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Daibert e a tradição da reflexão sobre a imagem – Letras que podem trair Em Imagens do grande sertão, Daibert utiliza as possibilidades expressivas das

5 As imagens produzidas por Daibert não são comuns

5.3 Labirintos que se conectam a outros labirintos

5.3.2 Daibert e a tradição da reflexão sobre a imagem – Letras que podem trair Em Imagens do grande sertão, Daibert utiliza as possibilidades expressivas das

relações retóricas entre a linguagem escrita e a imagem gráfica com bastante sucesso. Ao fazer isso, dialoga com pintores como Salvador Dalí e René Magritte. O quadro “A traição das imagens” (FIG. 107) é um exemplo perfeito: a falta de equivalência entre os

códigos verbal e visual (o texto não confirma a imagem e vice-versa) presente no gesto deslocador de Magritte pode ser encontrada em diversas imagens da série criada por

Daibert, especialmente no conjunto de desenhos analisados nesta tese – “Diadorim” (prancha 3), “Riobaldo, o urutu branco” (prancha 4), “Otacília” (prancha 5) e “Hermógenes” (prancha 6). Nessas imagens, o artista não “ilustra” os personagens por meio de figuras humanas, como seria o esperado numa ilustração tradicional: em vez disso, prefere representá-los com labirintos que possuem nomes. Nesse gesto, Daibert repete Magritte, afirmando algo como: isto não é um labirinto, isto não é uma mandala; isto é Diadorim, Riobaldo, etc.

Noutras obras, ainda dentro no mesmo espírito de “A traição das imagens”, Daibert oferece ao olhar do leitor um objeto cuja identificação parece óbvia (usa, para isso, o estilo realista), mas que possui o paradoxal título “Sem título”, fugindo da tradicional relação de redundância ou de explicação entre título e figura. A prancha 18 (FIG. 64), que apresenta o desenho de dois pássaros, ou a prancha 13 (FIG. 99), que

apresenta um buriti, são bons exemplos desse jogo. Nessas imagens, como bem notou Solange Oliveira, “a nitidez do desenho contrasta com a denominação ‘Sem título’, que deixa aberta a leitura”.252 Essa atitude, além de se referir à ambivalência de Grande sertão, onde “tudo é e não é”, suspende a interpretação e ajuda a produzir um efeito de mostra/esconde.253 Para reforçar esse efeito, Daibert realiza, nos seus “mapas”, uma justaposição de textos impressos ou transcrições manuscritas de trechos do romance, ilegíveis.

Oliveira destaca que a prancha 1 (“Sem título n. 1” – FIG. 85) é um bom exemplo

desse procedimento, porque cria uma tensão entre o texto grafado no desenho – “GS:V” –, que traz as iniciais do título do romance, e o texto escrito que acompanha a imagem – “Sem título”. Oliveira acredita que a denominação “Sem título”, ao invés de funcionar como complementadora do sentido dessa imagem – já que essa denominação funciona, paradoxalmente, como título da imagem – amplia as possibilidades interpretativas desse

252 OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer – a ambigüidade do mito em Imagens do grande sertão, p. 761. 253 OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer – a ambigüidade do mito em Imagens do grande sertão, p. 761.

conjunto por meio de um paradoxo, de uma contradição: um título que afirma que a imagem, que possui um texto, é sem título.254 O uso da relação de contradição, nesse caso, amplia as possibilidades interpretativas do conjunto, porque, com a contradição do título que é sem título e a falta de equivalência entre os códigos verbal e visual, instaura- se o paradoxo e várias perguntas se impõem: afinal, essa imagem é ou não “sem título”? E qual o sentido dessa contradição? Por que o nome que está impresso na imagem não é o seu título?

Essas imagens, nas quais são exploradas as possibilidades retóricas entre o texto e a imagem, alimentam um jogo de mostra/esconde que é uma das características do romance de Rosa que Daibert incorpora com muita propriedade no seu trabalho. Segundo o próprio artista, esse jogo de mostra/esconde revela-se especialmente significativo na iconografia do demônio e do pacto fáustico, como em “Sem título n. 8” (FIG. 68) ou em “... no meio do redemoinho” (FIG. 105). Na xilogravura, o título “... no

meio do redemoinho” alude ao refrão rosiano “o demônio na rua, no meio do redemunho”.255 Nesse título, a palavra “diabo” é propositalmente ocultada, substituída por reticências. Oliveira repara que o diabo, apesar de não ser encontrado na frase, aparece na imagem gráfica: “cercado de representações da paisagem sertaneja e de figuras cabalísticas”.256 Realizando o jogo de mostra/esconde, o desenho destaca o diabo, no centro, enquanto o título omite-lhe a presença, espelhando o mesmo procedimento utilizado por Rosa no romance: não admite a presença do diabo, apesar de ela nunca ser negada decisivamente.

Esse mesmo jogo de mostra/esconde pode ser ainda encontrado na prancha 9, outro caso de contraste de um texto impresso na imagem com a indicação “Sem título”. Nessa figura, o desenho de um mapa tem escrito na sua extremidade inferior direita as

254 OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer – a ambigüidade do mito em Imagens do grande sertão, p. 760. 255 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 137.

256 OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer – a ambigüidade do mito em Imagens do grande sertão, p. 762.

palavras “SATANÃO! SUJO!... S...” (FIG. 65). Apesar de não ser evidente à primeira

vista, o diabo está escondido tanto no texto impresso na base dessa figura quanto na superfície da imagem. No texto impresso, a aliteração centrada na sibilante “s” contribui para aproximar as palavras, permitindo a leitura da palavra “Satanão” como a fusão entre “satã” e “sertão” (satã + sertão = satanão), repetindo a fusão que existe no romance. 257 Na superfície da imagem, as variações do nome do diabo desenhadas por todo o mapa como uma espécie de ladainha e uma figura negra discretamente colocada no canto superior esquerdo (FIG. 69) evocam a presença daquele que também é conhecido como

“o Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo ...”.258

A dialética de contrários que não se excluem pode ser encontrada ainda na xilogravura “O diabo não há”. O título apresenta uma frase que nega a presença do diabo; entretanto, essa negação é anulada pela volta à ladainha do diabo, que também ecoa nessa figura: “Austero, Cujo, Sujo, Xu, Dê, Ocultador, Severo...”, rabiscada acima de uma fileira de caveiras, que, principalmente nessa série, estão diretamente relacionadas com o diabo.259 É como se Daibert perguntasse a Rosa e ao leitor: se o diabo não há, o que são esses nomes espalhados pelo sertão? O nome é uma forma de existência? Essa contradição entre a palavra e o texto, remetendo à existência de Satanás, persiste em várias imagens, reproduzindo o jogo ambíguo de existe/não existe, mostra/esconde, que é uma característica do romance.