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5 As imagens produzidas por Daibert não são comuns

6.2 Imagens que não se entregam

Segundo Rosa, quase todas as suas frases deveriam ser alvo de uma atenção especial, mesmo aquelas “aparentemente curtas”, porque elas possuiriam um paradoxo, uma dialética, algo que garantiria continuadas e diferentes recepções da sua obra. 313 Como reparou Karine Rocha, essa proposta filosófico-estética acabou criando uma obra complexa, na qual a linguagem funda sua própria verdade – o que tornaria sua simbologia passível de variadas interpretações.

As imagens de Arlindo Daibert, ao se referirem a Grande sertão: veredas, convidam o leitor a pensar sobre vários aspectos do sertão de Rosa e, até mesmo, do sertão em que cada leitor vive. Nesta tese, abordei a forma como a representação de Diadorim e do mal nas imagens de Daibert pode alterar a compreensão de alguns aspectos do romance e a percepção das relações dos personagens principais. O caminho aberto pelas imagens de Daibert não elimina os anteriores, nem mesmo a idéia do amor romântico entre os dois jagunços, mas oferece a possibilidade de pensar o amor de outra forma que não a do amor romântico. Essa coexistência de diversas leituras, algumas até contraditórias, é possível, principalmente, porque as imagens criadas para essa série não se entregam facilmente a uma primeira leitura, antes, são cheias de caminhos, interconexões,

313 ROSA apud ROCHA. Veredas do amor no grande sertão, p. 71.

interdições e armadilhas, ou seja, são imagens complexas, imagens que, mais do que argumentar sobre um tema, convidam o leitor a pensar sobre vários temas, e sobre ele mesmo.

Na primeira acepção do dicionário eletrônico Houaiss, argumentar é apresentar fatos, idéias, razões lógicas, provas, etc., que comprovem uma afirmação, uma tese.314 Argumentar, nesse sentido, é escolher e articular um conjunto de signos de forma a criar uma proposição clara sobre um assunto ou tema. Desde o final do século 19 e, principalmente, no discurso dos estruturalistas e pós-estruturalistas, não há muitas dúvidas com relação à capacidade argumentativa de uma imagem gráfica – apesar de críticos como M. J. T. Mitchell afirmarem que a noção de que a imagem pode ser lida como os textos é recente na história da arte.315

Diversos teóricos acreditam no caráter argumentativo da imagem e na necessidade de estudar suas possibilidades retóricas. O texto escrito por Barthes em 1965, “A retórica da imagem”, a respeito da propaganda das massas Panzani é um clássico sobre esse tema. Barthes defende a idéia de que existe uma retórica na imagem e, para provar sua afirmação, usa como exemplo um anúncio de massas, procurando explicar por que foram selecionados certos signos para compor o anúncio (palavras e imagens) e como eles foram compostos de modo a constituir um contexto no qual existiria uma mensagem clara para o consumidor potencial dos produtos Panzani. 316

Pensadores como Craig Owens acreditam que toda imagem produzida pelo ser humano, de forma consciente ou inconsciente, possui um argumento vinculado a um ou mais discursos existentes no universo simbólico de uma comunidade interpretativa.317 O criador de uma imagem selecionaria, entre os signos disponíveis na cultura, um certo grupo de signos vinculados ao tema que pretende representar e os arranjaria segundo um

314 HOUAISS. Dicionário eletrônico. 315 MITCHELL. Pitcture theory, p. 99. 316 BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 27-43. 317 OWENS. Beyond recognition, p. 110-111.

objetivo específico (consciente ou inconsciente). Na mesma linha de pensamento, Miguel Mix desenvolveu o conceito de “imagem-argumento”, no qual a imagem é considerada um esquema, uma representação global de uma situação discursiva. Segundo Mix, analisar a argumentação presente numa imagem implica elucidar o processo lógico de encadeamento de idéias, situando essa imagem num contexto estético, cultural, político e lingüístico.318

Imagens bidimensionais podem argumentar como um texto, mas não comunicam sempre da mesma forma; existe, por exemplo, uma grande diferença entre os discursos imagéticos contidos nas imagens gráficas publicitárias e nos cartoons e nas imagens produzidas por Arlindo Daibert, analisadas nesta tese. Nas imagens utilizadas nas propagandas e nos cartoons, o argumento é objetivo – o discurso pretende ser totalmente elucidativo, procurando defender um ponto de vista específico e impondo ao leitor uma verdade definida anteriormente.

No caso do cartoon de Jim Davis (FIG. 129), por exemplo, a imagem afirma uma

única idéia: o cachorro não é muito esperto. Nesse desenho, um animal caracterizado como um cachorro (Odie) tem, sobre sua cabeça, uma vela. A opção pela imagem da vela acesa e a escolha dos signos que caracterizam a expressão do cachorro acabam por criar a idéia de que o cachorro não é capaz de ter uma grande idéia. A expressão do cachorro sugere docilidade ou estupidez. Essa sugestão será confirmada pela vela acesa sobre sua cabeça, signo que está em contraste implícito com a imagem usualmente utilizada para

318 MIX. El imaginario, p. 233-234.

representar que o personagem teve uma idéia – a lâmpada brilhando (FIG. 130) –,

reforçando e fixando a idéia expressa na face do animal: o cachorro não é muito esperto. As imagens de Arlindo Daibert, ao contrário das imagens publicitárias ou dos

cartoons, não procuram fazer uma única afirmação; elas propõem um conjunto de

interpretações possíveis (algumas, até, contraditórias entre si) e convidam o leitor a, entre outras coisas, deixar suas certezas de lado, pensar ou sentir de uma forma diferente do comum.

Pensar significa examinar, ponderar, submeter (algo) ao processo de raciocínio lógico, exercer a capacidade de julgamento, dedução ou concepção. Sob esse ponto de vista, o ato de pensar pressupõe a seleção e a disposição de um conjunto de signos, a fim de esclarecer determinado tema, sem que haja, necessariamente, criação nesse processo (a criação pode ocorrer num momento posterior, quando se encontram soluções para explicar uma questão). Pensar, então, estaria diretamente relacionado com descobrir conexões, encontrar caminhos, organizar e esclarecer (e também mapear).

Segundo Mitchell, haveria um tipo de imagem capaz de pensar, as chamadas imagens auto-analíticas ou metapictures.319 Metapictures seriam imagens que se referem a elas mesmas, sem, necessariamente, referirem-se a um texto impresso (supostamente anterior a elas). Tema central na estética moderna, o conceito de auto-referência interessa para esta tese porque ajuda a refletir sobre como as imagens pensam. A auto-referência seria uma forma de a imagem “pensar” sobre algo, algum tema, alguma idéia; seria, inclusive, uma forma de uma imagem pensar sobre outra imagem ou sobre um texto (invertendo a relação tradicional).

Para explicar o conceito de metapicture, Mitchell usa como exemplo algumas ilustrações, das quais destaco o desenho de Saul Steinberg (FIG. 131). Esse desenho é um

exemplo evidente de como uma imagem pode ser auto-referencial: a figura de Steinberg

319 MITCHELL. Picture theory, p. 35.

seria uma meta-imagem stricto sensu, uma figura que se refere a ela mesma. É como se o artista que nela é representado dominasse graficamente a cena: tudo no seu mundo, incluindo sua própria imagem, teria sido criado por ele. Mitchell dirá que, se for invertida a direção da leitura, o desenho pode também ser

entendido como uma alegoria da história moderna da pintura, que se inicia com a busca pela representação do mundo externo e move-se diretamente para a abstração pura.320 A imagem de Steinberg poderia referir-se à narrativa modernista da história da arte, poderia ser uma crítica ao perigo da arte auto-reflexiva, ou, ainda, uma ilustração daquilo que Mitchell chama de pictural turn na cultura pós-moderna: a percepção de que se vive num mundo de imagens, no qual “não há nada fora da

imagem”.321 Outras leituras seriam possíveis, mas o que me interessa enfatizar, ao citar esse exemplo, é a capacidade dessa figura de refletir sobre ela mesma e sobre outros temas (como a história da arte ocidental, por exemplo).

Quando afirmo que a imagem de Daibert pensa, não quero dizer que ela é necessariamente uma metapicture, mas sim estabelecer uma distinção entre a imagem que quer apenas comprovar uma afirmação e aquela que pretende propor ao leitor pensar ou sentir de uma forma diferente sobre a própria imagem ou sobre o mundo. Diante de uma imagem que pensa, o sujeito pode construir uma verdade imprevista ou reestruturar seus paradigmas, o que é mais difícil de ocorrer no caso de uma imagem argumentativa, na qual a “verdade” da interpretação está na própria imagem. Numa imagem que pensa, a “verdade” é definida a partir da interação dessa imagem com a subjetividade do leitor, construindo um conhecimento que não é previamente imposto.

320 MITCHELL. Picture theory, p. 40. 321 MITCHELL. Picture theory, p. 41.

No caso da imagem argumentativa, o objetivo é que o leitor, no seu processo de cognição, limite-se a concordar com a idéia que lhe é apresentada, ou seja, pretende-se que o leitor tenha uma relação passiva com a imagem, aceitando a significação proposta por ela. No caso de uma imagem “complexa”, o objetivo é evitar que a interpretação ocorra imediatamente, permitindo que haja uma suspensão temporária da produção de sentido na interpretação. Durante essa suspensão temporária do processo cognitivo, existe a possibilidade de o sujeito interferir de forma mais direta na interpretação, o que pode levar o leitor a um rearranjo dos seus paradigmas para construir o sentido da imagem.

A imagem argumentativa quer que o leitor concorde com a única verdade proposta por ela, enquanto a imagem complexa irá propor à apreciação do leitor mais de uma verdade, e mesmo verdades antagônicas sobre um tema ou sobre temas diversos. Basicamente, a diferença entre as imagens que argumentam e aquelas que pensam está no fato de que as primeiras não dão espaço para a subjetividade do leitor, enquanto as imagens complexas se propõem a pensar junto com o leitor. Quando imagens complexas constituem um grupo (como é o caso de Imagens do grande sertão), elas se complexizam ainda mais, aumentando suas possibilidades de realização, atualização e virtualização.