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5 As imagens produzidas por Daibert não são comuns

5.3 Labirintos que se conectam a outros labirintos

5.3.3 Daibert e a tradição dos aspectos icônicos – Palavras que são desenhos

Desde que poetas e pintores perceberam que a mensagem lingüística também poderia manifestar características da mensagem icônica, diversos artistas passaram a se

257 OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer – a ambigüidade do mito em Imagens do grande sertão, p. 761. 258 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 55.

259 OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer – a ambigüidade do mito em Imagens do grande sertão, p. 763.

interessar mais seriamente pela dimensão espacial da escritura e a letra deixou de representar apenas idéias, passando a ser incorporada aos quadros e a outros suportes artísticos. Em Imagens do grande sertão, Daibert dialoga francamente com essa tradição que usa a iconicidade da letra como um recurso de produção de sentido. O modo como os textos foram materializados nessa série de imagens é bastante diverso: alguns textos buscam remeter à própria idéia dos manuscritos do escritor, outros são efetivamente desenhados, fotocopiados ou compostos em letraset.

Ao trabalhar com textos manuscritos, utilizando a escrita como traço, próxima dos grafitti, dos rabiscos infantis ou das cartas, Daibert aproxima-se da vertente de artistas mais interessados em explorar a dimensão icônica das palavras, principalmente dos construtivistas e dos expressionistas abstratos, que, na década de 1950, usaram muitas vezes a metáfora da caligrafia para designar seus gestos pictóricos. Em Imagens do sertão é possível identificar duas formas de exploração dessa iconicidade: a letra usada como imagem (nesse caso, a palavra possui na sua materialidade características ou qualidades que remetem a uma idéia) (FIG. 108a e 108b) e a iconização do que está “ao redor” da

letra, do espaço da página ou do suporte que não é o texto, ou seja, do paratexto (FIG.

109).

O uso poético do espaço tipográfico como um recurso de produção de sentido está diretamente relacionado com a obra de artistas como Mallarmé, Apollinaire, Marinetti e, mais recentemente, Alex Flemming, interessados em aumentar a força expressiva da palavra por meio da sua distribuição física no espaço da página, preservando, contudo, a inteligibilidade do texto. Na prancha 9, por exemplo, é possível observar o uso expressivo do texto para aumentar as possibilidades de produção de sentido. Numa passada rápida de olhos por essa imagem, o leitor parece ter diante de si apenas letras espalhadas de maneira desordenada por todo o espaço de uma superfície cheia de rabiscos e de sujeira. Aparentemente, o que existe é apenas caos, não há sintaxe (FIG. 110 – detalhe): o texto não possui pontuação, não há frases; é difícil perceber

alguma palavra, como em um poema de Marinetti (FIG. 111). Com um pouco mais de

atenção, porém, o leitor pode descobrir que a superfície da figura é um mapa, que as letras formam palavras e que as palavras remetem a um mesmo referente: o diabo.

O leitor pode, ainda, descobrir que o mapa se refere ao sertão de Minas Gerais. Nesse caso, fica evidente a idéia de que a presença do demônio está espalhada pelo sertão através do seu nome. O nome é suficiente para determinar uma presença? Ou o demônio não existe, o que existe são seus nomes? Ou, ainda, o demônio existe por meio do seu

nome? Essa imagem, além de remeter ao desejo de explosão do texto dos futuristas, sem, contudo, abrir mão da sintaxe, também se aproxima da instalação realizada por Alex Flemming, em 1999, no metrô Sumaré (FIG. 113). Nesse trabalho, o texto também

parece ter sido “explodido”, mas, se olhar com cuidado (FIG. 112), o leitor pode

identificar frases e um texto – poemas do cânone brasileiro.260 Em ambos os trabalhos, a aparente explosão do texto parece ter como objetivo uma desaceleração do olhar dos leitores, dando tempo para que a interpretação não ocorra de forma mecânica.

Em “Gurigó” (FIG. 61 e 114 – detalhe), a proximidade com o trabalho de

Flemming é ainda mais evidente, permanecendo as referências a Mallarmé, Apollinaire e Marinetti. A disposição das letras de maneira a formar uma moldura para o desenho remete à preocupação de Apollinaire com a visualidade do texto e com sua sedução gráfica. Como em Mallarmé, a estrutura linear da frase foi quebrada, e as letras são

260 BARBOSA. Alex Flemming, p. 107-126.

distribuídas em quadrados de mesmo tamanho, de forma a impedir a visualização imediata da palavra e, sobretudo, da frase, e, assim, simular um “simultaneísmo de ambiente”, como pretendia Martinetti. Apesar de todas essas interferências no texto, como ocorre no trabalho de Flemming, o leitor, com cuidado, poderá perceber frases e ler o texto que enquadra, literalmente, a figura.

Arlindo Daibert não se limita a investigar o uso poético do espaço tipográfico, dedicando uma boa parte dos seus trabalhos à exploração da iconicidade da letra como um recurso de produção de sentido. Como Apollinaire, ele acredita na sedução do texto pelo seu aspecto visual e, em alguns casos, usa as palavras para formar figuras, como nos poemas do autor francês; entretanto, Daibert não está preocupado em traduzir visualmente o texto que utiliza nas suas imagens. Nos desenhos em que as palavras formam imagens, prioriza-se o aspecto plástico, e não o narrativo: a legibilidade é deixada em segundo plano e as imagens formadas não têm uma relação de semelhança com o texto ao qual se referem, como ocorre nos caligramas de Apollinaire. Esse procedimento pode ser observado nas imagens relacionadas à representação dos personagens (já analisadas no quarto capítulo) “Diadorim”, “Riobaldo, o urutu branco”, “Otacília” e “Hermógenes” (FIG. 42, 43, 44, 45).

Nessas imagens, o artista utiliza-se das palavras para formar níveis, anéis (circulares ou quadrangulares), ou para criar uma “gaiola” (prancha 3). Nesses exemplos, Daibert distancia-se de Mallarmé e Apollinaire, porque não tem a pretensão de criar uma nova ordem de leitura, e aproxima-se de El Lissitzky, porque as palavras são quase totalmente ilegíveis, não passam de um elemento plástico a mais. Daibert aproveita-se ao máximo do potencial expressivo do signo visual para criar uma metáfora: cada pessoa é um labirinto de palavras com características diferentes. Por meio dessa metáfora, ele caracteriza não apenas os personagens, como também a travessia que cada um deles precisa realizar para encontrar a si mesmo ou para realizar sua missão.

Outro exemplo interessante é a prancha 22 (FIG. 115), na qual as palavras

evocam, além da figura de um labirinto, uma faca. Essa imagem, no entanto, não corresponde exatamente ao que está escrito no texto, o que caracterizaria um caligrama clássico; ela funciona como uma metáfora: as palavras que ali se encontram formando um labirinto são perigosas e podem matar – como faria uma faca. A compreensão dessa metáfora fica mais fácil se o leitor souber que esse desenho se refere a um personagem do romance de Rosa, Ana Duzuza, “misto de feiticeira e mulher santa”.261 Nesse contexto, as palavras em forma de labirinto podem ser uma referência às rezas que ela faria, e a silhueta da faca, ao seu poder de fazer mal por meio das palavras. A imagem pode remeter também ao episódio do livro em que Medeiro Vaz, um famoso chefe de cangaceiros, consulta essa feiticeira e ela prevê o fracasso da sua empreitada secreta (a travessia do Liso do Sussuarão).262 Nesse contexto, a faca não significaria apenas o perigo de morte que o fracasso dessa empreitada pode acarretar, mas, também, o perigo que a feiticeira-santa corre por conhecer o segredo.