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Data e local: realizada na Universidade de Brasília em 09/12/2010. Entrevista Ronaldo Correia de brito – 09/12/2010:

Ronaldo Correia de Brito- A personagem de “A espera da volante” de certa maneira retorna em Galiléia, no papel da rezadeira. Meu universo fabular foi todo assim, as personagens entravam e saíam. Cria-se um universo. Os personagens entram e saem, estão sempre por ali. Donana e o João Domísio, que é o assassino da mulher, em Livro dos Homens eles voltam, num conto chamado “Que veio de longe”. Há um assassinato, o personagem que desce das águas e que é adorado como um santo seria o João Domísio, mas não tem o mesmo nome. Supostamente é ele.

Nathá Clark (Eu)- E como reconhecer?

RC- É uma sugestão do próprio imaginário do mundo. Essa imprecisão é importante, fundamental para o leitor. Essa imprecisão mostra que você constrói um mundo fabular, você constrói uma geografia. [cronótopo/epifania que se repete, está sempre presente] Exemplos de William Folkner... e o meu é Inhamuns. O tempo, enquanto isso, é suspenso (tem digressões...).

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Eu- Queria que você falasse um pouco sobre a disposição da ordem do livro. Para mim, Lua Cambará vem como um fechamento mesmo, uma síntese. Ela vem como uma guerreira, como uma heroína mítica do sertão, como uma justiceira, mas traz consigo uma fragilidade feminina, sempre presente, ela sofre de amor... E queria que você falasse sobre a abertura do livro, com “A espera da volante”, com a personagem que aparece em Galiléia também, e o fechamento com “Lua Cambará”.

RC- Lua Cambará é a primeira coisa que eu escrevi na vida, meu primeiro conto. Isso foi em 1970, o que significa que publiquei um conto com 33 anos de escrita.

Eu- O conto então ficou penando como ela, né...

RC- Sim e eu também... Eu escutei essa história contada inúmeras vezes por meu pai. É uma história da mitologia sertaneja. É o mito do corpo seco, história de uma personagem escravocrata do sertão dos Inhamuns. Não posso dizer seu nome... é uma história que certamente se mistura à mitologia universal. Era uma escravocrata cruel, perversa, e que contam que quando foi levada para o enterro de seu corpo, aparecem dois diabos, demônios montados a cavalo e pedem para ajudar a transportar a morta e desaparecem com ela. Então, as pessoas assustadas enterram no lugar da morta um tronco de madeira. Então, na verdade, são mitos arcaíssimos, que são incorporados à mitologia local. A alma penada de Lua Cambará começa a ficar aparecendo aos tropeiros que se arrancham debaixo de árvores, às pessoas que à noite estão de viagem. Eu começo o conto dizendo: “meu pai jurou que viu”, é muito forte, se meu pai jurou que viu então não há o que duvidar, mesmo as pessoas dizendo que ela é mal- assombrada. O mito existe e Lua Cambará existe, e me persegue até hoje. Tanto que já virou uma ópera-balé, já virou disco, dois filmes, acabou de ser encenada, e é tão forte, tão real, tão palpável.

A lógica que ordena o livro foi discutida com meus editores. Tive a sorte de te dois ótimos editores, Rodrigo Lacerda e Augusto Márcio. Eles acharam por bem começar com um conto mais leve e terminar com Lua Cambará, que é uma tragédia forte, dura. Eu- Tem muita influência mitológica do sertão, nordestina na sua obra, mas tem de algum outro tipo de mitologia? Por exemplo, a figura grega do herói, pois, para mim, Lua Cambará é uma heroína.

RC- É uma heroína sim, sem dúvida é uma heroína trágica. Lua Cambará é totalmente grega. Na verdade os mitos são comuns, há um mar de histórias que é comum a todos os Homens. É possível que você vá à Índia, entre os Eslavos e encontre uma mitologia semelhante. Todas as histórias são bens comuns a todos e a tudo desde o princípio. Há um mar de histórias comuns a todas as pessoas.

Eu- E quanto a serem mulheres do sertão, sertanejas, tem alguma diferença? São mulheres contemporâneas também...

RC- Total. As mulheres sertanejas são muito feministas, elas são muito fortes. Se reparar, todas as mulheres têm dentro de si uma grande revolta, uma raiva, elas estão em guerra permanente com os homens. Elas acham que os homens são quem as jugula (dominam moralmente ou pela força), quem as escraviza, que as contêm. Então, toda a minha obra é na verdade uma construção em torno de mulheres que querem quebrar as portas, derrubá-las, tirá-las dos gonzos (dobradiças), quebrar as fechaduras e sair, sair sair... ir embora, ganhar o mundo. Todas estão para partir. Elvira, em “Mentira de amor”, está para ir embora. É terrível, pois ela tem um revólver e, nada se afirma, mas há essa iminência de partir, essa espera. Cícera Candóia está na mesma posição, está para ir embora, Aldenora Novais tem tudo para estar feliz, mas ela quer ir embora, pois aquele homem veio de fora, quer levá-la, e é uma maneira de romper com aquele mundo. Isso tem a ver com o próprio sentimento de transformação daquele mundo, do mundo em ruína e em transformação, que precisa ser deixado, abandonado. Na verdade é um desejo de largar o arcaico, o antigo, um desejo na verdade das mulheres, mas que também é meu e da própria literatura, de ir para a contemporaneidade, para a pós- modernidade.

Eu- E em Lua Cambará eu vejo justo isso. Ela é uma síntese da vontade de todas as mulheres de ser livre, dona de seu próprio destino. E ela possui essa liberdade intrínseca, apesar de estar entrelaçada, enraizada, presa a um sentimento por um homem...

RC- (...) presa a uma promessa ao pai, presa a um amor, presa à sua sensualidade... Eu- (...) e presa à sua própria imagem, de fortaleza...

RC- (...) ela sucumbe, não é, sucumbe e é castigada. Ela, como heroína trágica, não chega à consciência do crime e morre. Ela morre e é arrebatada. Ela é meio medeica, sendo que Medéia escapa em vida, foge num carro de fogo. Ela não, é arrebatada morta, sem chance nenhuma de transcender.

Eu- E sobre o título do livro?

RC- O título “Faca” foi por conta do conto que também se chama “Faca”.

Eu- E todos os conto têm um aspecto da morte, de renascer também um pouco, a menção ao instrumento faca teria algo que ver com isso?

RC- Eu lido muito com a morte, ela é sempre muito presente na minha vida e na minha literatura. O que mais se faz ou se fazia naquele mundo em que nasci e vivi era morrer.

Morrer... então a morte está desde sempre na minha vida. Muito antes de nascer eu já vinha com carrego de mortes.

Eu- E agora por que o nome Lua Cambará? Aliás, eu acho muito interessante os nomes dos seus personagens, acho muito criativos e complexos, e gostaria de saber um pouco sobre o seu processo de criação desses nomes.

RC- Eu não falei aqui hoje, mas os nomes das pessoas são fundamentais. A primeira coisa no processo da minha escrita é encontrar um nome, se eu não encontrar nome, não há conto, não há novela, não há romance. Em suma, não há realidade. Nome é um problema gravíssimo, eu posso destruir uma história se eu não encontrar um bom nome. Eu sempre penso em nomes duplos. Na verdade, escrever para mim é um projeto de nomes.

Eu- E de onde veio Lua Cambará, então?

RC- Lua Cambará vai sendo montado da personagem que deu origem ao mito. Eu vou ter que lhe dizer... ela se chamava Don-don do Camará.

Eu- Por que não poderia me dizer?

RC- Porque ela é uma personagem real, de uma família ilustre da região.

Eu- Queria saber sobre a sua preferência recente pelo conto, por que a escolha desse formato?

RC- Sempre escrevi livros de contos. Eu acho o conto a narrativa mais perfeita que existe. Você pode cometer vários erros num romance e ainda assim não perder o romance. Se você cometer um único erro no conto a obra está perdida. O conto não permite deslizes, tem que ter um corte, um gume (relação com o objeto faca!!) perfeito. No conto você pratica a concisão, não há excesso. O conto tem medida, tem rapidez, tem tudo aquilo que Ítalo Calvino propôs como a grande literatura do próximo milênio. Eu- Eu ia perguntar no debate, mas não deu tempo, sobre a forma dessa nova narrativa contemporânea, da qual o Ruffato é um bom exemplo, que possui muitos cortes, muita digressão, de não ter que seguir necessariamente uma linearidade... em Lua Cambará mesmo você faz muitas digressões: tem a voz do menino que conta a história ouvida pelo pai, e tem a própria história de Lua, que é um narrador...

RC- (...) sim, e esses tempos se misturam... Onde isso acontece de forma ainda mais severa é em “Faca”. São três tempos verbais diferentes, três tempos narrativos, e o leitor tem que estar atento. O conto é sempre um experimento, uma possibilidade de experimentar alguma linguagem. (...Exemplo do conto de Retratos imorais). O conto é uma construção.

Eu- Eu queria também saber um pouco sobre as suas influências de leitura, de autores ou obras regionalistas, sertanistas.

RC- Eu diria que a grande marca minha de literatura mesmo são os clássicos, eu li muito precocemente Homero. Li sempre muito a Bíblia, que é como um livro de narrativas que me marca profundamente.

Eu- A religião também está muito presente na sua obra.

RC- Sim, mas não a religião como dogma, não como crença. A religião está aí como um poder, ela é um poder [não menos do que uma instituição mesmo]. É sempre um poder repressor, um poder de mando, de medo, de imposição. Ela entra como um terror.

Eu- Mas eu percebo também em algumas personagens uma fuga, elas utilizam-se do oratório, o terço, o momento da oração como uma fuga. Por exemplo, em “Redemunho”...

RC- Sim, em “Redemunho” ela reza, mas ali é um ato automático, um recurso a um poder sobrenatural, que dê um corte no tempo presente. Mas não é, por exemplo, uma fé como a de São João da Cruz, a de Santa Tereza D’Ávila. É um apelo mágico. Ela entra sempre como um apelo mágico ou como um poder repressor. Então a igreja, a religião entram sempre como uma força terrivelmente repressora ou como uma solução, uma possibilidade mágica de quebra do cotidiano.

Eu- Qual a importância dos personagens masculinos para a criação dessas mulheres? RC- Olhe, você vai compreender melhor como eu vejo o homem, como eu sinto o homem, como eu próprio me coloco como homem, lendo Retratos imorais, na galeria chamada Retratos de homens, são treze homens, e “Retratos de mães”, que na realidade são dois retratos de homens. Eu acho que a construção do meu masculino é mais tosca, ela ainda se faz (está por construir). Eu vejo o homem sempre muito mais frágil, mais perplexo, mais inseguro, indefinido. Enquanto as mulheres são mais fortes, mais ousadas, mais atrevidas. Elas estão sempre quebrando, rompendo, derrubando, botando abaixo, indo... Em Retratos imorais as mulheres são vagas, e o que mais existem são homens. Mas eu sempre gostei mais de mulheres do que de homens. (rs)

Eu- Gostaria só que você falasse mais um pouquinho sobre Livro dos homens. Você diz que lá tem mais personagens femininas, mas eu sinto em Faca uma forte presença feminina, a não ser no conto “O valente romano”, mas que é um diálogo entre dois homens muito forte também, e que pode fazer um contraponto.

RC- Por incrível que pareça, é um conto muito inspirado no folheto popular português e também na epopeia de Gilgamesh, na briga entre Du (?) e Gilgamesh. Porque, sobretudo na mitologia clássica, o homem sempre media força com um outro homem que fosse como ele. Era muito complicada a relação de homem com homem, porque, por exemplo, na Grécia, um soldado, um guerreiro dizia todos os seus atributos, seu adversário fazia o mesmo, e se ele o achasse inferior não haveria luta, ele virava as costas, pois não estava à altura de lutar com ele. “O valente romano” tem essa disputa entre dois homens, que no fim das contas lutam com o próprio amor, com o próprio desejo. E é uma coisa insuportável para um deles, que ao constatar isso decide se enforcar.

Bom, Livro dos homens é muito um livro de mulheres. Ele começa com um conto que talvez seja o conto mais forte de mulher em toda a minha literatura, que é “Eufrásia Menezes”. É incrível o depoimento dos homens sobre esses contos, eles se emocionam, choram, descobrem o feminino em si.

Eu acho que as mulheres talvez possam reclamar do não-direito de homens de falarem de mulheres, mas os homens talvez descubram muito sobre o feminino quando outro homem fala de mulheres, sobretudo quando ele fala na primeira pessoa. “Eufrásia Menezes” é um conto em que eu falo na primeira pessoa. Eu começo o conto dizendo: “sentada estou”, então já começo dizendo a posição em que estou, estou sentada. Eu falo o tempo todo em primeira pessoa e falo de amores impossíveis, de desejos femininos, de relação com o filho, do olhar feminino sobre o masculino. Então é uma apropriação, mas isso toca muitos homens. Curiosamente “Eufrásia Menezes” é um conto de mulher que toca mais aos homens do que às mulheres.