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Das associações livres à sociedade começada

2. ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL

2.2 Estado de Natureza Histórico: da paz à violência

2.2.1 Das associações livres à sociedade começada

Com o aumento da população e a escassez de gêneros alimentícios, os indivíduos antes isolados passaram a se cruzar com maior frequência e, nesse ínterim, começaram a perceber certas relações entre uns e outros. “Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte, rápido, lento, medroso, ousado e outras ideias semelhantes, comparadas ao azar da necessidade e quase sem pensar nisso, acabaram por produzir-lhe uma certa espécie de reflexão, ou melhor, uma prudência maquinal, que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 266) Surge, assim, um conhecimento maior de si mesmo e, ao mesmo tempo, do outro de sua própria espécie. A visão do comportamento repetitivo de seus semelhantes em determinadas situações o fez concluir que suas maneiras de pensar e sentir eram idênticas. Tal afinidade trouxe uma verdade importante: a de que, para seu proveito e segurança, era melhor manterem-se juntos:

Ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem estar o único móvel das ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situações raras em que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a assistência de seus

34 Alguns comentadores, como Paul Arbousse-Bastide dividem o estado histórico de natureza em cinco períodos:

a) Primeiros Progressos: Onde começam a se desenhar os primeiros vínculos. b) Idade do Ouro: Cabanas são construídas e as famílias são constituídas. c) Propriedade: primeira grande desigualdade. Humanidade é dividida em pobres e ricos. Formação da sociedade e das leis com o primeiro pacto. d) Os Magistrados: segunda grande desigualdade. Divisão em poderosos e fracos. Governo em função da manutenção das desigualdades. e) Despotismo: Mudança do poder legítimo em poder arbitrário. Terceira grande desigualdade. Divisão em senhor e escravo. (ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. Introdução. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril, 1973, p.209-219 (Coleção Pensadores) Ficaremos com a divisão proposta por Luiz R. Salinas Fortes na obra Rousseau – O Bom Selvagem em três estágios.

semelhantes e aquelas, mais raras ainda, em que a concorrência deveria fazer com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou, quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que não obrigava ninguém, e só durava quanto a necessidade passageira que a reunira. (ROUSSEAU, 1973a, p.267)

Assim, começa a desenhar-se uma forma de associação com vistas a um objetivo relativamente comum, mas despretensiosa e descompromissada. O vínculo surgia e terminava de acordo com uma necessidade urgente e ocasional. Por exemplo, para caçar um animal de grande porte que surgia ao acaso, era mais fácil abatê-lo em grupo, pois sozinho seria difícil e perigoso. Satisfeita a necessidade, o vínculo se extinguia.

Com o passar dos séculos, o período das associações livres - em que o vínculo social é precário, esgotando-se com a própria realização do objetivo para o qual se estabeleceu - dá lugar à época da primeira revolução técnica, o período das cabanas. A partir de um lento progresso das luzes, o homem foi aperfeiçoando-se e criando novos instrumentos capazes de atender suas necessidades de forma mais otimizada. Deixou as árvores e as cavernas e, com pedras cortantes, passou a usá-las como machados, para cortar lenha, cavar a terra e construir as primeiras cabanas cobertas com argila e lama que contribuíram para o “estabelecimento e a distinção das primeiras famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual nasceram talvez brigas e combates. No entanto, como os mais fortes possivelmente foram os primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de defender, é de crer que os fracos acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar desalojá-los e, quanto aos que já possuíam cabanas, nenhum deles certamente procurou apropriar-se da de seu vizinho, menos por não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apossar-se dela sem expor-se a um combate violento com a família ocupante”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 268)

Com o vínculo familiar instalado, nasceram o que Rousseau chama de os mais doces sentimentos que são conhecidos pelo homem: o amor conjugal e o amor paterno. Começa a surgir assim a célula para o surgimento da sociedade como a conhecemos, bem como uma diferenciação entre a maneira de viver dos dois sexos. A mulher passou a levar uma vida mais sedentária, acostumando-se a tomar conta do lar e dos filhos, enquanto os homens iam em busca da subsistência. Seu vigor e ferocidade enfraqueciam na medida em que deixavam de ser indivíduos errantes, em compensação era mais fácil sobreviver e resistir vivendo em

grupo. A linguagem35, notadamente o uso da palavra, começa a desenvolver-se, tornando a

comunicação mais clara, fortalecendo os laços sociais e facilitando as primeiras relações comerciais36.

Levadas por circunstâncias eventuais a viver juntas - como inundações que ilharam pequenos grupos, longos invernos que deixaram a caça escassa e verões escaldantes que trouxeram seca - as famílias começaram a formar pequenos bandos e esses bandos pequenas nações particulares com características e costumes próprios. O comércio torna-se mais constante. Os vínculos sociais mais fortes. Ideias de mérito e beleza vão se formando, produzindo sentimentos de preferência, como podemos ver abaixo:

À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. (ROUSSEAU, 1973a, p. 269)

Da apreciação mútua formou-se no espírito a ideia de consideração, e dessa ideia os primeiros deveres de civilidade. Uma afronta voluntária era tomada como um ato de desprezo pela pessoa ultrajada que revidava de forma cruel, muitas vezes com sangue. Rousseau enfatiza que esse estágio - a que chegara a maioria dos povos selvagens - da evolução é responsável pela ideia de que o homem é um ser naturalmente violento que precisa ser policiado. O erro dos pensadores que seguem esse conceito, por exemplo Hobbes, é

35 No Ensaio sobre a origem das línguas, encontramos mais pormenorizadamente a questão da linguagem no

papel da evolução do homem em quatro partes, segundo : a) a origem da linguagem, enfocando o estudo da comunicação no homem natural; b) diferenciação das línguas, com ênfase na evolução dos grupos humanos e dos meios de expressão; c) estudo particular das questões musicais relacionadas com a evolução linguística e social; d) crítica acerca da alteração do sentido natural da linguagem empreendida na vida em sociedade, que sacrifica a comunicação sentimental e moral em nome de uma linguagem mais clara e precisa. (MACHADO, 1973c, p. 158)

36 Um tipo de comércio rudimentar baseado em pequenas trocas esparsas, dirigido mais pela natureza e por falta

justamente apontarem tal período tardio como etapa inicial da humanidade, sem levar em conta os estágios anteriores.

Sobre a alardeada brutalidade natural, defendida por Hobbes, Rousseau diz que “nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância, da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, ‘não haveria afronta se não houvesse propriedade’ ”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 270)

Rousseau adverte que as relações estabelecidas pelos homens exigiam deles qualidades diversas daquelas que deviam à sua constituição primitiva. Sentimentos de bondade, justiça e solidariedade foram se adaptando à sociedade nascente. Os princípios da moralidade penetravam pouco a pouco nas ações humanas fazendo de cada um juiz e vingador das ofensas recebidas. Mas “embora os homens se tornassem menos tolerantes e a piedade natural já sofresse certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades humanas, ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e a mais duradoura” (ROUSSEAU, 1973a, p. 270). É o período da sociedade começada. Tal época, diz ele, é tida como a verdadeira juventude do mundo.

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