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3. Faca-face de muitas mulheres

3.2 Da traição, da submissão e da lealdade

Vaidade que não tinha Donana Justino. A esposa de Domísio Justino, personagem secundária, mas de importância singular no conto “Faca” vive para esperar o marido e, na sua espera agonizante, despende toda a energia no movimento de chupar umbus. O fruto a deixa enorme de gorda, mas ela não liga. Há tempos que já não desperta o interesse do marido, e essa é a única atividade que ainda pode lhe proporcionar prazer. O segundo conto da coletânea, que dá título ao livro, é um divisor de águas, pois que apresenta pela primeira vez o instrumento da transformação, a faca.

“Faca” é considerado pelo crítico Dimas Macedo como o conto “mais denso e profundo de Ronaldo Correia de Brito” (MACEDO, 2001, p.18). Ele se constrói a partir de fragmentos temporais que se embaralham e, como em um quebra-cabeça, dependem de um trabalho de reconstrução para adquirir significados. As marcações gráficas determinam a ruptura temporal. Tal fragmentação se sustentará ao longo de todo o conto por meio da alternância entre quadros distintos. Ainda, a voz do narrador realiza uma mediação que implica um efeito de simultaneidade.

O conto intercala eventos que aconteceram no passado e que acontecem no presente do tempo narrado. Tais digressões podem parecer, aos olhos de quem lê, a própria visão ou lembrança do narrador, que recupera “flashes” passados para atribuir significado a um elemento presente – a faca e a história que carrega consigo, o mistério daquele punhal amaldiçoado. A narrativa é construída numa linguagem cinematográfica, que mescla os fatos descontínuos, amalgamando-os numa só estrutura, que se solidifica no presente da narrativa, quando a maldição se cumpre e o pai termina de desgraçar a família.

O conto se alterna entre o passado e o presente, e entre a “presença” e a “ausência”. O aparecimento da faca no presente, ou seja, a sua “presença” é o fio que desenrola toda a lembrança da história passada, evocando e trazendo à tona novamente a maldição e os acontecimentos que se seguirão no presente. A ausência é outro ponto muito marcante no enredo, já que é o afastamento do marido que causa o sofrimento de Donana, e tal ausência se justifica no motivo mesmo que ele quer matar a esposa, pois viaja para estar com outra mulher.

A ausência também se faz presente no próprio objeto, que “oculta” uma história de desgraça, e na própria família Justino: Donana tem quatorze filhos, que apenas são

citados pelo narrador, mas cuja ausência participativa no enredo não é justificada pelo narrador, a única que aparece na história é Francisca. E esta, por sua vez, apóia o pai, deixando também a mãe sozinha, abandonada no “mundo de ausências” que a rodeia.

O recurso do “embaralhamento” narrativo reproduz a condição atordoada de todos diante dos desmandos e abusos de Domísio Justino, que culminam no assassinato de sua esposa Donana. O brilho da faca, sua força maior, a magia que emana “ofuscam”, de certa forma, a importância dos acontecimentos; “Aquele objeto estranho, que o tempo cercara de mistério, assombrava” (p.26).

Se “A espera da volante” é também a espera e o prenúncio da chegada da mudança, “Faca” é o instrumento pelo qual toda a transformação terá início, e objeto e índice com o qual o autor indiretamente nos brinda. É a faca da vanguarda de que já falava João Cabral de Mello Neto, e que já foi comentada anteriormente neste trabalho. Ela é o elo entre os dois tempos da narrativa, mas é também o que liga o antes e o depois da transformação que a temática do livro suscita. É, enfim, a mudança do estado presente para o passado na condição de todas as mulheres retratadas e re-apresentadas nos contos.

Na narrativa de “Faca”, podemos perceber a forte presença de duas mulheres. Uma delas é Donana, a mãe e esposa submissa, que é assinada pelo marido; a outra é sua filha Francisca, que se posiciona, é dona de seu nariz, sabe fazer escolhas, e é, sobretudo, corajosa, se entrepõe aos tios para salvar a pele do pai, a quem protege sem hesitar, mesmo sabendo que está errado.

O foco narrativo é muito importante para a construção das personagens. O conto é exposto em terceira pessoa por um narrador que nos dispõe a sua visão acerca da situação através da descrição um tanto subjetiva dos fatos. Por exemplo, ele parece tomar partido de Francisca, em detrimento da submissão da mãe. De acordo com as representações que faz de uma e outra, ele as coloca em distintos patamares.

Quando fala de Donana, há um desdém para com seu movimento de consolar-se com umbus, sua estagnação e conformação, e também por sua aparência, por ser “redonda de gorda” (p.29) de tanto chupar umbu, fruto que costuma embotar os dentes depois de seu consumo excessivo. Já no retrato de Francisca há certo tom de admiração, como quando diz que todos duvidaram que “Francisca tivesse tido força para arremessá-la [a faca] longe” (p.26). Ao final constata-se que ela teve tal força, o

que faz com que a leitura dessa passagem tenha de fato uma conotação de respeito, veneração com o êxito conquistado. E tanto lemos os tios admirados quanto o narrador, que assim os retrata.

Há também uma ironia – aí já por parte do próprio autor – no nome escolhido para a personagem da esposa condenada e assassinada. “Donana” remete talvez a uma matriarca escravocrata, senhora de engenho, dona, aquela que deveria mandar; mas que na verdade vive acuada, com medo, que arrisca perguntar ao marido quando retorna.

Com relação ao enredo, trata-se de um conto maldito e sagrado a um só tempo. A narrativa se desenrola, como nos demais contos, nos detalhes do cotidiano do sertão, dos vaqueiros que tocam o gado por longas distâncias e ficam dias fora do convívio familiar. Enquanto isso, a esposa, ao sabor do umbu que metaforiza a dor e a ausência, amarga a frustração de ver retornarem os sertanejos enquanto o marido tarda.

É indiscutível, porém, que, por trás dessa história plural e amaldiçoada, uma inexplicável poeira fere os olhos do leitor desavisado e se planta gravada no coração e na memória dos vivos; é a transformação que se anuncia.

O conto tem início com a descoberta, por um grupo de ciganos, do objeto que lhe intitula. Era um punhal de ouro e prata, cujo cabo formava duas serpentes. “Já havia perdido o brilho primordial, e sua lâmina já não conservava sinal de sangue” (idem); ele guardava uma história, que o tornava amaldiçoado.

É significativo o fato de que o “ouro do cabo formava duas serpentes enroscadas” (p.28). A serpente é um símbolo universal e complexo, que pode ser lido e compreendido de diversas formas. No conto, uma das possibilidades de interpretação vem da traição do marido.

É narrado que ele deixa a casa e, quando voltava de viagem, “vinha triste, uma saudade grande nos olhos” (p.27). E na sequência, o narrador mesmo sugere que “Alguma coisa deixava na terra distante, uma capital de muitas igrejas e sinos” (p.27 [grifo meu]). Basta essa passagem para o leitor compreender que a causa de seu ar tristonho e saudoso é outra mulher.

Mas mais a seguir o narrador confirma a hipótese, quando diz que, no terceiro dia de retorno dos vaqueiros, já “todos sabiam de uma mulher bonita e jovem com quem Domísio acertara casamento, passando-se por solteiro” (p.31 [grifo meu]). Nos adjetivos

acima usados o narrador enaltece a outra mulher da cidade e, fazendo isso, mais uma vez desmerece Donana.

No caso, então, a representação pode fazer relação com as duas mulheres em disputa, já que “serpentes” é um substantivo feminino plural; ou mesmo com o casal que, entrelaçado e apaixonado, trai. De todo modo, a serpente é considerada uma simbologia da traição, animal traiçoeiro, que espreita e planeja seus botes. Na cadeia, por exemplo, uma tatuagem de cobra em detentos tem significado de traição.

Já segundo o Dicionário de Símbolos, para a psicanálise, a serpente é “um vertebrado que encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso”83. Seguindo nessa linha, podemos ler a serpente da faca como o mistério que ela mesma guarda, que talvez suscite o “psiquismo obscuro” dos indivíduos que a cercam, fazendo ocorrer desgraças por sua via.

A serpente, assim, também pode representar morte, destruição, mal, uma essência rastejante de penetração e também veneno. Mas também é um dos símbolos que sofre as maiores contradições no que se refere ao seu uso.

Alguns acreditam que ela personifica o mal, outros, que é forte aliada contra as forças mais poderosas que possam nos atacar. As cobras sofrem o processo da troca de pele e esse é um evento que desperta a curiosidade. Nos dois sentidos últimos, de ser uma “aliada contra forças que atacam” e da “troca de pele”, podemos interpretá-la como uma força a mais para essa faca que lutará contra as ideologias vigentes, que transformará as situações que vigoram e, enfim, que agitará, de alguma forma, as condições femininas que se desdobram ao longo do livro.

Ainda de acordo com o Dicionário de Símbolos, serpentes simbolizam uma força inconsciente da natureza que não é boa nem má, e corresponde à base da energia instintiva e da impulsividade natural. Ela pode ser considerada como um símbolo do falo e possui conotações sexuais simbolizando a existência de conflitos eróticos, ou, no caso, conflitos de gênero.

No Xamanismo, ela significa transmutação, cura, regeneração, sabedoria, psiquismo e sensualidade. Como as cobras deixam para trás a sua pele, os indivíduos podem deixar para trás as ilusões e limitações para usar plenamente de sua vitalidade.

83

V. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 12ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

Nos sonhos, ela pode ser interpretada como um anúncio de uma etapa de enfrentamentos com o seu próprio “eu”, que passará por experiências que podem parecer desagradáveis, mas no final resultarão em uma solução de clareza e sabedoria, que dificilmente seria conquistada de outra forma.

Ou seja, o símbolo da serpente presume a mudança em si, o enfrentamento do gênero com suas próprias angústias e questões. Cada uma das mulheres trabalhadas na presente pesquisa passa por esse questionamento e essa tomada de consciência, que muitas vezes acarretam em consequências, mas que se justificam pelos seus fins.

Segundo Davi Arrigucci Jr., a faca que guarda as serpentes e tanta simbologia enroscadas em si, funciona como um objeto mágico e simbólico:

É uma metonímia do crime que transpassa o tempo com a memória viva do sangue derramado e por ele se restitui o fio do enredo acontecido, mas é também o poder da maldição sob os olhos cobiçosos e cheios de medo dos ciganos que a encontram depois de tantos anos. O punhal se torna, pois, portador do mito, como o detalhe que traz simbolicamente consigo o todo da trágica história (BRITO, 2003, p.178 [grifos meus]).

Dotado de muitas digressões, o conto versa entre a época do achado da faca e outra, em que se desenrolou a história contida no objeto. Na primeira, a própria faca é o protagonista, um objeto encontrado que causa estranhamento e cobiça, mas que antes fizera dor e morte no sertão dos Inhamuns. Como a casa onde acontecera a tragédia, a faca encerrava as vozes e gritos de uma família infeliz. E ela representa também, nesse momento, um elo que une o presente em que se situam os personagens do primeiro eixo narrativo, e o passado, rememorado pelas imagens agregadas ao objeto esquecido.

O caso é que, em tempos anteriores aos ciganos, o vaqueiro Domísio Justino já não tinha mais qualquer afeição, não queria saber da mulher, nem “dos seus cabelos batendo na cintura” (p.27). Sua diversão era ir à cidade. E ele dizia apenas, antes de partir: “Não sei quando volto” (idem). Dizia isso de costas, não se dando ao trabalho de virar a cabeça e fitar os olhos carentes da esposa.

Não se sentia na obrigação de dar satisfações, mas, ao contrário, ele parecia apreciar a provocação e sentir a angústia de Donana, ainda que não através dos olhos. Fazia parecer que sua imoralidade não seria completa se não fizesse a mulher sofrer às claras, com a ciência dos demais. Não bastavam seus atos esvaziados de decência, era preciso divulgá-los aos olhares alheios, sem qualquer cerimônia, zelo ou pudor.

Donana ficava calada. Sua rotina seguiria sem ele, “o verão ia ser de muita fartura, os paióis cheios de legumes” (p.27). Ela arriscava apenas perguntar se demoraria muito. Mas a fala grossa do marido sequer respondia. Vivia sempre ausente, com o pensamento nas igrejas e sinos que deixara para trás na cidade. Sinos que tocavam fundo, nos recantos escondidos do coração. Sinos e igrejas que lembravam casamento, uma união desejada.

Na ausência de Domísio, a mulher chupava toda a safra de umbu, ou seja, Donana troca a “presença” do marido pela “presença” do fruto que a sacia.

O umbu, por sua vez, é pleno de significações. Fruta azeda, nativa e tradicional das caatingas do Nordeste brasileiro, ela é tida como uma complementação84. Umbu ou “imbu”, do tupi, é o nome do fruto do umbuzeiro ou imbuzeiro. A árvore guarda em suas raízes tuberosas um verdadeiro reservatório de água, que a mantém sempre verde. Em grandes períodos de seca, o sertanejo recorre à sua água. Dada a importância de suas raízes, o umbuzeiro foi chamado de “árvore sagrada do Sertão” por Euclides da Cunha85. Sua raiz conserva água e também produz uma batata, que em época de grande estiagem serve de alimento.

Diz o conto que “o fruto azedo era sua vingança” (p.27), mas era também a sua “complementação” na ausência do marido, épocas de seca de carinho e atenção. Além do umbu, apenas o riacho que corria atrás da casa era seu deleite: “Tomava banho nua, os cabelos boiando na correnteza (idem)”. E só nessas horas a mulher conseguia esquecer o marido que tardava.

No sertão, àquela altura, já havia passado o inverno e entrava o tempo de venda do gado. “Restava tocá-lo pelas estradas, no rumo da capital. Enfrentar viagem comprida, sem data certa de retorno” (p.26). Todo o gado do sertão tinha de ser tocado, abrindo novas trilhas. E esse era mesmo o desejo de Domísio, a desculpa perfeita para partir.

A descrição do homem, marido e pai de família, é a chave para a compreensão da disposição das mulheres no enredo. Apesar da má condução de sua história, Domísio tinha uma virtude, que era o que a filha buscava para si e causava a sua admiração: “O

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V. http://www.dicionarioinformal.com.br. Acessado em: 18/05/2011.

85

"É a árvore sagrada do sertão. Sócio fiel das horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros..." (Euclides da Cunha). Tirado de: http://www.portalcampoformoso.com.br/index.php?pg=riquezas. Acessado em: 18/05/2011.

vaqueiro guardou, até o fim da vida, o brilho nos olhos, aquele pássaro de asas prateadas escapulindo da morte (p.29)”. Ele tinha vida em si, e ela pulsava, impelindo-o à busca de vida recíproca; não aquele sertão morto, aquela vida falida, desiludida, com uma mulher ressentida e ressecada por dentro.

Sua desaparição e seu desdém para com a família, no entanto, deixavam na poeira um rastro de sofrimento. As mulheres da casa quedavam em agonia. Uma acomodava-se, apoiando sua dor na reza diária, “onde desfiava a única culpa: existir” (p.32); já a outra, mais nova, menos conformada, ainda esperava por uma explicação, pelo amor que um pai se recusava a dar.

Enquanto a mãe preenchia a vida vazia e a falta de respostas para um casamento despedaçado com culpa, tomando-a toda para si, a filha esperava, e acreditava no retorno, pronta a defender o pai com unhas, dentes e facas.

Francisca, a mais velha dos quatorze filhos do casal, amava o pai como a mãe, mas diferente desta, não conseguia desligar-se da sua partida. Postava-se em frente à janela, “onde quase morava, buscava uma poeira distante, que era o sinal de sua vinda próxima” (p.28). E a mãe, já desacreditada, sem esperança ou ambição, consolava a filha anunciando a volta do homem, feliz unicamente pela outra do que por ela mesma. Ele de fato voltara, mas não abraçou os filhos, nem sequer olhou os cachorros. “Os olhos perdidos na terra distante. De noite vagava, com o sol dormia” (p.31). Anacleto Justino, o irmão, não compreendia e não se conformava com as escolhas de Domísio. Preocupado com o que pensava o povo, juiz inescrupuloso do que ocorre no ambiente da rua e da vizinhança de interior, ele dizia: “já andam desconfiados dessas suas demoras” (p.29). Perguntava o que teria de tão bom nas outras terras, que fazia esquecer mulher e filhos. Qualquer que fosse a resposta, não entenderia, os dois irmãos eram muito diferentes:

Como ele [Domísio Justino], tinha riquezas. Também habitava aqueles sertões secos, herdados de gerações antigas. Mas, ao contrário dele, não gostava de estar quieto, assentado num mesmo lugar. Preferia correr o mundo, tocar as boiadas pela estrada, em busca da capital. Ver outros rostos e apaixonar-se. Risco que o irmão não compreendia (p.30).

O homem estava cheio e capaz de tudo para sair daquela vida. “Estava perdidamente apaixonado” (p.31), e disposto a livrar-se dos impedimentos para viver esse amor. Há quinze dias que chegara de sua viagem à capital, ele jurou aos cunhados

que vira duas marcas de chinelos, no riacho onde Donana se banhava. “Chinelos grandes e pequenos”, disse ele, insinuando que um seria dela, outro do suposto amante.

Domísio confessou ao irmão que inventaria qualquer história que o livrasse de Donana. E aos cunhados, o contrário: “Posso afirmar que minha mulher Donana está me traindo. Que anda deitando com outro homem na beira do riacho” (p.32), injuriou ele. Os irmãos de Donana, como bem mandava a tradição do sertão, não aceitariam que tal traição manchasse o nome da família, cuja riqueza e poder vinham do chão, umas léguas apenas de terra. Os olhos faiscavam de raiva. Se fosse verdade, a punição seria concedida aos devidos culpados, “do jeito que é devido” (idem). Caso contrário, se tudo passasse de falso testemunho, “prepare-se para a vingança”, advertiram os cunhados a Domísio Justino.

Sabendo da calúnia do marido, Donana pôs-se a gemer, ajoelhada aos pés do oratório e clamando piedade: “Mãe de Misericórdia” (idem). Enquanto a mãe e os filhos oravam, o pai vagava pelos terreiros, o pensamento na mulher de longe.

As rezas da mulher, porém, não foram suficientes. A fúria do marido, sua paixão insana encerraram de vez a vida daquela que já não tinha qualquer coisa que assim se pudesse considerar. Pelas mãos do falseador, através da faca que ele sustinha e que os ciganos acharam cem anos mais tarde, Donana tivera seu corpo lavado em sangue, “tingindo um riacho, e depois um rio e depois um mar” (idem).

Enquanto corria ensangüentada, ela continuava seu purgatório. Com as últimas forças pedia misericórdia: “A vós bradamos” (idem). Os filhos corriam atrás da mãe, mas Francisca, leal ao pai até o último instante, teve coragem de procurá-lo e sugerir que ele se escondesse na casa do tio. Enquanto isso, “Os degredados filhos de Eva alcançaram a mãe quando ela caiu morta, as mãos [sempre] cheias de umbu” (p.33).

Anacleto, ainda que zelasse pela proteção do irmão, desejava justiça. Não deixou de acolhê-lo em sua casa como esconderijo temporário, mas afirmou com consanguínea propriedade: “Você enlouqueceu!” (p.30). E em sua falsidade dissimulada, Domísio dizia não saber o que havia feito de errado.

O irmão o alertava da passagem dos cunhados, Pedro e Luiz, pela frente da casa à sua procura. “Se me perguntarem por você, digo tudo. Não sei mentir” (p.31), confessava. Eis que um dia eles chegam para o confronto da vingança. Domísio agarrado à compaixão da filha, que se empenhava em protegê-lo.

Francisca, desesperada, pediu aos tios que não matassem o pai. Anacleto Justino, que não o matassem lá dentro de sua casa, a mesma onde, anos mais tarde, os ciganos encontraram os vestígios desse desastre:

– Ele matou sua mãe – disseram os irmãos de Donana.

– Mas ele é meu pai – respondeu Francisca, chorando, agarrada à mão do tio, tentando arrancar a faca que o cigano [em outro tempo à frente] segurava com desejo. A mesma que Domísio enterrara nas costas da sua mulher, dando começo à desgraça (p.28).

A filha então partiu para cima de Pedro e Luiz Miranda, e conseguiu arrancar das mãos deles o punhal que matara sua mãe. Em seguida, ela arremessou-o no terreiro, como se expurgasse todos os pecados contidos naquele objeto desde já amaldiçoado. Nesse momento, “um vaqueiro que vinha do curral viu uma ave prateada, reluzindo e voando no espaço. Durante os anos que correram pela frente, as pessoas procuraram a