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1. Da raiz à contemporaneidade

1.4 Um retorno a 1930

O romance que tomou forma na década de 1930, no Brasil, deu voz, ou pelo menos foi intérprete de camadas marginalizadas da sociedade, de maneira que até então não haviam sido abordadas nos romances. Ocorreu, aí, uma mudança de olhar. Abria-se espaço para um novo olhar, direcionado ao outro, e aos conflitos, ideologias, particularidades que a este dissessem respeito. O intelectual virava sua atenção a quem não podia falar por si mesmo.

O chamado romance de 30, classificação um tanto genérica que reduz a um mesmo tipo de literatura todos os romances de teor revolucionário produzidos à época, trouxe à luz dores, preconceitos e luta da vida de suor e miséria do proletariado nas metrópoles em ascensão, do lugar do negro na sociedade brasileira; promoveu ao status de protagonista o marginal, o sertanejo, em menor parte o homossexual, e a mulher.

Luís Bueno (2006) afirma que, numa visão menos restrita do que seja o romance de 30, pode-se perceber que os textos assim classificados cabiam num sistema que, embora não representasse propriamente o mainstream da nossa literatura de ficção, era atuante e não marginalizado, como se tende a ver hoje.

Segundo o pesquisador, essa vertente colaborou grandemente para que se ampliassem as possibilidades tanto temáticas quanto da constituição de um novo tipo de protagonista para o romance brasileiro:

De elemento folclórico, distante do narrador até pela linguagem, (...) o pobre, chamado agora de proletário, transforma-se em protagonista privilegiado nos romances de 30, cujos narradores procuram atravessar o abismo que separa o intelectual das camadas mais baixas da população, escrevendo uma língua mais próxima da fala. Junto com os “proletários”, outros marginalizados entrariam pela porta da frente na ficção brasileira: a criança, nos contos de Marques Rebelo; o adolescente, em Octávio de Faria; o homossexual, em Mundos Mortos do próprio Octávio de Faria e no Moleque Ricardo, de José Lins do Rego; o desequilibrado mental em Lúcio Cardoso e Cornélio Penna;

a mulher, nos romances de Lúcia Miguel Pereira, Rachel de Queiroz, Cornélio Penna e Lúcio Cardoso (BUENO, 2006, p.23).

Ainda de acordo com o autor, uma abertura desse tipo colocou para o intelectual, oriundo geralmente das classes médias ou de algum tipo de elite decaída, o problema de lidar com o outro. Seguindo uma ideologia marxista, os marginalizados, sendo este “outro”, distinto do senso comum imposto, devem unir-se a fim de legitimar sua identidade e sua auto-representação, que não precisa necessariamente ser feita por outrem, este mais letrado, elitizado, intelectualizado. Desta forma fizeram as feministas, reivindicando respeito, igualdade de tratamento e de direitos; e os operários – tanto homens quanto mulheres –, que requeriam melhores condições de trabalho e de vida.

O sertanejo, apesar de ser considerado “forte”, que lida com a seca e a vegetação inóspita, que tem a cultura dos cavalos, do gado e das esporas; ademais de não possuir a influência das massas, pois seu destino, assim como seu caminho, é esparso e solitário; nem a propensão aos motins que tomam força nas grandes urbes; tampouco tem um objeto contra quem se rebelar. O opositor do sertanejo não é humano, a causadora de seus infortúnios e de sua miséria, talvez mais do que a cultura hegemônica que tenta usurpar-lhe sua identidade, é a terra, a natureza rígida, crua e cruel que o cerca, no interior dos diversos Brasis centrais.

Os retirantes dos sertões, ainda que vão em grupo, estão sozinhos, cada qual com seu passado que deixou para trás e seu rumo à frente a seguir, uma vez que consigam aportar à cidade. Os operários, a bem ou mal, são voz conjunta, sua força se faz na união, têm um inimigo comum e palpável a quem combater: a máquina, a uniformização do trabalho, o sistema capitalista e exploratório, que produz ricos e pobres, os difere e os distancia.

Pelo caráter “marginal” de sua literatura, por ter em seus personagens aqueles que normalmente são excluídos das narrativas clássicas elitistas, ou mesmo relegados especifica e somente às categorias de ficção “regionalista” ou “sertanista”, é que a obra do século XXI de Ronaldo Correia de Brito se aproxima do tipo de romance produzido na década de 30. Em análise comparativa podem ser percebidas semelhanças estilísticas e de conteúdo, com alguns temas em evidência recorrente.

Em “Cícera Candóia”, por exemplo, o nono conto de Faca, bem como em O Quinze, romance publicado nos idos de 1930, de Rachel de Queiroz – “certamente o mais ruidoso sucesso do período” (BUENO, 2006) –, aparece uma clara distinção entre

campo e cidade, sendo o primeiro representante do arcaico e o último da modernidade; dialética que tem presença constante nos romances da década de ouro do regionalismo.

Já a literatura de Ronaldo Correia, nestes tempos contemporâneos, extrapola os limites da seca, pois, em sua contemporaneidade, explora outros problemas, físicos e psicológicos, conseqüências ou não do fator climático. E tanto Cícera, personagem que dá nome ao conto de Brito, quanto Conceição, protagonista d’ O Quinze, mais do que figuras que tentam remediar de alguma maneira a desgraça dos flagelados, órfãos e renegados das secas, encarnam tão somente essa cisão entre o ambiente rural e o urbano.

Em alusão ao pensamento de Luiz Bueno sobre a década de 30, pode-se dizer que se em A Bagaceira (1928)19, através do personagem Lúcio (e aqui o uso do masculino é proposital), uma nova mentalidade urbana aparece como possibilidade de avanço para a elite agrária, no livro de Rachel de Queiroz antes referenciado não há qualquer interação ou diálogo possível entre campo e cidade. E somente o apego à terra é capaz de trazer alguma bonança para quem vive no campo.

O “apego à terra” nestas circunstâncias dá margem a duas interpretações possíveis. Uma diz respeito à afeição mesma ao local de criação, da família, espécie de patriotismo local. Outra leitura se refere também à forma de divisão social do trabalho: o trabalho do homem do campo é feito no contato direto com a terra, os roçados, a madeira e as plantações. À mulher são delegados os afazeres domésticos, que dependem diretamente da sobrevivência e do sucesso da roça do marido.

Essa relação que se estabelece entre pátria e região (“terra”), não está muito longe do que se lê no Manifesto Regionalista. Já na atenção à literatura de Brito pode-se constatar a superação do objetivo de muitas narrativas da década de 1930: achar soluções para os problemas do Brasil e exaltar os campos em prol de uma tradição brasileira que deprecia as novas urbes.

Não possuindo qualquer dependência (ou apego) à terra – profissional ou pessoal –, a necessidade de integrar-se à cidade e buscar a realização particular e social nos meios que a nova vida urbana aponta como eficientes já não é mais vista com os mesmos olhos que outrora condenavam a opção pela cidade. E essa é, ainda que de modos e por motivos distintos, a escolha tanto de Conceição quanto de Cícera Candóia.

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Foi com a publicação de A Bagaceira, em 1928, que José Américo de Almeida inicia o chamado Ciclo Regionalista Nordestino.

Em tempos inclinados à tradição e em que raras mulheres liam romances, Conceição já estudava as questões femininas em livros que tratavam da “situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais...” (QUEIROZ, 1930, p.186-187). Contraposta à sua avó, dona Inácia, senhora convencida de que “moça só lia romance que o padre mandava” (Idem, Ibidem) e para quem ainda o estabelecimento na terra é possível, Conceição aparece como essa outra mulher, que procura sua função numa sociedade que não é a sua de origem.

Tal cisão se deixa perceber n’O Quinze já pelo conflito de gerações: “desde o tipo de ligação com a religião – a avó ligada à igreja e a neta preferindo ler ao invés de ir à missa – até a clara diferença de formação intelectual, tudo separa essas duas” (BUENO, 2006, p.132). Mas, como sugere Bueno, estamos diante de algo maior que meras diferenças geracionais. São diferenças acentuadas diante de uma nova forma de vida que começa a ganhar espaço e força frente ao universo rural que predominava.

Escrito aos 19 anos, o romance de Rachel de Queiroz é aberto com as preocupações de Mãe Nácia com a estranheza das idéias da neta Conceição, que, absorta em suas leituras socialistas, dizia alegremente que nascera para solteirona. A última cena do livro, analisada por Heloísa Buarque de Hollanda (2002)20, nos traz uma Conceição segura, apreciando as idéias sobre o “verdadeiro destino de toda mulher”, junto com a cinematográfica cavalgada de seu pretendente, sumindo no horizonte em direção ao nevoeiro da noite. Entre uma cena e a outra, desenrola-se o drama da seca de 1915 e da realidade nordestina.

De acordo com o autor, é O Quinze, muito mais do que A Bagaceira, o grande marco da renovação pela qual passaria o romance na década de 30. Ao tratar de um grande problema, a questão do apego à terra, a autora pôde tocar no drama da seca, na condição feminina e no processo de urbanização que começava a se generalizar no país, a partir de uma história extremamente simples, que pareceu a muitos críticos até simples demais.

Porém, continua Bueno,

a complexidade obtida através de material tão corriqueiro foi logo sentida, conseguindo furar um forte bloqueio preconceituoso contra os livros escritos por mulheres, e de uma maneira bastante curiosa, já que soou como se não fosse escrito por uma mulher (BUENO, 2006, p.133).

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V. HOLLANDA, Heloisa Buarque. “O ethos Rachel”. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Raquel de Queiroz. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.

Alguns críticos da época, como Graciliano Ramos e ainda Olívio Montenegro, insistiram em dizer o quanto Rachel de Queiroz se afasta do “sentimentalismo do seu sexo”, dizendo que o “traço, ao contrário, que distingue essa romancista é o de uma personalidade viril”21.

Já Heloísa Buarque afirma que era intenção de Rachel de Queiroz fugir do que chamavam de “literatura feminina” à época. Segundo ela, a escritora assumiu tal posição como legitimação de sua autonomia dentro do sistema literário:

A busca de um estilo contemporâneo, despojado, que absorvesse a campanha demolidora e as conquistas modernistas mas que pudessem dar conta da expressão artística de seu “espaço de domínio próprio” de raízes nordestinas – tão longe do que parecia ser, na época, uma literatura feminina –, bem como a opção por marcar uma posição singular no campo intelectual, definem o que Gilberto Freyre identificou como “uma autonomia e uma independência sem paralelo na literatura feminina brasileira”. Um caminho certamente avesso a escolas literárias ou associações políticas (HOLLANDA, 2002).

Ainda de acordo com Hollanda, o que é indiscutível na literatura da escritora é que mesmo que ela se mostrasse bastante reativa em relação ao feminismo, seus romances desenharam algumas das personagens femininas mais radicais da época. A galeria de mulheres exemplares inaugurada por Conceição desdobra-se em seus livros seguintes e em outras obras de distintos autores da época sempre com a tônica da liberdade e da determinação na escolha de seus destinos.

De acordo com Bueno, mesmo seguindo caminhos dispersos, a geração de escritores que apareceram nos anos 30 é ao mesmo tempo herdeira e legitimadora do movimento de 22, que se seguiu após a Semana de Arte Moderna, “cuja grande contribuição foi abrir a porteira para o que se realizaria em seguida: os novos romances, os estudos sobre os problemas brasileiros” (BUENO, 2006, p.55).

Ainda seguindo o pensamento do crítico, a percepção de que o Brasil era um país pobre, aliada à polarização política que se acirrou nos anos que sucederam a Revolução de 30 fez do proletário a grande personagem do romance brasileiro nos anos de 1933 a 1936. Reconhecer isso, no entanto, não implica que essa tenha sido a única personagem relevante criada por aquele “gesto de abertura para outros mundos antes marginalizados por nossa ficção” (BUENO, 2006, p.283).

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O Quinze é, de acordo com o autor, um livro-chave para a percepção desse fenômeno. Através da criação de Conceição, Rachel de Queiroz forjou um novo tipo de personagem feminina. Além disso, ele considera o romance “o verdadeiro marco inicial da literatura feminina ‘séria’ entre nós” (idem, ibidem).

O caso da escritora ganha relevância quando se olha com atenção para o tipo de imagem de mulher, especialmente a mulher pobre, marginal, que o romance de 30 fixou. Basta lembrar que a figura de personagem feminina mais recorrente é a da prostituta. Nos anos que se seguiram à publicação do romance de Rachel de Queiroz surgiram novas figurações da mulher que indicavam uma vontade de retirá-la da vala comum de seu estereótipo.

Olhando de forma extensiva para a produção dos anos 30, percebemos uma época que, em sua valorização do que era simples e direto22, facilitou a aceitação da simplicidade. Muito porque, os temas explorados a partir de então olhavam mais para as mazelas sociais do que para uma elite urbana. Portanto, deveria possuir linguagem que abrangesse todas as camadas que se queria atingir.

No entanto, percebe-se também que essa aparente singeleza – que em muito se distingue do simplismo – é enganosa, já que o universo de elementos para os quais os romances apontam é numeroso e, mais do que isso, significativo.