início a todo o

“procedimento de formação de qualquer contrato”.

70 Cfr. TIAGO DUARTE, A decisão de contratar no Código dos Contratos Públicos: da idade do armário à

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Ora, “a decisão de contratar é o primeiro acto do procedimento de formação”71 e por

ser esse ato essencial para que um procedimento se inicie, com esta decisão devidamente publicitada ficam criadas as condições para que “por qualquer modo” sejam afetados direitos ou interesses legalmente protegidos.

Em tom de conclusão, somos levados a declarar que a decisão de contratar é não só um ato administrativo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 148.º do CPA, como ainda que tal ato administrativo, sendo publicitado, e apesar de não se encontrar especial e expressamente previsto, como acontece relativamente à decisão de escolha do procedimento, tenderá a estar sujeito ao dever de fundamentação constante do artigo 152.º do CPA, uma vez que aquela sempre afetará de alguma forma direitos ou interesses legalmente estabelecidos, conforme o exige tanto o disposto na alínea a) do n.º 1 daquele artigo, como o próprio artigo 268.º, n.º 3, da CRP.

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