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Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão

2. ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL

2.2 Estado de Natureza Histórico: da paz à violência

2.2.2 Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’. (ROUSSEAU, 1973a, p.265)

É com a introdução da propriedade privada que esse estado de juventude do mundo será destruído. A ideia de que algo me pertence com exclusividade começa a ser elaborada a partir da introdução da agricultura e da metalurgia, em com isso, surge as primeiras relações de trabalho, conforme aponta Rousseau:

Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes. Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender a subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi- la. (ROUSSEAU, 1973a, p.272)

Começa a se desenhar os primeiros traços de servidão que marcarão as relações sociais e desencadearão, no correr da história, inúmeros episódios de violência extrema, marcados pelo imenso abismo que separa ricos e pobres. Nesse estágio da evolução, alguns enxergam o fato de que, num futuro próximo, não haveria recursos para todos. Prevendo tal situação, começam a transformar o que era de uso comum em uso exclusivo a fim de precaver-se dos tempos difíceis levantando as primeiras questões acerca do direito de propriedade:

Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. (ROUSSEAU, 1973a, p.265)

Conforme a terra é loteada e transformada em objeto de uso restrito - e sem nenhum mecanismo que regule tais demarcações - a igualdade é quebrada. Os mais fortes são os únicos que podem dispor e proteger tais bens, subjugando os mais fracos, que, para não morrerem de fome, submetem-se ao trabalho. A humanidade é dividida em duas classes. Ricos e pobres passam a disputar o que antes não tinha dono. Os ricos, possuidores de terras, passam a escravizar os mais pobres, que aviltados em sua liberdade, se rebelam:

Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o direito do mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos. A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar as aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha, abusando das faculdades que o dignificam. (ROUSSEAU, 1973a, p.274)

Esta é a época em que finalmente aparece o estado de guerra de todos contra todos que Hobbes supunha. É nesse estágio de transição, imediatamente após o Estado de Natureza e igualmente anterior à formação da sociedade civil, que a humanidade, para Rousseau, dá um passo sem retorno rumo a barbárie. A insociabilidade natural finalmente aflora, e, com os sentimentos naturais abafados e distorcidos, seu lado sombrio desperta. Com o objetivo de dar um basta a essa violência generalizada surge entre os homens a ideia de formar um pacto em que se estabeleçam leis e regulamentos que todos se obriguem igualmente a respeitar. Um pacto que institua “uma ordem social que, acima dos interesses antagônicos, deverá resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitua guerra pela paz social”. (FORTES, 1996, p.64) Tal pacto busca trazer a paz, mas promove a desigualdade e a perda de liberdade na medida em que legitima a propriedade privada. Os ricos são os únicos beneficiários do acordo, pois têm a posse de seus bens assegurada. Os pobres, por sua vez, veem o trabalho, a servidão e a miséria institucionalizados.

Assim, a sociedade civil começa com o estabelecimento da lei e do direito de propriedade. Um governo37 é estabelecido, escolhido pelos mais fortes para governar em

nome de todos, mas tem sempre os interesses dos mais ricos acima de quaisquer outros, transformando poder legítimo em poder arbitrário. A sociedade corrompe o homem justamente porque o primeiro pacto, ao invés de levar em conta a liberdade, funda-se na propriedade, que por si só exclui, segrega, usurpa e gera violência. Como afirma Becker, “é através do estabelecimento da propriedade e da legitimação da desigualdade, que se

37 Um Governo propriamente dito é fruto de uma decisão pós-contrato. Só o contrato o institui, como veremos no

estabelecem relações violentas de convívio no seio dos grupos recém-formados.” (BECKER, 2010b, p. 14) Do ponto de vista moral, o amor próprio surge como um desdobramento indesejável, porém necessário, do amor de si na sociedade civil. Num estado social, para sobreviver o homem precisa obrigatoriamente do outro. A autonomia natural é perdida, e com isso sua liberdade. O amor de si que trazia consigo o instinto de conservação, que por sua vez era saciado a partir da satisfação das necessidades originárias: alimentação, sexo e descanso; é atropelado na vida em sociedade pela criação de novas necessidades que, para serem supridas, demandam maior exploração da natureza e do semelhante. A relação sexual, antes simples, torna-se um ato complexo com o advento da família. Novas exigências são necessárias – como a corte, o casamento etc. - para satisfação dessa necessidade. A alimentação, que no estado primitivo era facilmente saciada, pois nada tinha dono, com a instituição da propriedade privada, passa a depender do trabalho, que, em grande parte, não remunera de maneira justa o trabalhador, colocando-o numa situação de servidão muitas vezes incontornável.

Necessidades que não existiam começam a florescer na medida em que a civilização avança. O homem agora vive na superficialidade. Se não possui uma qualidade que é valorizada no meio em que vive, é preciso aparentar possuí-la. Se não possui determinado bem que é tido como importante é preciso obtê-lo por quaisquer meios. Se não sabe determinada arte, determinado engenho, recorre à arte da bajulação, das elegias etc. É preciso aparentar possuí-las, e como consequência ocorre a distinção entre ser e parecer. Vejamos:

ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo. (ROUSSEAU, 1973a, p.273)

Tais são as armadilhas da superficialidade! O homem, antes livre e independente, agora com o advento de novas necessidades, sujeita-se à dependência de seu semelhante. Tal servidão afeta tanto o rico, que não faz fortuna sozinho, necessitando sempre do trabalho alheio, quanto o pobre, que precisa de seu socorro para manter-se. Estabelece-se assim um duplo vínculo de dependência em que o ser humano vale por sua utilidade, por sua capacidade de gerar lucros e mostrar seu sucesso para adquirir reconhecimento. Esta relação fundada sobretudo na utilidade traz à tona uma ambição devoradora que “inspira a todos os homens

uma negra tendência a prejudicarem-se mutuamente (...); em uma palavra, há, de um lado, concorrência e rivalidade, de outro, oposição de interesses e, de ambos, o desejo oculto de alcançar lucros a expensas de outrem. (ROUSSEAU, 1973a, p.273) A civilização, ao mesmo tempo em que corrompe as paixões primitivas, aliena o homem, que sai de si e passa a viver prezando acima de qualquer coisa as honrarias, a reputação e a opinião alheia. Enquanto o homem primitivo “vive em si mesmo” o “homem sociável”, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se nas opiniões dos demais. Rousseau ilustra melhor tal pensamento na longa passagem abaixo:

O que a reflexão nos ensina a esse propósito, a observação o confirma perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na ociosidade e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la. Que espetáculo não seriam para um caraíba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse selvagem indolente ao horror de uma tal vida que frequentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem proceder! Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu próprio. (ROUSSEAU, 1973a, p. 287)

A síntese das diferenças verificadas entre o homem selvagem e o homem civil que é apresentada por Rousseau como sendo a verdadeira causa das diferenças existentes entre ambos é que “o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 287) A conclusão que Rousseau chega é que a desigualdade, quase nula no estado de natureza, se deve ao desenvolvimento de nossas faculdades, alcançando estabilidade e legitimação com o estabelecimento da propriedade privada e das leis positivas, leis positivas que autorizaram

também a desigualdade moral, que reina entre todos os povos policiados e que vai de encontro a lei da natureza que não permite “uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir um sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar superfluidades enquanto à multidão faminta falta o necessário.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 287-288)

Com o pacto “histórico”, o homem troca sua liberdade natural pela servidão. Tal servidão, segundo Rousseau, é característica da sociedade civil, trazendo consequências nefastas à ordem social. A ideia segundo a qual o governante é superior a todos os outros não encontra respaldo na natureza originária do homem - onde todos são iguais - mas sim nos mecanismos criados pelo próprio pacto para a formação de uma sociedade dita legítima. Para Rousseau, não se pode falar em legitimidade sem atentar para dois princípios fundamentais que permeiam todo o seu pensamento: liberdade e igualdade. Pensando assim, faz-se necessária a formação de um novo pacto social, que deverá formar um novo homem, e, finalmente, uma sociedade melhor constituída, com maiores possibilidades de alcançar uma paz durável, tema que examinaremos no início do capítulo seguinte.

3 DA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS NAÇÃO ÀS RELAÇÕES

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