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5 As imagens produzidas por Daibert não são comuns

5.1 Imagens fora da ordem

5.1.3 Imagens que são consideradas traduções visuais do sertão

No texto “G.S.:V.”,209 Daibert explica como seu trabalho de ilustração se modificou a partir da série Alice no país das maravilhas (1978).210 Nessa série, ele abandonou aquilo que entendia como concepção tradicional de ilustração e passou a agir como um tradutor, investigando as possibilidades de recriação do texto a partir do ponto de vista da mudança das linguagens.211 Esses exercícios de “(in)traduzibilidade” foram realizados com o apoio de um estudo sistemático das análises do texto literário e da biografia do autor – o mesmo método foi também utilizado nas séries posteriores.212

Em Macunaíma de Andrade (1980), Daibert usou o texto-fonte (o livro Macunaíma) como um pretexto para a investigação e a atualização do pensamento de Mário de

208 ALPERS. A arte de descrever, p. 36. 209 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 28-63.

210 Nessa série, Arlindo Daibert ilustra o livro Alice no país das maravihas, de Lewis Carroll.

211 Segundo Daibert, na ilustração tradicional, haveria um ajustamento da imagem narrativa à representação

de um episódio literário. DAIBERT. Caderno de escritos, p. 28.

212 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 28.

Andrade. Nessa série, ele manteve certa coerência com a narrativa literária, mas cometeu “inúmeras infidelidades”, carnavalizando o texto original.213 Ao final do projeto, ele concluiu que a série era uma recriação feita a partir do livro, que não tinha nada a ver com uma ilustração literal, porque nenhuma lógica teria sido usada para escolher os episódios desenhados nem haveria preocupação com a ordem narrativa. Segundo o próprio Daibert, ele recriou o raciocínio de Mário, adaptando-o a sua história pessoal e ampliando-lhe a leitura.214

Dois anos depois, foi a vez de Grande sertão: veredas. Após uma leitura constante do texto, estudos, pesquisas iconográficas e investigações sobre Guimarães Rosa, Daibert iniciou Imagens do grande sertão. Como nas experiências com Lewis Caroll e Mário de Andrade, Daibert considera que Imagens do grande sertão é um exercício de tradução,215 uma tradução visual do romance de Guimarães Rosa. Essa visão da série como tradução é compartilhada pela crítica: Veneroso, Oliveira e Nogueira entendem que Imagens do grande

sertão é uma tradução intersemiótica do romance Grande sertão: veredas.216

Para entender melhor o que essa afirmação significa é preciso, primeiro, definir o que é uma tradução e o que significa dizer que imagens são traduções visuais de um texto. Basicamente, existem duas correntes que compreendem a tradução de maneira diversa. A corrente tradicional define a tradução como uma versão, noutra língua, de um texto, o original. Nessa forma de pensar a tradução, o objetivo do tradutor é tornar compreensível um termo ou discurso original para alguém que desconhece a língua de origem. O ato de tradução é o ato de tornar claro o significado de algo – traduzir é, então, tornar algo conhecido ou compreensível, dar a conhecer e explicar. Sendo assim, o texto original é considerado inviolável, e a tradução deve buscar o máximo de

213 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 29. 214 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 25. 215 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 28-31.

216 VENEROSO. Caligrafias e escrituras; OLIVEIRA. Satanás e Lúcifer; NOGUEIRA. Daibert, tradutor de

Rosa.

equivalência possível com esse “texto-fonte” – no caso de não ser possível a equivalência, o conteúdo deve prevalecer sobre a forma.217

A outra corrente entende a tradução desvinculada da identidade do texto-fonte e mais próxima da criação. Segundo Umberto Eco (2003), o conceito de tradução aceitaria outras possibilidades interpretativas, diferentes do conceito difundido no senso comum e aceito por uma parte dos tradutores, que dá prioridade à transmissão do conhecimento. Eco dirá que, em latim, o termo translatio aparece inicialmente no sentido de “mudança”, mas também de “transporte”, e traducere significa “conduzir além”.218 Nessa direção, Walter Benjamin inaugura uma tradição que se opõe à tradução como equivalência e pensa a tradução como um texto livre da obrigação de fidelidade ao sentido da obra traduzida,219 capaz de suplementar o original.220

Segundo João Camillo Penna, em “A tarefa do tradutor” (1923), Benjamin defende a idéia de que a tradução atualizaria e transformaria o original e, justamente por não ser fiel ao texto-fonte, possibilitaria ao original sua “sobrevivência”, uma vez que pode atualizá-lo e suplementá-lo.221 Essa idéia de “tradução como traição” e de tradutor como recriador é a base para a teoria desenvolvida por críticos e poetas como Ezra Pound e os irmãos Campos,222 que entendem a literatura como um sistema em que há uma luta contínua entre forças conservadoras e inovadoras. A tradução seria, assim, a possibilidade de renovar a cultura por meio da introdução de novos modelos lingüísticos.223

217 MILTON. Tradução, p. 184, 188. 218 ECO. Quase a mesma coisa, p. 275-276.

219 BENJAMIN apud PENNA. A tradução como crítica, p. 362. 220 FANTINI. Guimarães Rosa, p. 145.

221 PENNA. A tradução como crítica, p. 364.

222 Segundo John Milton, por trás da teoria de tradução dos irmãos Campos, as influências principais são

Walter Benjamin, Roman Jackobson e Ezra Pound. “De Benjamin, teriam tomado emprestado a idéia da influência da língua-fonte sobre a língua-alvo, como vimos anteriormente. De Jakobson, teriam tomado emprestado a idéia de traduzir a forma da língua-fonte na língua-alvo. E, de Pound, teriam tomado emprestado a idéia do tradutor como recriador”. MILTON. Tradução, p. 207.

223 MILTON. Tradução, p. 184.

Essas correntes teóricas se referem, principalmente, à tradução de textos escritos. Em 1959, Roman Jakobson escreve um dos primeiros textos que trata da tradução intersemiótica, definindo-a como aquela em que se tem “uma interpretação de signos verbais por meio de um sistema de signos não-verbais”224 – é o que acontece, por exemplo, quando se “traduz” um romance em filme ou uma fábula em balé.225 Seguindo a definição de Jakobson, as imagens produzidas por Arlindo Daibert são uma espécie de tradução intersemiótica, já que se pode afirmar que Daibert interpretou a obra escrita de Rosa por meio de uma outra linguagem. Entretanto, a idéia de tradução, relacionada com a existência de um original a partir do qual são gerados signos semelhantes que procuram equivaler-se a ele, não se aplica nesse caso, já que a fidelidade ao conteúdo do romance está longe de ser uma questão para Daibert.

Isso explica por que a crítica tem investido na idéia de pensar as imagens de Daibert como uma tradução visual de Grande sertão: veredas, ligada à corrente de base benjaminiana. Segundo Nogueira, Daibert não teria visado ao conteúdo narrativo da obra rosiana – o que se diz –, mas à recriação de processos de criação – o como se diz.226 No jargão literário, isso equivaleria a dizer que Daibert não se concentrou na ilustração do conteúdo do romance, mas nos seus aspectos significantes, ou seja, ele teria se preocupado em traduzir em imagens algo que estaria para além do conteúdo (significado) do romance – o que estaria de acordo com a postura criativa adotada por Rosa, que, aliando-se à idéia que rege o pressuposto bejaminiano acerca da tarefa do tradutor, também acredita que sua tarefa como escritor-tradutor é aproximar a língua do “original sagrado”.227

Em “A tarefa do tradutor”, além de trabalhar com a idéia de que a tradução envolve um jogo de semelhanças e diferenças em relação ao original, Benjamin afirma

224 JAKOBSON apud ECO. Quase a mesma coisa, p. 265. 225 ECO. Quase a mesma coisa, p. 265.

226 NOGUEIRA. Daibert, tradutor de Rosa, p. 71. 227 FANTINI. Guimarães Rosa, p. 145.

que a boa tradução deve aspirar à “língua-verdadeira” – uma idéia metafísica que remete a uma língua plena, “anterior a Babel”.228 A “língua pura” poderia ser atingida no processo de tradução porque, durante esse processo, a complementaridade entre as linguagens traria para o interior de uma língua algo que não pertence a ela, atualizando essa língua e colocando-a em movimento.229 A tarefa do tradutor seria restaurar o “original das coisas”, sugerir, indicar, apresentar essa verdade encoberta, sem, no entanto, revelá-la completamente, porque, paradoxalmente, essa verdade só seria acessível por meio do seu ocultamento.

A idéia de que as palavras, no texto de Rosa, apontariam para alguma coisa que permanece oculta, e de que Daibert, ao realizar sua “tradução”, buscaria sugerir ou apontar essa similaridade no nível do significante é a base do argumento de muitos críticos que avaliaram o trabalho de Daibert. Eles entendem, como Leila Perrone-Moisés, que essa forma de tradução seria uma ação poética, porque o trabalho do significante seria o único trabalho especificamente literário, já que o significante não “recobre” ou “transmite” um significado prévio, mas cria esse significado, em uma homologia (e não analogia) com os referentes, dando lugar a uma relação complexa e ambígua com o real, ao mesmo tempo afirmado e destruído pela palavra.230

Embora essas considerações sobre as imagens de Daibert sejam pertinentes, proponho considerar Imagens do grande sertão não apenas como uma imagem descritiva nem somente como uma tradução visual de Grande sertão: veredas, principalmente porque uma tradução, no conceito tradicional ou benjaminiano, necessariamente pressupõe uma obra original, e o romance de Rosa não foi a única fonte utilizada por Daibert para criar suas imagens.

228 PENNA. A tradução como crítica, p. 72, 74. 229 PENNA. A tradução como crítica, p. 366-368. 230 PERRONE-MOISÉS. Flores na escrivaninha, p. 89-90.

Como já foi visto, as imagens de Daibert são comentários visuais sobre o sertão, sobre a forma de criação de Guimarães Rosa, sobre as possibilidades do desenho como linguagem, sobre a capacidade da imagem de propor idéias, sobre o diálogo com a tradição de artistas que explora as relações entre texto e imagem, etc.231 Além disso, as imagens criadas por Daibert têm uma tal complexidade que podem ser lidas e fruídas independentemente do conhecimento de Grande sertão: veredas, ou seja, elas possuem independência em relação à obra original – o que não impede que o conhecimento do original torne essas imagens mais complexas nem que elas revelem, por meio do “ocultamento”, algo sobre o sertão de modo geral, ou sobre o sertão de Rosa, ou sobre outro tema ali tratado.

Benjamin faz parte de um grupo de teóricos que acredita na possibilidade da “revelação de uma verdade”, na existência de uma linguagem “pura”, que pode ser atingida por meio da tradução e da obra de arte. Nesta tese, entretanto, adotou-se outra postura. Não acredito na possibilidade da “revelação de uma verdade” por meio da arte ou da tradução, muito menos em uma língua “pura”, anterior a Babel. Para mim (como já expliquei na Introdução), faz mais sentido considerar que não é possível falar em um único sertão, porque não há um sertão “verdadeiro”, ideal, com o qual nos relacionamos, mas apenas um sertão mediado pela linguagem, um conceito histórico e móvel de sertão, que inclui aspectos racionais e sensitivos, como cor, cheiro, textura, etc., além de aspectos econômicos, geográficos e políticos. Sendo assim, é mais lógico pensar que esse conceito pode ser enriquecido e modificado, como, de fato, tem sido feito por trabalhos como o de Rosa e o de Daibert. Esse seria, aliás, um dos principais objetivos do objeto artístico: em vez de revelar uma verdade encoberta, provocar o movimento dos conceitos, dos paradigmas, propondo novos horizontes interpretativos.

231 DAIBERT. Caderno de escritos, p. 28-63.

Considerar Imagens do grande sertão apenas uma tradução de Grande sertão: veredas significa reduzir a complexidade e a amplitude da obra de Daibert. Faz mais sentido, em vez de tomar suas imagens como traduções visuais de Grande sertão: veredas, considerar Daibert como um tradutor, no mesmo nível que Rosa (que teria traduzido o sertão de Minas Gerais para o livro Grande sertão: veredas), de vários assuntos, inclusive do romance de Rosa.

5.2 As imagens de Daibert são constituídas por um grande número de citações