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Da teoria à prática do ensino da Ciência

Capítulo 2 Fundamentação Teórica

2. Introdução

2.4 Da teoria à prática do ensino da Ciência

A noção de que as reformas são uma necessidade e algo natural é uma característica do mundo globalizado, marcado pela economia de mercado e pelas sociedades baseadas cada vez mais no conhecimento que exigem a mudança como forma de organizar, conceber e desenvolver a educação (Hypolito, 2010).

Este argumento transporta consigo a ideia de regulação da Educação com fins sociais e políticos que segundo o autor tem cada vez mais deixado os professores fora dos temas curriculares, da discussão sobre o que ensinar e como ensinar, para os transferir para o controlo de gestores, ou políticos, ou de interesses económicos (Hypolito, 2010). O discurso sobre o professor eficiente e competente, consolidado na ideia da qualidade escolar e sustentado por políticas baseadas em evidências, como forma de prestação de contas à sociedade, teve como consequência a sobrecarga do trabalho docente, com mais tarefas e responsabilidades extras, e menos tempo para a preparação das aulas e estudo (Hypolito, 2010)

O relatório Eurydice (2008) sobre “ Os níveis de autonomia e responsabilidade dos professores na Europa” confirma que nas duas últimas décadas as mudanças económicas, sociais e culturais tiveram impacto na profissão docente, nomeadamente nas atividades desenvolvidas pelos professores. O relatório aponta vários motivos para esta a alteração produzida nos últimos 20 anos. Entre os motivos referidos, está a evolução da autonomia das escolas, assente numa “Nova Gestão Publica”, que acarretou um aumento das responsabilidades dos professores. Estes passaram a ter que responder aos esforços exigidos na melhoria do sistema educativo (muitas vezes causada pela publicação de resultados dececionantes), às novas exigências sociais da escola (integração de alunos com

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necessidades educativas especiais, multiculturalidade, responsabilidades diárias como a substituição de colegas, exigência de trabalho de equipa), à escolaridade obrigatória e aos assuntos educativos como reformas curriculares e desenvolvimento curricular (Eurydice, 2008).

Contudo, é interessante verificar que existem áreas onde o professor é livre nas suas escolhas (método de ensino, avaliação e manuais a adotar) e outras em que pouco ou nada tem a dizer estando como a definição do conteúdo do Currículo mínimo (entendendo-se por Currículo mínimo as principais áreas de aprendizagem e os objetivos a alcançar), a certificação e decisão de progressão. No que diz respeito à adoção dos manuais escolares, o relatório refere que na maioria dos países europeus os professores ou possuem total liberdade ou procedem à seleção a partir de uma lista pré-definida.

Este aumento da responsabilidade dos professores evidencia um paradoxo e levanta questões sobre a autonomia das escolas. Apesar da maior liberdade de intervenção em áreas anteriormente vedadas, o espaço de manobra e os mecanismos de partilha de poderes estabelecidos não revelam ter uma ligação direta com o aumento de responsabilidade dos professores (Euridyce, 2008). O relatório demonstra que a transferência de poderes do governo central para as escolas tem conduzido à especialização entre os intervenientes e ao aumento da supervisão do trabalho diário dos professores pela administração central. O paradoxo da autonomia das escolas está então no aumento da responsabilidade dos professores traduzido no terreno pela aplicação das “regras de jogo” definidas pelos governos centrais, transformadas em planos de ação de gestão diária (Eurydice, 2008). É neste contexto que os professores europeus trabalham e preparam o processo de ensino/aprendizagem da Ciência. Num ambiente de autonomia relativa, repleto de tarefas e dominado pelos resultados escolares dos estudantes, resta ao professor pouco tempo para refletir e preparar atividades de aprendizagem. Vale-lhe muitas vezes o manual e os cadernos de atividades que o acompanham.

Remetendo para o nosso problema de investigação, parece-nos fazer sentido em Portugal, onde há adoção por parte da escola de manuais escolares como instrumentos didáticos de apoio a professores e estudantes, verificar a sintonia das atividades de ensino e

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aprendizagem dos manuais com a estrutura conceptual de avaliação de competências do PISA, de modo a saber se os estudantes contactam com uma realidade semelhante fora dos testes de avaliação do PISA.

O desenvolvimento do pensamento crítico, deve ser, segundo Perrenoud (2003), o objetivo de cada disciplina, apesar de ser negligenciado em benefício da acumulação dos saberes. Pressupõe não negar os saberes mas sim ligar os saberes a situações nas quais é permitido agir para além da escola. Por esta razão Perrenoud (2003) refere que levar a sério o desenvolvimento de competências significa encarar a alteração dos programas, transformar a relação pedagógica e o “ funcionamento da escola e das turmas no sentido de uma pedagogia institucional da escola nova, do trabalho projeto, dos métodos ativos da aprendizagem sob contracto, e da autogestão pedagógica “ (Perrenoud, 2003, p. 99).

O ensino da Ciência com o objetivo da literacia científica colocou o problema de se saber qual o conhecimento em Ciência necessário no final da escolaridade obrigatória ou à vida adulta, e sobretudo o de saber como avaliá-lo. Foram várias as investigações realizadas no sentido de aferir quais os conhecimentos que um estudante deve possuir quando abandona a escola, e como os avaliar. Nenhum ajudou a tomar uma decisão, mas todos eles contribuíram para realçar a importância destes assuntos (Fensham & Harlen, 1999).

Mesmo entre os especialistas que preparavam as primeiras avaliações internacionais comparadas realizadas no âmbito da OCDE pela Evaluation of Educational Achievement (IEA), pelo Third International Mathematics and Science Study (TMISS) e depois pelo

Programme for International Student Assessement (PISA) as opiniões dividiram-se. Uns

entendiam que a avaliação em literacia científica deveria basear-se nos conteúdos curriculares, outros no conhecimento científico adquirido e necessário à vida adulta não estritamente relacionado com os conteúdos curriculares. Independente da modalidade escolhida, a necessidade de criar uma estrutura conceptual que incluísse conteúdos, raciocínio em Ciência e Tecnologia com contexto social foi consensual.

O tempo correu e uma nova estrutura conceptual de avaliação em literacia científica surgiu no âmbito do PISA. Elaborada por uma equipa de profissionais oriundos de várias áreas do conhecimento que informa sobre a forma como a escola preparou os estudantes

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para um desempenho que se julga ser o necessário à sociedade atual (Costa, 2009). Aludir à sua presença no processo de ensino e aprendizagem proporcionado nos manuais escolares, parece-nos fazer sentido, uma vez que os conceitos de literacia científica e competência dão ênfase à Ciência como processo (Duit & Treagust, 2010).

A avaliação das competências ao envolver conceitos científicos e ao ser demonstrada em situações de vida que envolvem a Ciência, contrasta com a abordagem tradicional da avaliação realizada nas escolas com o propósito de testar os conhecimentos de um conteúdo curricular (Fensham & Harlen, 1999). A avaliação das Ciências realizada nestes moldes oferece um contexto coerente porque permite elaborar e trabalhar competências/conhecimentos de diferentes Currículos, abrangendo a diversidade de conteúdos curriculares, de várias áreas de conhecimento científico, para além de envolver os estudantes em novos contextos de aprendizagem atrativos e atuais que encorajam uma atitude menos passiva face ao conhecimento científico (OCDE, 2009; Fensham & Harlen, 1999).

Resta saber se as questões elaboradas segundo esta intenção processual são compreendidas por estudantes com 15 anos. Se estes possuem maturidade para responder e se tiveram uma Educação em Ciência que lhes proporcionasses o desenvolvimento destas competências (Fensham & Harlen, 1999). Os autores chamam a atenção para o cuidado com a expressão escrita na elaboração destas questões.“ Advertem que o estudo do PISA proporcionará conhecimento sobre qual a Educação em Ciência, dentro e fora da escola, que melhor prepara os estudantes para a vida adulta e como pode a escola desenvolver as competências avaliadas pelo PISA “ (Fensham & Harlen, 1999, p. 762).

Nesta investigação procuramos saber se as atividades dos manuais escolares refletem a estrutura conceptual do PISA pois a sua utilização na prática letiva contribui para os resultados do desempenho dos estudantes portugueses e para atingir as metas internacionais estabelecidas no quadro europeu Educação e Formação (E.F. 2020).

O cumprimento desta exigência envolve uma abordagem construtivista do processo de ensino e aprendizagem, focada na criação de situações de questionamento e na

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promoção de resolução de problemas com vista à tomada de decisões (Galvão et al., 2011; Bybee, 2010).

Seguindo esta perspetiva, elaboram-se módulos de aprendizagem no âmbito do projeto Popularity and relevance of Science Education for Literacy (PARSEL), posteriormente testados e avaliados por professores portugueses. Registou-se na sua aplicação um impacto positivo do ponto de vista profissional e da aprendizagem dos estudantes, apesar da reação negativa de alguns estudantes mais habituados a um ensino tradicional que julgam “funcionar melhor” na aquisição de boas classificações (Galvão et al., 2011). A avaliação dos estudantes sobre esta experiência pedagógica manifesta a tensão presente no processo de ensino/aprendizagem. Dividido entre a exigência social de alcançar bons resultados e a necessidade de inovar e promover experiências de aprendizagem vistas pelos estudantes como mais difíceis para obter boas classificações. Para os autores esta tensão pode apenas ser ultrapassada se a prática do professor se revelar válida, eficiente e sem prejuízo das boas classificações dos estudantes. Ou através da oferta de matérias didáticos coerentes e de fácil adaptação ao processo de ensino e aprendizagem do professor (Galvão et al,. 2011).

Segundo Anderson e Helms (2001), é crucial a mudança por parte dos professores da visão do processo de ensino assente na transmissão para uma visão construtivista. Por outro lado, a investigação tem evidenciado que a presença desta visão construtivista da aprendizagem não garante por parte dos professores um comportamento de orientação construtivista, confirmando a existência de um fosso entre a visão dos professores e a sua prática (Duit & Harlen, 2010).

Os autores fazem referência a uma investigação TIMSS-R video study on science que permitiu observar 90 aulas de 14 professores de Física alemães, onde esta discrepância é demonstrada (Prenzel et al., 2002, citado por Duit & Harlen, 2010). A maior parte dos professores entrevistados neste estudo não referenciam as teorias de ensino e aprendizagem e fazem transparecer uma visão do ensino/aprendizagem mais transmissiva do que construtivista. O mesmo estudo divulga que os professores no seu processo de ensino e aprendizagem não têm em consideração as conceções dos alunos sobre os conceitos a ensinar, não sabendo mesmo da importância que estas preconceções têm para o processo de

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ensino aprendizagem da Ciência (Druit & Harlen, 2010). Os autores concluem que as estratégias desenvolvidas para a literacia científica segundo uma perspetiva construtivista estão longe das rotinas da sala de aula e que a investigação evidencia ser difícil mudar a prática e os pontos de vista dos professores. Apelam a mais investigação e a uma maior clareza na definição desta teoria se quisermos que seja adotada pelos professores (Druit & Harlen, 2010).

As dificuldades que os professores enfrentam para mudar a sua prática surgem da pressão exercida pela escola e encarregados de educação sobre os resultados dos exames (Anderson & Helms, 2001). Os autores apontam cinco dilemas que os professores de ciências enfrentam num processo de mudança. O primeiro é o “tempo” (nunca há tempo suficiente para ensinar o que julgam importante); o segundo, “o ideal versus a realidade” (significa que o que está previsto nas Metas ou no Currículo nem sempre se adapta à realidade que têm que planificar); o terceiro, “a mudança de regras” no trabalho (as regras de organização do trabalho escolar para professores e estudantes estão demasiado enraizadas na cultura de escola); o quarto, a “preparação ética” (as precedências dos estudantes para o nível de escolaridade seguinte são demasiado valorizadas pelos departamentos de ciências e pela cultura de escola); e o quinto, “a equidade” (relaciona-se com a preparação ética dos professores sobre o que pensam acerca de science for all).

Uma reforma profunda, segundo Anderson e Helms (2001), passa pela mudança de valores e crenças dos professores acerca da sua prática. De acordo com o autor, a mudança só será alcançada se em simultâneo forem feitos esforços ao nível dos departamentos escolares e da escola, os principais responsáveis pelo contexto onde a atividade do professor se desenvolve. O aumento do trabalho colaborativo e o apoio dos encarregados de educação à implementação das ideias protagonizadas pela reforma são também fatores promotores da mudança.

Concluem com a convicção de que no futuro a abordagem da escola deverá ser holística e sistémica com a presença de todas as perspetivas (cognitiva, sociocultural e político-económica) como meio de evidenciar o contexto onde pretendemos que surja mudança.

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